Muito do que podemos aprender ou refletir sobre o Direito não está meramente em codificações extensas ou em cursos técnicos bem definidos. O Direito orbita nas mais simples coisas do nosso cotidiano ou a que a ele achamos que nada teria a ver. Não de hoje, reforço o papel da literatura1 (geral) e arte2 para compreendermos com melhor exatidão algumas construções desenvolvidas dentro e correlacionadas ao sistema jurídico.
Uma das literaturas com maior significado para as minhas reflexões é a desenvolvida por Franz Kafka (1883-1924), especialmente pelo caráter sensível e crítico presente em seus textos. Dos ensaios de Kafka, utilizarei o conto Diante da Lei3 para, após a sua síntese, propor ponto de reflexão sobre a ideia de utilização de figuras autocompositivas como uma espécie de instrumento para déficits no Poder Judiciário.
A narrativa de Kafka transforma a Lei em um objeto colocado em um cômodo “acessível” a qualquer pessoa, sempre protegido por um guarda. Em determinado momento, um homem simples pede ao guardião permissão para acessar o ambiente no qual estava a Lei, porém, foi surpreendido com a resposta de que não poderia acessar aquele espaço. O homem insistiu repetidas vezes, entretanto, obteve sempre a mesma negativa pelo guarda a ponto de, em certa altura do conto, questionar se em algum momento lhe seria permitido ingressar no ambiente que estava a Lei. Como resposta, o guardião disse que sim, o pedido poderia ser atendido, todavia, apenas no futuro.
Insistentemente e esperançoso em receber a tão almejada permissão, o homem permaneceu ali motivado por forte curiosidade em saber como de fato era a Lei, chegando inclusive, em alguns momentos, a tentar espiar por alguma fresta entre a porta e o guardião, buscando ter uma pista do que o aguardava. O guardião da Lei, percebendo o tamanho do desejo do homem, afirmou que poderia até tentar passar por ele e pela porta, todavia, essa era apenas a primeira de muitas, as quais todas eram vigiadas igualmente por outros guardiões, cada qual mais forte do que o anterior. Mesmo indignado com a sua posição, afinal, entendia que a Lei deveria ser acessível a todos, decide aguardar pelo “mencionado” momento futuro, permanecendo naquele mesmo local até atingir a velhice.
Já em estado debilitado, poucos instantes antes da sua morte, aquele homem, que dedicou toda a sua vida para se encontrar com a Lei, em tom de indignação fez um último questionamento ao guardião: como seria possível que, durante todos esses anos, somente ele tivesse permanecido ali aguardando e solicitando permissão de acesso? Como ninguém mais apareceu para fazer o mesmo pedido? O guardião da Lei, observando o estado físico daquele homem, responde de forma benevolente: “aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”4.5 –6
Existe uma falsa percepção de que as figuras autocompositivas, como a conciliação e a mediação, assumiriam o papel de corrigir alguns dos problemas enfrentados pelo Poder Judiciário, principalmente aos que se referem aos aspectos estruturais, desaguando, em algum grau, no processo judicial.7 Esse assunto não é novo8 e já foi dissertado em diversas perspectivas, no entanto, mesmo com o esclarecimento da finalidade das figuras autocompositivas para o sistema jurídico por especialistas que atuam diariamente no seu desenvolvimento, é uma narrativa persistente.9
Sobre o problema, dito de forma prática: utilizar a conciliação/mediação como forma de reduzir10 o volume de processos judiciais no Poder Judiciário, ou empregá-las para acelerar a solução dos conflitos, ou ainda tornar compulsória a autocomposição para resolver processos judiciais menos complexos, possibilitando concentrar esforços em casos mais complexos (o que, em falsa percepção, entregaria maior qualidade na prestação jurisdicional), entre outros exemplos.
O que a parábola de Franz Kafka tem a ver com esse problema na utilização equivocada da autocomposição? Acerca do sistema de justiça multiportas, meu objeto de estudo pelo menos até o final de 2026/1, penso que cada parte dele possui o seu próprio papel para o bom funcionamento da justiça civil. Isso significa, para as figuras autocompositivas, como a conciliação e a mediação, que são indispensáveis para a justiça civil na administração de algumas categorias de conflitos.
