Resumo
O presente artigo analisa os efeitos jurídicos da filiação socioafetiva sobre o dever de prestar alimentos no Direito brasileiro, à luz da jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e dos reflexos do Tema 622 do Supremo Tribunal Federal (STF), que consolidou o reconhecimento da multiparentalidade. Fundamentado nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar, o estudo busca compreender de que forma o vínculo afetivo pode gerar obrigações alimentares equivalentes às da filiação biológica, bem como identificar os limites e critérios de imputação desse dever. A metodologia adotada é qualitativa e bibliográfica, com base em doutrina especializada e decisões paradigmáticas do STJ e STF. Conclui-se que a socioafetividade, quando caracterizada pela posse do estado de filho e pelo exercício voluntário das funções parentais, é plenamente apta a irradiar efeitos jurídicos no campo alimentar, reafirmando a afetividade como valor jurídico e elemento estruturante das relações familiares contemporâneas.
Palavras-chave: Filiação socioafetiva. Alimentos. Afetividade. Multiparentalidade. Solidariedade familiar. STJ.
1. Introdução
O Direito de Família brasileiro, nas últimas décadas, passou por uma profunda transformação, impulsionada pela Constituição Federal de 1988, que consagrou a dignidade da pessoa humana e a igualdade entre os filhos como fundamentos essenciais das relações familiares. A partir desse novo paradigma, rompeu-se com o modelo tradicional, de base biológica e patrimonialista, para adotar uma perspectiva afetiva e solidária, que valoriza o cuidado e a convivência como elementos centrais da parentalidade.
Nesse contexto, o afeto deixou de ser uma categoria exclusivamente moral ou emocional, passando a ter reconhecimento jurídico. A filiação socioafetiva emergiu, então, como expressão dessa evolução, configurando-se quando uma pessoa, por ato voluntário e constante, assume o papel de pai ou mãe, exercendo funções parentais típicas — educar, proteger, amparar — mesmo sem vínculo biológico. Essa forma de filiação, reconhecida pela doutrina e consolidada pela jurisprudência, passou a gerar efeitos jurídicos plenos, inclusive o dever de prestar alimentos.
2. Fundamentos constitucionais e civis da socioafetividade
A Constituição Federal de 1988 constitui o marco fundamental da virada afetiva no Direito de Família. O art. 1º, inciso III, estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, irradiando-se por todo o sistema jurídico. O art. 226 reconhece a família como base da sociedade e objeto de especial proteção do Estado, e o art. 227 impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, com absoluta prioridade, a proteção integral à criança e ao adolescente. Por fim, o § 6º do mesmo artigo afirma a igualdade entre os filhos, “havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção”, afastando definitivamente distinções discriminatórias.
No plano infraconstitucional, o Código Civil de 2002 trouxe uma formulação aberta de parentesco ao dispor, em seu art. 1.593, que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Essa expressão — outra origem — foi decisiva para acolher a filiação socioafetiva, abrindo espaço para que o vínculo afetivo, sustentado pela convivência e pela assunção voluntária das funções parentais, fosse reconhecido como gerador de efeitos jurídicos equivalentes ao parentesco biológico.
Além disso, os arts. 1.694 a 1.696 do Código Civil disciplinam o dever de alimentos entre parentes, baseando-se no binômio necessidade–possibilidade e no princípio da proporcionalidade. O Enunciado 341 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal reforça essa ideia ao afirmar que “a relação socioafetiva pode constituir elemento gerador da obrigação alimentar”. Assim, a legislação brasileira fornece suporte normativo suficiente para o reconhecimento da socioafetividade como fonte legítima do dever alimentar.
3. A evolução doutrinária e o papel do afeto como valor jurídico
A doutrina brasileira desempenhou papel essencial na consolidação da socioafetividade como categoria jurídica. Como lecionam Gagliano e Pamplona Filho (2025, p. 501), uma vez comprovada a posse do estado de filho — caracterizada pela convivência pública, contínua e duradoura, somada à intenção de exercer o papel parental —, a filiação socioafetiva produz os mesmos efeitos jurídicos da filiação biológica ou adotiva. Para os autores, o dever de alimentos decorre dessa mesma lógica de equiparação, devendo-se observar o binômio necessidade e possibilidade, inclusive nos casos de multiparentalidade.
Tartuce (2023), embora compartilhe dessa visão, adverte para o risco de banalização do instituto, destacando que a mera convivência não basta para gerar obrigação alimentar. É indispensável, segundo ele, a demonstração inequívoca de que o suposto pai ou mãe socioafetivos exerceram, de modo voluntário e estável, as funções parentais. Já Maria Berenice Dias adota posição mais ampla, sustentando que “quem desempenha funções parentais deve alimentos” (2023, p.150), ressaltando a centralidade do afeto e da responsabilidade como títulos legitimadores das obrigações familiares.
