A oitiva de crianças vítimas de abuso sexual no judiciário: uma breve perspectiva psicológica

A oitiva de crianças vítimas de abuso sexual no judiciário: uma breve perspectiva psicológica

Sad Child

Apesar da existência de indícios de sua ocorrência ainda na Antiguidade, o abuso sexual de crianças e adolescentes somente se consolidou como um problema de saúde pública que demanda atenção e estudos nos últimos sessenta anos. Como destaca Cavalcanti et all (2006) “um século separa o primeiro trabalho científico publicado sobre maus-tratos contra crianças e adolescentes e sua inclusão como assunto de interesse das áreas de pediatria e saúde pública”. Por conseguinte, essa imaturidade científica se expressa nas situações que têm ganho notoriedade pública nos últimos tempos, como o caso do pedido de interrupção de gravidez por uma criança vítima de estupro.

É um consenso na psicologia que o abuso sexual infantil gera problemas no desenvolvimento humano, mas ainda não foi possível determinar o grau de sua influência e os tipos de psicopatologias que ele pode desencadear e/ou agravar. Alguns autores relatam que “o abuso sexual deixa a criança traumatizada, pois deteriora a capacidade reflexiva e o sentido de self, o que torna o ciclo de desenvolvimento muito perturbado”1 e também que “o abuso sexual na infância é visto como fator de risco para a vitimização sexual na idade adulta, independentemente da atuação familiar (Messman-Mooree Brown, 2004), e para o desenvolvimento de psicopatologias futuras (Molnar et al., 2001).”2

Pelos motivos elencados acima, entre diversos outros, a dignidade sexual infantil é tutelada pelo estado, contando com a previsão de crimes passíveis de sanção penal. No entanto, para eficácia e exercício do poder sancionador do estado, tendo em vista o paradigma do estado democrático de direito, se faz necessária a apuração do ilícito mediante o devido processo legal. Nessa seara, surge uma nova problemática tocante à produção probatória para fins de comprovação da prática do ilícito, tendo em vista que:

Diante da suspeita de abuso e da falta de provas concretas no seu corpo, além de toda a dinâmica que envolve o fenômeno do abuso sexual intrafamiliar, as declarações das crianças podem se tornar referência importante e às vezes decisiva na formalização de uma prova judicial (Brito e cols., 2006; Daltoé-Cezar, 2007; Davies, Wescott, & Horan, 2000; Juárez-López, 2006; Koshima, 2003; Morales & Schramm, 2002 apud Froner et all (2008)).

Assim, por muitas vezes as declarações prestadas pela vítima são o instrumento determinante para comprovação do fato, contudo, a forma de realização dessa oitiva e passagem pelo processo judicial pode ser também uma atividade reforçadora da experiência traumática passível de causar mais danos.

Anteriormente, essa escuta era realizada por um Juiz de Direito, através de perguntas objetivas em uma sala de audiência formal. De acordo com o apurado em revisão bibliográfica sobre o tema “nessas ocasiões de aferição de provas, a palavra da criança é muitas vezes confrontada com a versão do agressor, que pode ser ouvido ou questionado na presença da criança, repassando a responsabilidade total à vítima, considerando assim seu relato inválido, desacreditado, infantil e fantasioso.”.3 No entanto, a partir do ano de 2017, houve alteração legal realizada no Estatuto da Criança e do Adolescente promovida pela Lei 13.431/2017, que estabeleceu o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente e regulamentou a oitiva infantil.

Nesse sentido, a escuta especializada ou depoimento pessoal da criança e adolescente foram institutos por lei. Segundo o diploma legal, as oitivas deveriam ser sempre realizadas em local apropriado, com garantia de privacidade e acompanhamento de profissional especializado. Ademais, nesse contexto deveria ser assegurado à criança a livre narrativa sobre os fatos, sem a leitura de peças processuais e contando sempre com um auxílio de um profissional para adaptar a linguagem para a melhor compreensão da criança ou adolescente.