Se existem problemas estruturais no Poder Judiciário, parece pouco plausível a ideia de que desvirtuar a finalidade da autocomposição resolveria as feridas do sistema jurídico.11 Os tipos autocompositivos existem porque foram projetados para responder as particularidades de determinados conflitos, tão somente (sem contarmos com a conquista pela autonomia de vontade das partes). Se a utilização bem-sucedida da conciliação/mediação (entre outros derivantes autocompositivos) pode surtir reflexos positivos em pontos da estrutura do Poder Judiciário, essa consequência parece ser acessória.12 Assim como em Diante da Lei, posturas que obrigam as pessoas a resolverem seus conflitos de forma autocompositiva representam, para dizer o mínimo, um entrave semelhante ao criado para o homem simples acessar a Lei.
Existem cenários em que os problemas que fundam o conflito não cessarão com o acordo firmado, pendendo da atuação do Poder Judiciário para uma resposta ainda mais concreta às suas particularidades. Compelir13 –14 a utilização da autocomposição com o intuito de solucionar problemas no sistema é, simultaneamente, ignorar as necessidades daqueles que buscam o Poder Judiciário, o que pode resultar em déficits na qualidade do acesso à justiça.15
Muito desse assunto está ligado a questões didáticas16 –17 sobre a estrutura da justiça civil, considerando os diversos tipos de solução de conflitos e suas respectivas finalidades. Se existem problemas na estrutura do Poder Judiciário, acompanhando as reflexões de Luiz Guilherme Marinoni18, as soluções são internas e relacionadas com a qualificação das técnicas do próprio processo.19 –20
Deixo um abraço e aguardo vocês nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) para discorrermos um pouco mais sobre o conteúdo da matéria deste mês e sugestões para as próximas. Vejo vocês no próximo mês.
Referências
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1. Exemplificativamente: Cf. NEVES, José Roberto de Castro. Direito e literatura: o que os advogados e os juízes fazem com as palavras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2023. Cf. TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães; COPETTI NETO, Alfredo. (Orgs.). Direito & Literatura: discurso, imaginário e normatividade. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010. Cf. RUBIÃO, André; RIBEIRO, Fernando Armando; PIMENTA, Luciana; MOREIRA, Nelson Camatta. (Orgs.). Direito e literatura: o sentimento do mundo. São Paulo: Dialética, 2021. Cf. MOREIRA, Nelson Camatta; OLIVEIRA, Juliana Ferrari de. (Orgs.). Direito & Literatura: e os múltiplos horizontes de compreensão pela arte. Ijuí: Editora Unijuí, 2015. Cf. MELO, Ezilda; SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio; CANTARINI, Paola; GUERRA FILHO, Willis Santiago. (Coords.). Direito e literatura brasileira. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020. Cf. STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam. (Orgs.). Direito e literatura: da realidade da ficção à ficção da realidade. São Paulo: Atlas, 2013. Cf. RIBEIRO, Roberto Victor Pereira. O direito na literatura: uma releitura de obras sob a ótica jurídica. 2. ed. rev. e atual. Salvador: JusPodivm, 2021.
2. A meu ver, a literatura é uma expressão artística, de modo que a pontuação promovida no corpo do texto não possui cunho tautológico negligente, afinal, foi introduzida para sinalizar uma das obras mais interessantes que já lemos sobre esse assunto e que explica o Direito a partir de diferentes manifestações artísticas durante a história: Cf. NEVES, José Roberto de Castro. O espelho infiel: uma história humana da arte e do direito. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020.
3. Originalmente, o conto Diante da Lei representa o centro do romance O processo, de Kafka. Posteriormente, foi extraído e publicado como parábola de forma esparsa.
4. KAFKA, Franz. Diante da Lei. In: ______. Essencial Franz Kafka. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 108.
