A Resolução n.º 60/147 da Assembleia Geral da ONU1 estabelece princípios e diretrizes básicas sobre o direito a recurso e reparação para vítimas de violações flagrantes das normas internacionais de direitos humanos e de violações graves do direito internacional humanitário e apresenta medidas correspondentes ao dever reparatório, dentre as quais, as garantias de não repetição (princípio 23).
As medidas de não repetição têm por finalidade precípua assegurar o cumprimento da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, evitando, assim, a recidiva de violações a direitos humanos.
Tais garantias compreendem2 desde a capacitação e a educação em direitos humanos; a adoção de medidas de direito interno e outras medidas garantidoras de não repetição de violações; até mesmo, a obrigação do Estado de investigar, de julgar e, se necessário, de impor sanções aos responsáveis pelas violações.
Nesse sentido, a CIDH defende que
Una de las dimensiones principales de las obligaciones estatales se vincula al esclarecimiento judicial de conductas, con miras a eliminar la impunidad y lograr su no repetición. Tanto la Comisión como la Corte Interamericanas han condenado la impunidad de hechos que vulneran derechos fundamentales ya que ésta propicia la repetición crónica de las violaciones de derechos humanos y la total indefensión de las víctimas y de sus familiares. Sin duda la adecuada y eficaz administración de justicia por parte del Poder Judicial, y en la medida correspondiente por entes disciplinarios, tiene un rol fundamental no sólo en términos de reparación del daño causado a los afectados, sino también en términos de disminución del riesgo y el alcance del fenómeno.3 (grifo nosso).
Malgrado as referidas garantias, ao Relatório da Situação dos Direitos Humanos no Brasil4 no ano de 2021, a CIDH chamou atenção ao incremento significativo de ameaças, ataques e homicídios de defensores de direitos humanos, sobretudo, dos que atuam em questões fundiárias e ambientais.
A CIDH, no ano de 2018, já havia expressado preocupação com os homicídios de defensores de direitos humanos que atuam em conflitos socioambientais da terra e do campo no Brasil5.
Segundo levantamento da fundação Front Line, o Brasil teria figurado, em 2018, como o 5º país com o maior número de homicídios de defensores e defensoras de direitos humanos no mundo. Por fim, a CIDH aduz preocupação com a segurança dessas pessoas, destacando o dever positivo do Estado e da sociedade brasileira de lhes garantir a vida, a liberdade, e a integridade física a que tem direito, como cidadãos do país, e sem as quais não são capazes de exercer suas atividades profissionais, políticas e cívicas. […] Por sua vez, em seu primeiro relatório sobre o Brasil, a CIDH apontou a situação de extrema vulnerabilidade vivenciada por pessoas defensoras de direitos humanos e a urgência de que o Estado adotasse medidas para garantir a vida e a segurança de tais pessoas. A CIDH destacou, em especial, a situação de defensores e defensoras de direitos humanos com atuação em defesa do meio ambiente, de povos indígenas e de populações envolvidas em conflitos por terra. Não obstante, esse tema foi um dos que mais esteve presente no contencioso contra o Estado perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. No período recente, a CIDH emitiu diversos comunicados manifestando preocupação com o incremento da violência contra defensores e defensoras de direitos humanos, a qual coloca o Brasil em triste posição de liderança internacional em rankings de assassinatos deste grupo de pessoas. […] Durante a visita, a CIDH pôde não apenas confirmar a situação crítica vivenciada por defensores e defensoras de direitos humanos, como também perceber e registrar a deterioração das condições de que dispõem para o exercício de suas atividades. A CIDH considera que um dos principais problemas associados aos conflitos por terra e aos deslocamentos forçados tem a ver com o assédio, as ameaças e os assassinatos contra tais pessoas. A CIDH também observa com preocupação que a impunidade em relação a esses atos de violência rural contribui para sua perpetuação e seu aumento. Em muitos casos, tanto no campo quanto nas cidades, as forças de segurança do Estado atuam mais para intensificar a repressão e a criminalização de grupos historicamente vulneráveis, fracassando em protegê-los e garantir seus direitos.6 (grifo nosso).
Observa, portanto, que, inobstante os avanços reconhecidos pela CIDH7 no que se refere à matéria no Brasil, o Estado encontra-se aquém do mínimo adequado para a garantia efetiva de defensoras e defensores de direitos humanos.
Diante do aumento significativo do número de homicídios de defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil8 envolvendo conflitos fundiários, importa examinar a efetividade das medidas de não repetição, para tanto, analisa-se o caso Garibaldi vs. Brasil, em que o Estado foi responsabilizado pela falta de diligência estatal na apuração, punição e reparação aos familiares da vítima de homicídio, Sétimo Garibaldi, de 52 anos, numa situação ilegal de despejo de trabalhadores sem-terra no Estado do Paraná.
A demanda, em Garibaldi vs. Brasil, tratou da responsabilidade do Estado decorrente do descumprimento da obrigação de investigar e punir o homicídio de Sétimo Garibaldi (52 anos), ocorrido em 27 de novembro de 1998, durante uma operação extrajudicial de despejo das famílias de trabalhadores sem-terra que ocupavam uma fazenda no Município de Querência do Norte – PR.