Tal organização se faz necessária, visto que a criança ainda não desenvolveu completamente as capacidades cognitivas necessárias para compreender tudo o que se passa em um contexto judicial. Segundo Feldman et all (2013) “não há nenhum momento objetivamente definível em que uma criança se torna adulta ou um jovem torna-se velho. De fato, o próprio conceito de infância pode ser visto como uma construção social”, mas há algumas marcas do desenvolvimento dito como normal que possibilitam a realização de tarefas demandadas pelo mundo atual.

Por exemplo, o autor ensina que aproximadamente entre 7 e 12 dose anos ocorre o terceiro estagio do desenvolvimento cognitivo piagetiano, “durante o qual as crianças desenvolvem pensamento lógico, mas não abstrato”. Nesse sentido, destaca que nessa fase “as crianças podem pensar logicamente porque conseguem levar em conta os vários aspectos de uma situação. Entretanto, a maneira de pensar delas é ainda limitada a situações reais no aqui e no agora”. À vista disso, ainda não são considerados plenamente capazes de compreender situações complexas e tomar decisões que se prolongam no tempo.

Por esse motivo, as perguntas realizadas pela Dra. Joana Ribeiro Zimmer no caso da menina de 11 anos, gravida após ser vítima de um estupro, revelam um descompasso com as normas legais e com os preceitos psicológicos vigentes. Do vídeo disponibilizado pelo site Intercept Brasil4 denota-se o uso de uma linguagem adulta, pautada na norma culta padrão, sem confirmação de que a criança estava entendendo o teor dos questionamentos, além da utilização de argumentação persuasiva.

No sentido da problemática exposta, a psicóloga Thais Micheli Setti relatou ao site Intecept que em atendimento psicológico a criança mostrou que não entende o que está acontecendo.5 Sendo assim, verifica-se a necessidade do acolhimento pelo profissional qualificado a fim de garantir uma escuta condizente com a etapa do desenvolvimento psicossocial no qual a criança se encontra, com a elaboração de uma linguagem compreensível que não exponha a criança a conteúdos que ela ainda não é capaz de compreender.

Diante do exposto, tendo em vista as várias possibilidade de maus tratos contra as crianças e adolescentes (abusos físicos, sexual, psicológico, negligência etc) e a incapacidade de definição da extensão desse dano, é imperiosa a participação de profissionais capacitados em equipe multidisciplinar nos órgãos do poder judiciário a fim de garantir uma remediação dos danos já sofridos.  O ocorrido é uma grave violação dos direitos da criança, realizado pelo próprio estado em desrespeito a normal Constitucional, prevista no art. 227 do diploma legal, que garante a proteção da infância pela família, sociedade e pelo Estado.

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Andressa Souza Oliveira

 

Referências

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PAPALIA, Diane E.; FELDMAN, Ruth Duskin (Colab.). Desenvolvimento Humano. 12ª ed. Porto Alegre: AMGH Editora, 2013.

GUIMARÃES, Paula. LARA, Bruna. DIASH, Tatiana. 2022. “Suportaria ficar mais um pouquinho” Disponível em: https://bit.ly/3xNc8KG.

Escuta especializada X Depoimento especial. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3tZFcgZ

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

1. Thouvenin, 1997 apud FRONER, Janaina Petry e Ramires, Vera Regina Röhnelt. Escuta de crianças vítimas de abuso sexual no âmbito jurídico: uma revisão crítica da literatura. Paidéia (Ribeirão Preto) [online]. 2008, v. 18, n. 40 [Acessado 22 Junho 2022], pp. 269. Disponível em: https://bit.ly/3OjVObf. Epub 12 Fev 2009. ISSN 1982-4327.

2. ADED, Naura. Liane de Oliveira et al. Abuso sexual em crianças e adolescentes: revisão de 100 anos de literatura – Abuso sexual em crianças e adolescentes: revisão de 100 anos de literatura. Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo) [online]. 2006, v. 33, n. 4 [Acessado 22 Junho 2022], pp. 204-213. Disponível em: https://bit.ly/3xPWfmF. Epub 18 Set 2006. ISSN 1806-938X.

3. Azambuja, 2005; Azambuja, 2006; Dobke, 2001 apud Froner et all, p.270.

4. https://bit.ly/3nf9ad3

5. https://bit.ly/3nf9ad3

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