5. KAFKA, Franz. Diante da Lei. In: ______. Essencial Franz Kafka. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 101-108.
6. Anteriormente, havia utilizado a parábola Diante da Lei para desenvolver um ensaio sobre o filtro da relevância no Recurso Especial, instituído o § 2º, no art. 105, da Constituição Federal, pela Emenda Constitucional n. 125, de 15 de julho de 2022. MÖLLER, Guilherme Christen. “Diante da relevância do Recurso Especial”: a reflexão de Kafka e o § 2º, do art. 105, da Constituição Federal. Magis, Portal Jurídico, 28 jul. 2022, O Processo Civil Nosso de Cada Dia. Disponível em: <https://encurtador.com.br/GQRTU>. Acesso em: 15 jan. 2024. PROCESSOCAST#40: “Diante da relevância do recurso especial”: Kafka e o § 2º, do art. 105, da CF. Guilherme Christen Möller. ProcessoCast, por Guilherme Christen Möller. Disponível em: <https://encurtador.com.br/ltGPX>. Acesso em: 15 jan. 2024.
7. Cf. SILVA, Adriana S. Acesso à justiça e arbitragem: um caminho para crise do Judiciário. Barueri: Manole, 2005. p. 109-119.
8. Esse tema foi objeto de um dos meus primeiros ensaios. Ainda que divergindo em muitos aspectos, a minha crítica central permanece inalterada: Cf. MÖLLER, Guilherme Christen. Métodos adequados de solução de conflitos: Panaceia para a crise do Poder Judiciário? In: Simpósio Brasileiro de Processo Civil, 1, 2017, Curitiba. Anais do Simpósio Brasileiro de Processo Civil, Florianópolis: ABDConst, 2017. p. 254-279.
9. Como faz prova José Carlos Barbosa Moreira, quem, ao denunciar as narrativas mitológicas dos processualistas, levantou o discurso da fórmula mágica (ou abracadabra) para os déficits do Poder Judiciários (quanto à prestação jurisdicional), apresentando o exemplo da Lei de Arbitragem brasileira (Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996) a qual, quando surgiu, havia partidários no sentido de que ela seria a solução para todos os problemas estruturais do Judiciário. Nas suas palavras: “Há relativamente pouco tempo, surgiu em nosso país um livro intitulado ‘Arbitragem: a solução’. Pois bem: procurou-se revigorar entre nós o instituto, com louvável diligência, mediante a Lei n. 9.307, de 23-9-1996, mas até hoje [e até hoje, 2025] não se vislumbra na realidade do foro sinais muito eloquentes do esperado desafogo da Justiça. Aquilo a que se chamou, com ênfase, ‘a solução’ (não apenas ‘uma solução’) pouco tem conseguido solucionar”. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual: oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 7.
10. GALANTER, Marc. Acesso à justiça em um mundo de capacidade social em expansão. Revista brasileira de sociologia do direito, v. 2, n. 1, p. 37-49, 2015. p. 42. “O Judiciário adotou os Meios Alternativos de Solução de Conflitos vinculados (ou “anexados”, como dizem) aos foros judiciais como forma de reduzir o crescente número de processos e redirecionar casos que entendem não serem merecedores da sua atenção”.
11. Em mesmo sentido acerca da errônea ideia da panaceia, entre outros: Cf. BOGHOURIAN, Tatiana; MARINHO JÚNIOR, Jânio Urbano. Mediação e conciliação: aplicação prática na Justiça Federal e perspectivas frente às novas tecnologias. Legais Scientia, edição especial – COVID-19, p. 137-165, 2021. Também: Cf. SILVA, Anderson Luis Lima da. O Novo CPC: audiência de conciliação nos casos de violência doméstica. Revista da Doutrina Jurídica, v. 110, n. 1, p. 129-145, 2018.
12. ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. 20. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2021. p. 255.