Paulo Lôbo (2011, p. 354), por sua vez, diferencia as fontes do dever alimentar — poder familiar e parentesco —, explicando que, mesmo após cessado o poder familiar, subsiste a obrigação quando comprovada a necessidade do alimentando, em razão do princípio da solidariedade familiar. Assim, o vínculo socioafetivo, quando reconhecido, é plenamente compatível com o regime da obrigação alimentar.
A doutrina contemporânea, portanto, converge no sentido de reconhecer que o afeto, quando acompanhado de elementos objetivos (posse do estado de filho, convivência pública e contínua e voluntariedade), é apto a gerar efeitos jurídicos, consolidando-se como fundamento da responsabilidade familiar.
4. Jurisprudência do STJ: consolidação do dever alimentar na socioafetividade
O Superior Tribunal de Justiça foi o principal protagonista na consolidação da socioafetividade como fonte autônoma de obrigações jurídicas. Em decisão paradigmática, a Ministra Nancy Andrighi afirmou que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, é apta a gerar obrigação alimentar e direitos sucessórios”. Essa decisão, proferida no REsp 1.618.230/RS, consolidou o entendimento de que o vínculo afetivo, quando demonstrado, gera os mesmos efeitos jurídicos da filiação biológica.
Posteriormente, o STJ ampliou essa interpretação, reconhecendo que a existência de ação autônoma para o reconhecimento da paternidade socioafetiva não impede a fixação de alimentos provisórios, quando houver indícios suficientes da relação de afeto e da necessidade do alimentando. Essa linha jurisprudencial evidencia o compromisso da Corte com a proteção integral da criança e do adolescente, evitando que a lentidão processual comprometa direitos fundamentais.
Outra decisão relevante foi o REsp 2.075.230/RJ, em que a Terceira Turma do STJ reafirmou que a relação afetiva consolidada durante a infância e juventude não se desfaz pela simples cessação da convivência na vida adulta, reforçando a estabilidade e a permanência dos efeitos jurídicos decorrentes do afeto. Também se reconhece, na jurisprudência da Corte, a possibilidade de filiação socioafetiva post mortem, desde que comprovado o liame público, contínuo e duradouro.
Esses precedentes revelam que o STJ tem se orientado por uma interpretação humanista e constitucional do Direito de Família, em consonância com a valorização do afeto como vetor de interpretação jurídica.
5. Multiparentalidade e repartição do dever de alimentos
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 622 (RE 898.060/SC), firmou a tese de que “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. Com essa decisão, o STF legitimou o instituto da multiparentalidade, reconhecendo que uma mesma pessoa pode ter, simultaneamente, pais biológicos e socioafetivos, todos com direitos e deveres equivalentes.
No campo dos alimentos, essa decisão tem implicações diretas. A multiparentalidade não aumenta o valor total devido ao alimentando, mas impõe a repartição proporcional da obrigação entre os diversos genitores, de acordo com a capacidade financeira de cada um. O STJ, alinhado a esse entendimento, tem afirmado a possibilidade de responsabilização solidária e proporcional dos pais biológicos e socioafetivos, com base nos princípios da dignidade, solidariedade e melhor interesse da criança.
Essa perspectiva representa uma ampliação da concepção clássica de família, reconhecendo que o vínculo parental pode ser plural e não excludente. O dever de alimentos, nesse contexto, é expressão da corresponsabilidade afetiva e material entre todos os que exercem a função parental.
6. Considerações finais
A consolidação da filiação socioafetiva no Direito brasileiro representa uma das maiores conquistas do constitucionalismo contemporâneo em matéria de família. Ao deslocar o eixo das relações familiares do sangue para o afeto, o ordenamento reafirma o valor da dignidade humana, da solidariedade e do cuidado como fundamentos das obrigações parentais.
A jurisprudência do STJ e do STF, amparada pela doutrina majoritária, reconhece que o afeto é apto a produzir efeitos jurídicos, inclusive o dever de alimentos. O vínculo socioafetivo, quando comprovado pela posse do estado de filho e pelo exercício voluntário da parentalidade, gera obrigações alimentares, ainda que em coexistência com vínculos biológicos. Esse entendimento reflete a evolução do Direito de Família rumo a um modelo mais humano, plural e inclusivo.
Assim, o dever alimentar decorrente da socioafetividade não se confunde com mera liberalidade, mas traduz o compromisso ético-jurídico de quem escolheu ser pai ou mãe. Como bem sintetiza a Ministra Nancy Andrighi, no julgamento do REsp 1.420.398/RS, a paternidade não é um estado transitório, mas um compromisso ético e jurídico que se estabelece com o afeto e se perpetua com a responsabilidade.
Referências
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