À prolação da sentença,9 em 23 de setembro de 2009, a Corte declarou, por unanimidade, que o Brasil violou os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial reconhecidos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana em relação com o artigo 1.1.
Quanto às medidas de não reparação, a Corte determinou a realização de atos de reconhecimento público de responsabilidade internacional.
Nesse sentido, o Tribunal considerou que a própria sentença e as medidas de reparação ordenadas constituíam importantes e suficientes medidas para reparar as violações às garantias e à proteção judicial declaradas no caso.
À supervisão de cumprimento de sentença,10 constatou-se:
El Tribunal recuerda que han pasado más de 12 años desde la muerte del señor Garibaldi sin que se hayan esclarecido los hechos ni sancionado a los responsables. Teniendo em cuenta estas circunstancias, Brasil deberá continuar adoptando las medidas y acciones necesarias para el efectivo y total cumplimiento de esta medida de reparación.
As medidas asseguradoras, conforme se vê, não se exaurem com a mera implementação estatal, ao revés, estas devem ser objeto de fortificação contínua e diligente.
Contudo, à similitude do quanto ocorrido no caso Garibaldi vs. Brasil, em Gabriel Sales Pimenta vs. Brasil, houve a inobservância por parte do Brasil quanto às recomendações contidas no Relatório de n.º 144/19;11 razão pela qual a Comissão Interamericana decidiu submeter o feito à jurisdição da Corte Interamericana, diante da falta de implementação satisfatória das recomendações contidas no Relatório de Admissibilidade e Mérito n.º 13/07.
Segundo a CIDH,12 o caso representava uma oportunidade para o desenvolvimento da jurisprudência interamericana sobre os deveres de investigação penal do Estado diante das execuções extrajudiciais para a aplicação de normas e princípios de direito internacional e os efeitos do seu descumprimento a respeito da regularidade do processo penal, assim como a necessidade de combate à impunidade.
Assim, o Brasil foi condenado, em 30 de junho de 2022, pela impunidade na apuração dos fatos relacionados à morte de Gabriel Sales Pimenta, advogado da União dos Trabalhadores Rurais de Marabá – PA, o que traz à tona elementos comprovadores do descumprimento, por parte do Estado brasileiro, de sua obrigação de investigar efetiva e adequadamente homicídios em casos que envolvem homicídios de defensores dos direitos humanos com atuação em questões fundiárias.
No entender destas observações, verifica-se que, apesar dos discretos avanços na proteção dos defensores de direitos humanos no Brasil, nota-se que tais garantias não se mostram efetivas, diante do reiterado descumprimento por parte do Estado.
Tem-se, assim, mister, para além da condenação do Estado à adoção das medidas de não repetição, o acompanhamento pela CIDH, com a aplicação da sanção correspondente ao signatário em caso de descumprimento, sob pena, como visto, da inefetividade do instrumento.
Ressalta-se, por fim, que as medidas de garantia de não repetição transcendem a esfera de proteção de direitos individuais, revestindo-se de proteção abstrata estendida a toda a sociedade, com a finalidade de obstar novas violações a direitos humanos, razão pela qual deve-se primar pelo seu fiel cumprimento.
Referências
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1. ASSEMBLÉIA GERAL DA ONU (AG). Resolução nº 60/147. AG Index A/RES/60/147, 16 de dezembro de 2005.
2. OEA. Relatório Anual dos Trabalhos da Corte Interamericana de Direitos Humanos 2010. OEA/Ser.L/V./II.147. Doc.1, adotado em 2011, p. 11-12.
3. CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório sobre Segurança Pública e Direitos Humanos. Washington: CIDH, 2009. Disponível em: https://bit.ly/3JBNQKS. Acesso em: 07 de abr. de 2022.
4. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 9 12 fevereiro 2021 Original: Português.
5. CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos. CIDH condena assassinatos de defensores de direitos humanos vinculados ao direito ao meio ambiente, à terra e aos trabalhadores rurais no Brasil. 27 de jul. de 2018. Disponível em: https://bit.ly/3JNWYMF. Acesso em: 07 abr. de 2022.
6. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 9 12 fevereiro 2021 Original: Português.
7. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 9 12 fevereiro 2021 Original: Português.
8. CPT. Conflitos no Campo Brasil 2017. 30 de mai. de 2018. Disponível em: https://bit.ly/429eMJ5. Acesso em: 07 de abr. de 2022.
9. CORTE IDH. RESOLUCIÓN DE LA CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS DE 20 DE FEBRERO DE 2012. Disponível em: https://bit.ly/3ZOaTHT. Acesso em: 07 de abr. 2022.
10. CORTE IDH. RESOLUCIÓN DE LA CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS DE 20 DE FEBRERO DE 2012. Disponível em: https://bit.ly/3ZOaTHT. Acesso em: 07 de abr. 2022.
11. OEA/Ser.L/V/II.173 Doc. 159 28 setembro 2019 Original: Português.
12. CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso Garibaldi vs. Brasil. Sentença de 23 de setembro de 2009. Disponível em: https://bit.ly/3ZMYJiC. Acesso em: 07 de abr. de 2022.