13. FISS, Owen. Against Settlement. The Yale Law Journal, v. 93, n. 6, p. 1073-1090, 1984. p. 1075.
14. Por exemplo, ameaçar as partes a fazerem um acordo (a todo o custo), sob pena de, se não o fizerem, essa atitude ser levada em consideração na ocasião da prolação da sua decisão – ainda que hipotética, chegou ao meu conhecimento algumas situações práticas não muito distantes dessa narrada. De forma antagônica, não vejo qualquer espécie de prejuízo em estimular o comportamento autocompositivo pela imposição de prêmios, seguindo a tese das sanções premiais, desenvolvida por Marcelo Mazzola, afinal, “atraídos por consequências jurídicas positivas (capazes de influenciar o seu processo de tomada de decisão), os indivíduos podem optar pela celebração de acordos, inclusive antes do escalonamento do próprio conflito”. MAZZOLA, Marcelo. Sanções premiais no Processo Civil: previsão legal, estipulação convencional e proposta de sistematização (standards) para sua fixação judicial. Salvador: JusPodivm, 2022. p. 128. Também tivemos a oportunidade de conversar sobre a sua tese em: PROCESSOCAST#42: “Sanções premiais no Processo Civil”, por Prof. Dr. Marcelo Mazzola. Entrevistado: Marcelo Mazzola. Entrevistador: Guilherme Christen Möller. ProcessoCast, por Guilherme Christen Möller. Disponível em: <https://encurtador.com.br/cKkPo>. Acesso em 5 nov. 2024.
15. DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. v. 1: introdução ao Direito Processual Civil, parte geral e processo de conhecimento. p. 280. “É perigosa e ilícita a postura de alguns juízes que constrangem as partes à realização de acordos judiciais. […] Demais disso, convém sempre ficar atento, em um processo de mediação e conciliação, ao desequilíbrio de forças entre os envolvidos (disparidade de poder ou de recursos econômicos). Trata-se de fator que comumente leva um dos sujeitos a celebrar acordo lesivo a seu interesse”.
16. GOMES NETO, José Mário Wanderley. O acesso à justiça em Mauro Cappelletti: análise teórica desta concepção como “movimento” de transformação das estruturas do Processo Civil brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. p. 100. “Transformar o processo liberal individualista em um processo de resultados satisfatórios à sociedade, adequado aos movimentos de acesso à justiça, sem, contudo promover alterações na mentalidade dos profissionais de direito, fruto de sua formação embebida no regime anterior, implica muito provavelmente no aparecimento de resistências e em pequenos fracassos imediatos”.
17. Cf. ZAMBONI, Alex Alckmin de Abreu Montenegro. O ensino jurídico e o tratamento adequado dos conflitos: impacto da Resolução n. 125 do CNJ sobre os cursos de Direito. Dissertação (Mestrado em Direito) – Escola de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito, Mestrado em Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo: 142p., 2016. p. 92-103.
18. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
19. TARUFFO, Michele. Uma alternativa às alternativas: modelos de resolução de conflitos. Tradução de Marco Félix Jobim. In: ______. Ensaios sobre o Processo Civil: escritos sobre processo e justiça civil. Organização e revisão de tradução de Darci Guimarães Ribeiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 28-43. p. 42. “A única resposta aceitável aos problemas da ineficiência da justiça consiste na profunda e radical reforma da justiça civil e da organização judiciária”.
20. TUCCI, José Rogério Cruz e. Processo Civil: realidade e justiça: 20 anos de vigência do CPC. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 100. “Todavia, o processo, enquanto instrumento de realização de justiça, deve estar ajustado à realidade social. Esta, contudo, jamais reflete um panorama estável, pronto a recepcionar as normas jurídicas de forma perene ou definitiva. A dinâmica social, em decorrência de novas e inexoráveis contingências, impõe constante atenção do jurista. É certo, porém, que o intolerável problema da morosidade do processo não decorre simplesmente de circunstâncias de natureza técnica, mas, sim, de vetores de ordem política, econômica e cultural, de sorte que, enquanto não houver vontade do Estado para amenizar o gravíssimo problema da demora na prestação jurisdicional, faz-se imperiosa a reestruturação de vários institutos do Código, visando a imprimir maior efetividade ao processo”.