Justiça e Direito confluem ao longo da história humana. A normatividade, isto é, a padronização e previsibilidade comportamental, sempre se ateve a noções de certo e errado, de justo e injusto.
A justiça, sob essa perspectiva sempre foi um tema caro a ciência jurídica, e a concretude do Direito, mantendo-se quase como que um princípio, um conceito ao mesmo tempo abrangente e prático, situando-se como finalidade da própria lei.
Essa acepção restrita, que considera a justiça enquanto ideal e ao mesmo tempo como produto da aplicação do ordenamento, como externalização da lei que se materializa no jugo que o Estado coloca sobre a sociedade, é tão antiga quanto a precisão de regras estabilizadoras de uma tribo.
O clamor que muito se escuta nos telejornais, é a pura manifestação dessa ideia de justiça enquanto consequência, e não como algo que emana do corpo social.
Talvez, essa noção seja uma dívida do Estado que nos tutela, que ludicamente se apoia em semblante democrático, mas que insiste em coordenar a vida dos indivíduos e das coletividades, sem ao menos apresentar a possibilidade de emancipação. O jargão, “eu só quero justiça”, soa como um grito de esperança, que condiciona o indivíduo a pensar que a justiça só se dá pela via do poder estatal, sendo questão alheia à esfera social.
Faz necessário pensar a justiça enquanto produto anterior a emergência de resolução de conflitos, de uma justiça que se dá pelo o indivíduo e em prol dele.
Não falo aqui, de justiça pelas próprias mãos, a qual lança o ser a barbárie, falo de uma justiça que atende a ética, ao agir pela coisa pública, ao agir em prol do bem que os gregos postulavam, a uma manifestação do indivíduo humano perante os seus pares e perante o espaço que habita, visando a plenitude de direitos humanos e sobretudo a dignidade, não só respectiva aos homens, mas a todos os seres numa ordem ecossistêmica.
Não à toa hoje já se fala em uma justiça ambiental, uma justiça que se alinha com um olhar ecologicamente equilibrado da relação entre seres humanos e meio ambiente. A justiça, especialmente nesse sentido, ruma a uma direção na qual já se enunciava na República de Platão. Tal filósofo, a partir de diálogos soube construir mediante raciocínio lógico de coerência semântica e alegórica, conceitos que até então se postavam nublados, e vulneráveis ao arbítrio das opiniões.
Atento ao momento da Atenas do séc. IV, a qual emanava o sentimento do sofismo, Platão em referida obra, disseca e explica o conceito de justiça, mediante a relação que possuia com a alma e com a cidade, tendo essas instâncias também uma conexão entre si. A noção de justiça, hoje restrita a função judiciária do Estado, é pelo contrário, era admitida por Platão como um ideal de projeto social, e ao mesmo tempo dizia respeito a intrínseca relação entre as potências da alma, reconhecidas no indivíduo.
Assim como na cidade, em que Platão pondera a necessária existência de três classes, quais sejam, a dos governantes, dos auxiliares, dos artífices e comerciantes, na alma visualizava também três dimensões respectivas, sendo elas a da sabedoria, da coragem e da temperança. Por essa análise, percebia a justiça como conjunto harmônico que tais classes e suas respectivas virtudes produziam. De maneira mais precisa, adequava a justiça a definição do exercício em excelência da função e da potência que se apresenta como vocação, isto é, no fazer aquilo que compete a cada um.
Fazer aquilo que se é propenso a fazer, se conhecer e dessa forma contribuir para o bem-estar da alma, do corpo, e por consequência do próximo e da cidade. A justiça nesse sentido, precede a concepção da normatividade, das regras e a aplicação dessas no cenário pragmático. É antes de tudo uma percepção, uma situação de autocompreensão, de autoconhecimento o qual reflete-se na maneira como nos enxergamos, como percebemos o ambiente e como lidamos com o outro.
Acaba por esse motivo, escapando ao judiciário, uma vez que toca em questões prévias a provocação da função estatal. Logo, pela interpretação da filosofia platônica, a função judicial do Estado, não se presta em fazer justiça, mas sim, a mitigar a injustiça, a atenuar a corrupção da ética. A Justiça, por outro lado é fruto da organização social e da participação de cada indivíduo na cidade, e nas ramificações laborais e intelectuais que se encontram no âmbito da cidadania. Por isso, se sustenta na convergência entre alma e cidade.
É um conceito que em tese Platão consegue fechar, mas que permanece no campo da conjectura, da utopia, porque difícil é imaginar um sociedade desfeita de conflitos.
Todavia, suscitar a reflexão de que tal conceito não deve se restringir ao poder judiciário, contribui para pensarmos, ainda que minimamente, na possibilidade de uma sociedade ética, de mútua preservação de direitos e livre manifestação das formas de ser dos indivíduos. Por óbvio, não se quer aqui postular o judiciário como antagonista da própria justiça, mas sim, colocá-lo como a instância da exceção, à medida que a justiça pode se fazer apreensível na cotidianidade e na sociedade, não sendo necessariamente uma consequência do desfecho judicial de um conflito.
Pensar dessa forma, é lançar ideias que escapam ao reducionismo que a régua social, institucional e tradicional nos impõe, instigando uma busca interior e que ao mesmo tempo possui sensíveis repercussões na interação com o outro, com a coletividade e com o espaço. A promoção da justiça enquanto excelência na prática cotidiana, no agir com pretensões de se alcançar o bem e o equilíbrio do corpo social é um passo para se melhorar a sociedade.
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Referências
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CASERTANO, Giovanni. Uma introdução à República de Platão. São Paulo: Paulos, 2011
PLATÃO. A República. São Paulo:MEDIAfashion: Folha de S. Paulo, 2021.