A Miscigenação Pacífica Não Existiu – Uma Crítica à Luz da Ideologia Freyriana

A Miscigenação Pacífica Não Existiu – Uma Crítica à Luz da Ideologia Freyriana

É muito conhecida e também muito criticada a vertente ideológica de Gilberto Freyre.1 Apesar de não ter como negar sua contribuição para com as ciências sociais, é preciso analisar seus argumentos e refutá-los quando necessário. É preciso sanar os erros interpretativos contido em suas obras, mais precisamente, Casa-grande & senzala.2

Como já discutido anteriormente3 é evidente o viés racial errôneo nas afirmações Freyrianas sobre a miscigenação, que posteriormente foi uma das bases ideológicas que fundamentou o mito da democracia racial. Assim, o escritor menciona uma pacífica e benéfica “mistura” entre as raças. O grande problema de Casa-grande e senzala, portanto, é a relação direta que Freyre estabelece entre a atração sexual e a tolerância racial, como se estas fossem grandes pacifistas no período escravista.4

O professor e historiador Ronaldo Vainfas destaca que para Freyre o africano é portador de cultura que irriga a religião, a culinária, a linguagem, os sentimentos e tudo o mais na sociedade colonial. O mesmo se pode dizer do índio, embora em menor escala.5 Neste sentido, é por constatar que os portugueses se sentiram sexualmente atraídos por índias, negras e mulatas que Freyre deduz, equivocadamente, a ausência de preconceito racial entre estes colonizadores.6

É possível perceber que não se nega em seus escritos o estado de luta e resiliência escravista, entretanto, menciona a miscigenação como um ato consentido entre as duas raças. As próprias palavras de Freyre o evidenciam:

até certo ponto tão grande influência do clima amolecedor, atuaram sobre o caráter português, entesando-o, as condições sempre tensas e vibráteis de contato humano entre a Europa e a África; o constante estado de guerra (que entretanto não excluiu nunca a miscigenação nem a atração sexual entre as duas raças, muito menos o intercurso entre as duas culturas), a atividade guerreira, que se compensava do intenso esforço militar relaxando-se, após a vitória, sobre o trabalho agrícola e industrial dos cativos de guerra, sobre a escravidão ou a semi-escravidão dos vencidos. Hegemonias e subserviências essas que não se perpetuavam.7 (Grifos nossos)

O chamado intercurso entre as raças nada mais foi que a força imposta sob as mulheres negras8 e indígenas escravizadas.

O autor ainda atribui que a miscigenação praticada no Brasil corrigiu a distância social, entre os mundos, a casa-grande e a mata tropical. Esta afirmação é completamente equivocada se analisarmos o contexto de abusos sofridos pelos escravos em razão da posição de poder que se encontravam seus senhores. Laurentino Gomes, concluiu que o tom depreciativo se reflete na historiografia tradicional, que jamais se preocupou em denunciar em toda a sua crueza o assédio sexual, o estupro e outras formas de violências nas relações entre escravas e escravizadores.9

Para Gomes, Freyre ainda destaca e afirma que a mulher negra e indígena aparecem invariavelmente como sexualmente disponíveis, as “que nos iniciaram no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a primeira sensação completa de homem”, como afirmava a respeito da chegada dos colonizadores europeus ao Brasil: As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho.10 Afirmação completamente equivocada.

É possível perceber que a descrição do contexto escravista pode variar de acordo com quem o interpreta e a época. As crenças sociais daquele que reproduz discurso, evidencia alguns dos problemas sociais que pretendemos findar até a extinção, como por exemplo a forma como o corpo preto e indígena se encontra em disputa na sociedade atual. Por isso, é preciso desmistificar as narrativas e evidenciar que todo e qualquer poder posto sobre o corpo escravizado neste sentido era uma tentativa de controle social e não um mero consentimento.

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Olívia Maria Silva Felício

 

Referências

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1. FREYRE, Gilberto. 1900-1987. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Gilberto Freyre; apresentação de Femando Henrique Cardoso. – 481 ed. fav. -:- São Paulo: Global, 2003. – (Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil; 1)Fundação Gilberto Freyre, 2003 Recife-Pernambuco-Brasil 48″ edição, 2003, Global Editora.

2. Essa obra foi escrita à luz dos anos 1900 a 1987, um período marcado por divisões raciais significativas em razão da abolição da escravatura.

3. e refiro aos textos anteriormente publicados na coluna Decolonialidade Jurídica, nos textos de ‘Decolonizar o Direito é Tensionar a Modernidade’ e “Representatividade Institucional Importa?” que retrataram um pouco da ideologia da miscigenação pacífica. Entretanto, fragmentos da mesma crítica podem ser encontrados nos outros textos publicados. Disponíveis em: https://bit.ly/3EXAHWS.

4. VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira. Revista Tempo, 8 agosto de 1999, p. 8.

5. VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira. Revista Tempo, 8 agosto de 1999, p. 9.

6. VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira. Revista Tempo, 8 agosto de 1999, p. 9.

7. VAINFAS, Ronaldo. Colonização, miscigenação e questão racial: notas sobre equívocos e tabus da historiografia brasileira. Revista Tempo, 8 agosto de 1999, p. 31.

8. A menção de Negras nesta colocação tem o sentido de comunidade de pessoas pretas e pardas, ou miscigenados.

9. GOMES, Laurentino. Escravidão – Volume 2 – Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil. 2021. 1ª Ed. Globo Livros.

10. GOMES, Laurentino. Escravidão – Volume 2 – Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil. 2021. 1ª Ed. Globo Livros.

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