A reforma na Lei de Improbidade Administrativa, consubstanciada pela Lei 14.230/21, alterou profundamente a sistemática da tutela dos atos ímprobos, seja em razão das condutas tipificadas como ilícitas, seja no elemento volitivo exigido para tanto ou mesmo nas especificidades processuais que a tutela de probidade exige. Um dos pontos que merece destaque é a legitimidade ativa na propositura da ação de improbidade, alterado expressamente pela redação legal em relação a sistemática anterior e a recentíssimo entendimento jurisprudencial, que retorna o tema ao seu status anterior, como se verá a seguir.
A redação do art.17 da Lei de Improbidade assim prevê: “A ação para a aplicação das sanções de que trata esta Lei será proposta pelo Ministério Público e seguirá o procedimento comum previsto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015), salvo o disposto nesta Lei”. A nova redação legal não deixa qualquer margem de dúvida: o Ministério Público é o único que detém a legitimidade ativa para a propositura do feito. A Fazenda Pública do respectivo ente lesado pelo ato de improbidade foi completamente excluída na possibilidade de ajuizamento da ação pelo legislador reformista. A nova redação legal reservou para a Fazenda Pública apenas a possibilidade de intervir no processo, nos termos do art. 17, § 14: “Sem prejuízo da citação dos réus, a pessoa jurídica interessada será intimada para, caso queira, intervir no processo”. De possível autora, a Fazenda foi reduzida a mera interveniente facultativa.
A nova redação legal ainda impôs à advocacia pública a obrigatoriedade de defesa do administrador público, nos casos em que esta teria atestado a legalidade dos atos que culminaram na ação de improbidade. Nos termos legais “A assessoria jurídica que emitiu o parecer atestando a legalidade prévia dos atos administrativos praticados pelo administrador público ficará obrigada a defendê-lo judicialmente, caso este venha a responder ação por improbidade administrativa, até que a decisão transite em julgado” (art. 17§ 20).
Sabe-se que a reforma tem claro intuito protetivo às ações dos gestores públicos, buscando conferir segurança jurídica e evitar punições pelo mero erro na gestão ou conflito interpretativo das normas administrativas. Contudo, excluir a possibilidade de o ente público ofendido pleitear a reparação e a punição dos agentes infratores e obrigá-lo a defender o agente público parece ultrapassar os limites do razoável. Impede-se a possibilidade da propositura da ação de improbidade, em defesa do ente lesado, para obrigar a defesa, em determinadas circunstâncias, do agente público. Há um evidente desequilíbrio e uma certa “privatização” das ações da Fazenda, na nova sistemática trazida pelo novo regramento.
A redução do papel da Advocacia Pública culminou no ajuizamento das ADI 7042 e 7043 pela Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (ANAPE) e pela Associação Nacional dos Advogados Públicos Federais (ANAFE). Em suma, as alegações dos autores envolvem a impossibilidade dos entes públicos lesados, seja a União, os Estados ou os Municípios de defenderem seus direitos, ficando limitados à atuação ministerial para tanto.
O Ministro Alexandre de Morais acolheu,1 em decisão liminar, o pedido das ADI’s. Na argumentação levantada, o Ministro expõe que a legitimação do Ministério Público para o ajuizamento das ações de improbidade, prevista no art. 129, parágrafo 1º da Constituição Federal não é excludente aos demais entes para buscarem a reparação nesse tipo de feito. Ele diferencia a disposição do inciso I do art. 129 da Constituição, que prevê a privatividade do Ministério Público no ajuizamento das ações penais, do seu respectivo § 1º, o qual aduz “A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei.” No entendimento do Ministro, parece existir uma vedação à exclusividade para o ajuizamento das ações de improbidade nesse sentido.
Para além da discussão constitucional, o ministro aduziu argumentos mais operacionais, de modo que, diante da carência de recursos para a implantação das políticas públicas, o combate à corrupção e à imoralidade administrativa deve ser prioridade de todas as instituições brasileiras. Ademais, conclui que tal limitação restringiria o acesso a justiça, transformando-se em um verdadeiro obstáculo no zelo pela guarda da Constituição e proteção do patrimônio público.
O Ministro demonstra que, no histórico constitucional brasileiro, a Constituição de 1988 primou pelo combate à corrupção, a qual “é a negativa do Estado Constitucional, que tem por missão a manutenção da retidão e da honestidade na conduta dos negócios públicos, pois não só desvia os recursos necessários para a efetiva e eficiente prestação dos serviços públicos, mas também corrói os pilares do Estado de Direito e contamina a necessária legitimidade dos detentores de cargos públicos.” Desse modo, restringir quem pode figurar polo ativo nas ações de improbidade violaria um valor constitucional fundante. Tal monopólio, consequentemente, também se afiguraria contra o princípio da eficiência administrativa, a qual entende-se estar relacionada tanto à atuação estatal propriamente dita, como na eficiência de obter novamente os recursos desviados.
Concorda-se com os argumentos elencados pelo Ministro. De fato, o monopólio do Ministério Público nesse tipo de ação, além de gerar uma demanda muito grande, talvez até muito maior que o órgão pudesse suportar, retira da entidade lesada a possibilidade de recorrer ao Judiciário para a recuperação de valores indevidos, no caso da improbidade por lesão ao erário, por exemplo, ou receber alguma indenização em razão de violação de princípio administrativo. O orçamento da entidade restaria prejudicado, o que afetaria a condução das políticas públicas desempenhadas por esses entes.
Consequentemente, o Ministro também suspendeu os efeitos do art. 3º da lei 14.230/21, o qual concedia o prazo de um ano para que o Ministério Público manifestasse interesse sobre o prosseguimento ou não das ações de improbidade já em andamento. Também suspendeu os efeitos do parágrafo 20 do art. 17, o qual previa a obrigatoriedade de defesa pela advocacia pública que tivessem seus atos considerados legais pela assessoria jurídica.
Recentemente, em 31/08/2022, o Tribunal Pleno do STF restabeleceu a legitimidade ativa concorrente e disjuntiva entre o Ministério Público e das demais pessoas interessadas para a propositura das ações de improbidade e celebração dos acordos de não persecução civil. Também restou decidido que não há obrigatoriedade de defesa do agente réu em processo de improbidade, existindo apenas “a possibilidade dos órgãos da Advocacia Pública autorizarem a realização dessa representação judicial, por parte da assessoria jurídica que emitiu o parecer atestando a legalidade prévia”. Diante disso, nota-se que pela via do controle concentrado de constitucionalidade, o STF reconheceu que os entes públicos também podem ajuizar ações de improbidade em defesa do erário, declarando inconstitucional as restrições legais da reforma que os impediam. Restabeleceu-se, portanto, a possibilidade de um maior controle de eventuais atos de improbidade administrativa.
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Referências
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1. MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 7.042 DISTRITO FEDERAL