A pluralidade das estruturas familiares e a evolução do conceito de família no brasil: uma análise a partir de a Grande Família

A pluralidade das estruturas familiares e a evolução do conceito de família no brasil: uma análise a partir de a Grande Família

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Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar a evolução do conceito jurídico de família no Brasil e o reconhecimento da pluralidade das estruturas familiares à luz da Constituição Federal de 1988, da doutrina contemporânea e de representações culturais como a série A Grande Família. Busca-se demonstrar como o Direito de Família passou de um modelo patriarcal e hierarquizado, centrado na autoridade do pai e na indissolubilidade do casamento, para uma concepção plural, afetiva e inclusiva, orientada pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, igualdade e liberdade. A série A Grande Família é aqui tomada como objeto de análise por retratar, de maneira simbólica e crítica, as transformações sociais e jurídicas que moldaram a noção de família na contemporaneidade.

Palavras-chave: Direito de Família; Pluralidade; Afetividade; Cultura; A Grande Família.

1.  Introdução

A família, como construção histórica, social e jurídica, reflete as transformações da sociedade e do Estado. Desde o período colonial até a contemporaneidade, o conceito de família no Brasil passou por um processo de ressignificação, que culminou na consagração do pluralismo familiar.

Durante séculos, a família foi compreendida sob a ótica patriarcal e patrimonialista, em que predominava a autoridade do marido e o papel submisso da mulher. A promulgação da Constituição Federal de 1988, entretanto, marcou a transição para um modelo centrado na dignidade da pessoa humana e na afetividade como fundamento jurídico das relações familiares (DIAS, 2022, p. 47).

A série televisiva A Grande Família, exibida entre 2001 e 2014 pela Rede Globo, constitui um espelho da sociedade brasileira e de suas dinâmicas familiares. Por meio de personagens que representam a classe média urbana, a produção revela as tensões entre o modelo tradicional e as novas formas de convivência, demonstrando, de maneira lúdica, o pluralismo que caracteriza o Direito de Família contemporâneo.

O estudo de A Grande Família não busca uma leitura estética da obra, mas a compreensão de sua função simbólica como representação social da família brasileira — um recurso metodológico que permite correlacionar o fenômeno jurídico com a experiência cotidiana. Nesse contexto, a sua escolha como objeto de análise justifica-se por seu caráter representativo da sociedade brasileira e pela longevidade de sua exibição, que permitiu acompanhar, de modo simbólico e acessível, as mudanças nas dinâmicas familiares, nas relações de gênero e nos valores que estruturam o núcleo doméstico. Conforme Maria Berenice Dias (2017, p. 43), o Direito de Família “é o ramo do direito civil mais sensível às transformações sociais”, de modo que compreender as representações culturais da família é também compreender o movimento histórico que molda a própria norma jurídica. Assim, a série atua como um reflexo social e cultural das transformações familiares, evidenciando a transição do modelo tradicional — centrado na autoridade parental e na rigidez de papéis — para uma estrutura plural, afetiva e igualitária, em consonância com a principiologia constitucional contemporânea.

Dessa forma, a análise de A Grande Família ultrapassa o campo da ficção e adquire relevância acadêmica ao fornecer um ponto de observação privilegiado sobre a evolução das concepções de família, contribuindo para uma leitura interdisciplinar entre o Direito, a Sociologia e a Cultura. A pesquisa, portanto, tem por finalidade examinar a evolução histórica, normativa e cultural da noção de família, a partir da leitura interdisciplinar do Direito e da produção cultural brasileira.

2.  A evolução histórica e jurídica da família no Brasil

O conceito de família sempre esteve condicionado à estrutura social e política vigente, acompanhando as transformações históricas e culturais da sociedade. Como observa Miguel Reale (2002, p. 67), o fenômeno jurídico deve ser compreendido em sua dimensão histórica, axiológica e normativa, sendo a família uma das expressões mais evidentes da interação entre fato social, valor e norma. No Brasil colonial e imperial, a família era entendida como célula reprodutora da ordem moral e religiosa, fortemente influenciada pelo catolicismo, em que o casamento religioso representava o único meio legítimo de constituição familiar. Paulo Lôbo

(2018, p. 31) destaca que esse modelo possuía “caráter institucional e patrimonialista”, voltado à transmissão de bens e à preservação da honra, e não à realização individual dos sujeitos. Assim, o adultério ou a ilegitimidade dos filhos implicavam exclusão social e jurídica, reforçando o papel moralizador do núcleo familiar.

