Não são raros os episódios em que um indivíduo se depara com anúncios, em suas redes sociais, de produtos ou serviços que acabara de mencionar para alguém ou pesquisar em um mecanismo de busca on-line.
O que por muitos passaria despercebido como mera coincidência, atualmente é o ponto de partida para uma análise doutrinária relacionada à publicidade comportamental e seus efeitos na sociedade digital. O denominado “espaço-mercado” clama pela atenção centralizada e insaciável dos consumidores, que são notavelmente influenciados por uma publicidade personalizada, elaborada através de dados coletados.
Assim, as empresas se utilizam de estratégias oriundas de um marketing algorítmico que, “em simples termos, trata-se de expediente a partir do qual as estratégias publicitárias são reorganizadas por mecanismos como machine learning e algoritmos para que determinado anúncio seja apresentado ao consumidor que (potencialmente) tenha maior necessidade de consumir o produto ou serviço anunciado”.1
Neste sentido, “o consumidor é exposto a uma mensagem publicitária sob medida, cujas chances de se enquadrar dentro de seus interesses é presumivelmente maior, de acordo com os critérios do mecanismo utilizado”.2
Isso se torna possível quando o usuário das redes sociais disponibiliza para as plataformas seus dados pessoais em troca de um serviço aparentemente gratuito,3 mas, sem saber que, “ao mesmo tempo em que é compelido a fornecer seus dados na rede, poderá ver essas mesmas informações voltadas contra si num futuro não muito distante, a depender de como elas serão utilizadas”.4
Com efeito, “ao coletar e analisar ainda mais dados sobre os usuários, os anunciantes online dão um grande passo para determinar se seus anúncios influenciam as compras e como melhor influenciar as compras”,5 sendo que, negativamente, “a publicidade comportamental pode influenciar na tomada de decisão dos indivíduos, aumentando o consumo de forma não racional diante da minoração da liberdade de escolha”.6
O cruzamento de dados entre as plataformas e os fornecedores é possível através de uma análise preditiva de comportamentos padrões, realizada a partir da “mineração” algorítmica (data mining) e a criação de um perfil (profiling), que montam uma espécie de avatar da figura do consumidor, sem que ele tenha o devido conhecimento.
Mateus de Oliveira Fornasier, Norberto Milton Paiva Knebel, Fernanda Viero da Silva7 dissertam que:
O data mining é um processo definido pela descoberta, sejam por meios manuais ou automatizados. É útil para a análise exploratória de questões sem noções predeterminadas — então, a mineração de dados é a busca pela novo, valorável e não trivial em grandes volumes de dados.
O profiling, em seu turno, é definido como:
O profiling pode ser descrito como o processo de coleta de informações e dados pessoais, combinando esses dados individualizados com outros (por exemplo, dados pessoais, factuais, estatísticos) e analisando-os por meio de algoritmos com o objetivo de prever as condições futuras, decisões ou comportamento de uma pessoa. (Tradução nossa)8
Nesse toar, percebe-se que o ciberespaço está definido pela manipulação de vontades de acordo com o perfil traçado pelo cruzamento entre dados, representando, assim, violações às disposições normativas que são pautadas como os novos danos da era tecnológica, como a moldagem forçada de padrões sociais e de consumo, que, em seu turno, se amoldam pela irracional eficácia de dados,9 ocasionando a chamada discriminação algorítmica, em que os perfis individuais são tratados como produtos e posteriormente vendidos.10
A crescente complexidade dos sistemas algorítmicos dificulta que pessoas não-especializadas possam compreender as tomadas de decisões algorítmicas, uma vez que tais métodos são marcados por notável falta de transparência em relação aos usuários, sendo a opacidade característica proposital, de modo que “o controle dos dados pessoais requer uma justificativa sobre tudo que possa nos afetar, desde a fase de coleta até o descarte”11 .
Destarte, é preciso entender que a utilização massiva dos dados dos consumidores, que não autorizam, de forma clara e transparente o uso de suas informações para determinados fins, pode caracterizar uma nova espécie de dano que precisa ser combatida. É observado que “não são os dados, em si, que se busca tutelar, mas, sim, a pessoa humana”.12
Com efeito, “fica cada vez mais nítida a utilização das tecnologias de comunicação e informação no âmbito das publicidades, expondo os consumidores a novas espécies de riscos, ameaças e danos”.13
Certo é que com o advento da Lei Geral de Proteção de Dados, novas diretrizes foram pautadas, objetivando, ao menos em uma fase inicial, o alcance da função precaucional da responsabilidade civil, tônica da matéria na atualidade. Nesse viés, o artigo 2º, inciso II da referida lei demonstra a busca pela eficácia normativa em um contexto de utilização supermassiva de dados, rechaçando possíveis danos.
