O princípio, oriundo da idéia de causa, segundo o qual não somente o autor senão também todos os indivíduos que tomam parte na prática de uma ação criminosa devem ser responsabilizados pelo resultado que a ação produz, tem sido reconhecido em todos os tempos e admitido em todos os sistemas jurídicos. Mas, se as diversas formas de co-participação se distinguem idealmente e como devem-se distinguir, se a parte de cada um na culpa e no fato se determina diferentemente e como deve ser determinada, e como nessa conformidade deve ser medida a pena, são questões sobre as quais as opiniões têm divergido até os nossos dias.1
Franz Von Liszt
No último texto da coluna, tratou-se da influência da ideologia no direito penal. Embora sua repercussão prática seja inquestionável, cuida-se de uma temática mais abstrata e pouco palpável. O artigo de hoje, no entanto, seguirá uma linha direcionada à evolução dogmática, mas isso não significa um total abandono da prática. Até porque o intento é demonstrar a importância do estudo da teoria da autoria e participação no direito penal.
Ao atento leitor não passou despercebido o fato de que não faço referência ao consagrado termo “concurso de pessoas”, senão teoria da autoria e participação. Isso porque sou adepto do que se convencionou denominar de conceito restritivo de autoria, no qual se diferencia o autor do partícipe, em detrimento de um extensivo, por meio do qual todos os que contribuem para a lesão ao bem jurídico são considerados autores.
Esses conceitos podem parecer estranhos e pouco usuais àqueles não habituados com as discussões internacionais, mas cada vez mais nacionais, sobre o conceito de autor para o direito penal. De toda forma, por ora, o leitor deve ter em mente que em toda imputação penal, necessariamente, há uma opção, implícita ou explícita, por um conceito extensivo ou restritivo de autoria. Não tem jeito!
A razão pela qual se afirma a validade lógica da premissa acima só pode ser vislumbrada após um breve conhecimento histórico-dogmático da discussão sobre o conceito de autoria no direito penal. Em outras palavras, questiona-se: quem é o autor do delito?
Franz Von Liszt, representante por excelência do sistema causalista, defende que a autoria é a causação ou o não impedimento de um resultado relevante para o direito penal.2 Isto é, quem põe uma condição para a produção do resultado é por esse responsável.3
O causalismo, no entanto, amplia inadequadamente não só o conceito de autor, mas também a própria aplicação do direito penal. Afinal, as relações de causa e efeito são infinitas. Ao se levar ao extremo o entendimento de que autor é quem contribui com uma causa para a produção do resultado, então, eventualmente, todos nós poderemos ser autores de inúmeros delitos. Isso tornaria a vida em sociedade simplesmente inviável na medida em que um homicídio por disparo de arma de fogo, por exemplo, exigiria a responsabilização penal tanto de quem efetuou o disparo, dos vendedores do artefato, dos transportadores da matéria prima, como de seus genitores e dos genitores desses, etc. Para tentar contornar esse problema “a doutrina dominante […] quer distinguir entre causar e pôr uma simples condição. Quem causa é autor, e, quando causa com outros, co-autor. Quem põe apenas uma condição é cúmplice”.4
Em tese, a sugestão da doutrina majoritária é irretocável, diferenciar a autoria da participação pelas noções de causa e condição. A primeira é, normalmente, definida como a razão pela qual o resultado do delito foi produzido; trata-se como condição todas as demais interferências favorecedoras ao crime. Mas, conforme bem aponta Von Liszt, não é possível defender essa diferença sem recair em uma arbitrariedade sobre o que, efetivamente, é causa e condição.
Sintomático deste problema é o fato de que, na prática, a diferença entre autoria e participação se torna uma questão subjetiva (dolo ou culpa), ou seja, o que, em tese, deveria ser uma discussão objetiva (causa e condição) se torna um tópico sobre culpabilidade (há de se lembrar que, nos anos dourados do causalismo, o dolo e a culpa ainda não estavam alocados no tipo penal). Basta observar que o termo domínio do fato surge justamente pela necessidade de Hegler de explicar que o sujeito do delito só tinha domínio se não estivesse em uma situação de imputabilidade ou alguma outra causa de exculpação.5
Nessa linha subjetiva, Hans Welzel, ao modelar sua teoria finalista do delito – consolidando as noções de tipicidade objetiva e subjetiva – desenvolveu seu conceito de autor como o portador do domínio final do fato. Isso, no final das contas, significa que autor é quem preenche os requisitos objetivos e subjetivos do tipo penal, ou seja, não é mais do que executar o fato de forma final, sobre a base da vontade.6
Roxin, embora concordasse, em alguma medida, com a noção de que o autor executa o tipo penal, nos termos da teoria formal-objetiva, entende que o desenvolvimento de Welzel é merecedor de reparos metodológicos. Sobretudo, à medida em que o finalista em determinado momento, como na relação entre autoria mediata e instigação, adota critérios puramente objetivos, enquanto em outros, como na coautoria se vale de noções eminentemente subjetivas: a vontade de autoria. Isto é, sem dúvida, um óbice a cientificidade da dogmática penal, na medida em que prejudica a previsibilidade do ato jurisdicional e a segurança jurídica.