Para promover o alinhamento devido entre a tutela da pessoa humana e as novas técnicas publicitárias, deve ser quebrado o paradigma da opacidade de dados, demonstrando ao consumidor, de forma cristalina, que seus dados pessoais estão sendo utilizados para direcionamento de anúncios, que possuem o real potencial de comandar suas escolhas de modo automatizado.
Destarte, mister é salientar que o contexto algorítmico que permeia as tomadas de decisão a partir da análise comportamental retira, em princípio, a autonomia da pessoa humana, bem como a sensação de livre arbítrio que permeia a figura central do indivíduo moderno. Afinal, somos nós quem decidimos nossos passos ou somos controlados pelos mecanismos de Inteligência Artificial?
____________________
Caio César do Nascimento Barbosa
Referências
________________________________________
1. MARTINS, Guilherme Magalhães; JÚNIOR, José Luiz De Moura Faleiros; BASAN, Arthur Pinheiro. A responsabilidade civil pela perturbação do sossego na internet. Revista de Direito do Consumidor, p. 227-253, 2020, p. 233.
2. BRASIL. Escola Nacional de Defesa do Consumidor. A proteção de dados pessoais nas relações de consumo: para além da informação creditícia. Brasília, DF: ENDC, 2010. (Caderno de Investigações Científicas, v. 2), p. 63. Disponível em: https://bit.ly/3CKJnih. Acesso em: 21 nov. 2021.
3. Cumpre destacar, em sentido, que as plataformas de redes sociais integram a relação jurídica de consumo, de acordo com o Recurso Especial nº 1.349.961/MG, posto que elas são remuneradas de forma indireta, atraindo, assim, as disposições estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor.
4. FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro; ROSENVALD, Nelson. Danos a dados pessoais: fundamentos e perspectivas. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 11.
5. No original: By collecting and analysing even more data about users, online advertisers take a big step towards determining whether their ads influence purchases, and how to better influence purchases. STUCKE, Maurice E.; GRUNES, Allen P. Big Data and Competition Policy. Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 27.
6. QUINELATO, Pietra Daneluzzi. Publicidade comportamental: há livre-arbítrio no consumo do século XXI?. Magis – Portal Jurídico. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3HNuWxr. Acesso em: 21 nov. 2021.
7. FORNASIER, Mateus de Oliveira; KNEBEL, Norberto Milton Paiva; DA SILVA, Fernanda Viero. Mineração de dados e publicidade comportamental: impasses para a regulação do spam e dos nudges na sociedade burocrática do consumo dirigido. Rei – Revista Estudos Institucionais, v. 6, n. 3, p. 1536-1559, dez. 2020, p. 1539. Disponível em: https://bit.ly/3qYgdKi. Acesso em: 16 nov. 2021.
8. No original: Profiling can be described as the process of gathering information and personal data, combining this individualised data with other (eg, personal, factual, statistical) data and analysing it through algorithms with the aim of predicting a person’s future conditions, decisions or behaviour. In: DÖHMANN, Indra Spiecker et al. Multi-Country – The Regulation of Commercial Profiling: A Comparative Analysis. European Data Protection Law Review, Lexxion, v. 2, n. 4, p. 535-554, 2016. Disponível em: https://bit.ly/3xewThM. Acesso em: 21 nov. 2021.
9. Nesse sentido, ver: PASQUALE, Frank. The black box society: the secret algorithms that control money and information. Cambridge: Harvard University Press, 2015.
10. Nesse sentido, ver: RIELLI, Mariana Marques. Críticas ao ideal de transparência como solução para a opacidade de sistemas algorítmicos. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coords.). Direito Digital e Inteligência Artificial: Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2021, p. 437-447.
11. FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro; ROSENVALD, Nelson. Danos a dados pessoais: fundamentos e perspectivas. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 16.
12. MODENESI, Pedro. Privacy by design e código digital: a tecnologia a favor de direitos e valores fundamentais. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 73.
13. MARTINS, Guilherme Magalhães; BASAN, Arthur Pinheiro. O marketing algorítmico e o direito de sossego na internet. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coords.). Direito Digital e Inteligência Artificial: Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2021, p. 352.