Para solucionar o problema, Roxin entende que o conceito de autoria não deve ser uma abstração sistematizadora ou uma cláusula geral, mas sim um princípio norteador, a saber, o autor como a figura central do acontecer típico (o qual não carrega nenhuma conotação subjetiva). O que significa que o sujeito mais determinante para a produção do resultado previsto na norma penal incriminadora é o autor, é quem tem o domínio do fato, enquanto os demais são meramente partícipes.7
Assim, em breve resumo, observe que a teoria causalista do delito, ao dizer que autor é quem causa o resultado do delito, se aproxima de um conceito extensivo de autoria. É verdade, no entanto, que existiu uma tentativa de diferenciar a autoria da participação pela causa e condição. Mas também há de se lembrar que foi a partir dela que se iniciou a tradição diferenciadora subjetiva, da qual Welzel bebeu na fonte, embora ele o faça com base em seu modelo finalista e não o causalista. De toda forma, seguindo a linha restritiva de autoria, Roxin entende que o conceito de autoria deve ser avaliado a partir de elementos objetivos. Sobretudo porque os elementos subjetivos constituem objeto de uma questão anterior, vez que, nos delitos dolosos, Roxin adota um conceito restritivo de autoria enquanto nos culposos um extensivo, em razão da única violação do dever objetivo de cuidado.
De toda forma, o que se visualiza é justamente o que se mencionou anteriormente, toda imputação penal passa, necessariamente, pela opção por um conceito restritivo ou extensivo de autoria. Então, para afirmar que alguém é responsável por um fato delitivo, direta ou indiretamente, deve-se acolher um dos dois conceitos. Não há como fugir disso. O profissional do direito penal deve ter o domínio desses conceitos para melhor compreender a qualidade das contribuições dos agentes para o resultado típico e, por consequência, a atribuição de responsabilidade. É aí que está a importância do estudo da teoria da autoria e participação, o qual, por muito tempo, se viu negligenciado pela doutrina nacional.
A razão disso talvez seja o fato de que o artigo 29 do Código Penal Brasileiro, no título IV do concurso de pessoas, dispõe que “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a estes cominadas, na medida de sua culpabilidade”. Por mais que outros dispositivos legais abrandem a extensão punitiva do artigo 29, a exemplo do artigo 31 do CP, carece de se observar que o legislador brasileiro acolheu justamente o conceito causalista de autoria, logo, um modelo extensivo de autoria.
Isso não seria tão inadequado se nós não tivéssemos a noção, não tão moderna, de que o decisivo é não só causar o resultado típico, mas, sobretudo, o produzir em razão da conduta descrita no tipo. É dizer, a norma penal se preocupa, em primeiro lugar, com ações e omissões, não com resultados. Ninguém é punido por causar a morte de alguém, o que eventualmente pode ocorrer, senão por matar alguém, dolosa ou culposamente. Então, no quadro legislativo brasileiro, parece evidente a ausência de uma harmonia entre a teoria da autoria e participação com o desenvolvimento do próprio direito penal, sobretudo, com a tamanha relevância do conceito de tipo penal.
Finalmente, a notícia boa é que esse déficit pode ser contornado pelo profissional do direito penal a partir do estudo e do conhecimento da teoria da autoria e participação. O que faz toda a diferença nos casos de criminalidade econômica, nos quais amiúde há pluralidade de agentes em níveis verticais e horizontais, divisões de tarefas e responsabilidades.
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Mathias Oliveira Campos Santos
Referências
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1. LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Higino Duarte Pereira. – Campinas: Russel Editores, 2003, p. 334.
2. LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Higino Duarte Pereira. – Campinas: Russel Editores, 2003, p. 339.
3. LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Higino Duarte Pereira. – Campinas: Russel Editores, 2003, p. 334.
4. LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Higino Duarte Pereira. – Campinas: Russel Editores, 2003, p. 334.
5. HEGLER. Die Merkmale des Verbrechens. ZStW. T. 36. 1915.
6. WELZEL, Hans. Derecho Penal: Parte General; tradução Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956, p. 105.
7. ROXIN. Autoría y domínio del hecho em Derecho Penal. Trad. da 9ª Ed. Madrid. Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzáles de Murillo. Marcial Pons. 2016. Passim.