O Código Civil de 1916, elaborado por Clóvis Beviláqua, consolidou esse modelo patriarcal, hierárquico e patrimonialista. A concepção de família, segundo o próprio Beviláqua (1916, p. 89), revela a matriz patriarcal e institucionalista que predominou no Direito Civil brasileiro até meados do século XX. Ao definir a família como “instituição natural e necessária”, Beviláqua vinculava o núcleo doméstico à ordem moral e pública, e não à realização individual dos sujeitos.

Essa visão contrasta diretamente com a perspectiva contemporânea, na qual a família é compreendida como espaço de afeto e liberdade, e não mais de hierarquia e tutela. O contraste entre o modelo beviláquiano e a pluralidade retratada em A Grande Família evidencia o deslocamento histórico do poder patriarcal para o vínculo afetivo e horizontal.

Essa transformação constitucional representa o ponto de inflexão entre o modelo patriarcal consolidado em 1916 e a concepção plural e inclusiva consagrada pela Constituição de 1988. Com o advento da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro rompeu com a visão restrita e matrimonializada, reconhecendo, em seu artigo 226, que a família é a base da sociedade, merecendo proteção especial, independentemente de sua forma de constituição. Conforme explica Paulo Lôbo (2018, p. 52), a Carta Magna “desvinculou o conceito jurídico de família da estrutura matrimonial, reconhecendo a afetividade como seu elemento nuclear e legitimador”. A partir desse marco constitucional, diversas modalidades familiares passaram a ser juridicamente reconhecidas — a união estável, as famílias monoparentais e, posteriormente, as uniões homoafetivas.

Essa ampliação interpretativa foi consolidada pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADI 4277 e ADPF 132 (Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011), ocasião em que se reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Naquele acórdão histórico, o STF afirmou que “onde houver afeto e projeto de vida comum, haverá família, independentemente da orientação sexual dos conviventes”. Essa decisão expressa o que Maria Berenice Dias (2017, p. 67) denomina de “constitucionalização do afeto”, movimento pelo qual o Estado reconhece como núcleo legítimo de proteção todas as formas de convivência fundadas na dignidade, na solidariedade e no amor. Rodrigo da Cunha Pereira (2019, p. 121) reforça que “o pluralismo familiar contemporâneo traduz o reconhecimento da autonomia dos sujeitos e da multiplicidade de arranjos possíveis, desde que pautados na afetividade e na função social da família”. Assim, a Constituição de 1988 inaugurou uma nova hermenêutica familiar, marcada pela passagem do formalismo patrimonial ao paradigma ético-afetivo.

A leitura de Gagliano e Pamplona Filho (2022, p. 93) aponta que a Constituição de 1988 não apenas reconheceu juridicamente novas formas familiares, mas redefiniu a própria epistemologia do Direito de Família, deslocando-o do campo da moralidade para o da afetividade. Ao falar em “paradigma da afetividade”, os autores destacam que a legitimidade familiar não decorre mais da formalidade (casamento civil, filiação biológica), mas da vivência de laços recíprocos de cuidado e solidariedade. Essa transformação é visível em A Grande Família, onde a convivência — e não a rigidez legal — é o que sustenta a unidade familiar, revelando o novo ethos jurídico do afeto.

3.  A afetividade e a pluralidade familiar como princípios estruturantes

A noção de afetividade, inicialmente elaborada pela doutrina e posteriormente consolidada pela jurisprudência, tornou-se um dos pilares do novo Direito de Família. Conforme observa Maria Berenice Dias (2022, p. 53), “a afetividade passou a ser elemento essencial da família, constituindo um verdadeiro princípio jurídico”, representando um marco na transição do modelo tradicional para uma concepção centrada nas relações interpessoais. Nessa perspectiva, o afeto deixa de ser um mero componente moral ou psicológico e assume o status de princípio jurídico estruturante, capaz de redefinir o conteúdo e a finalidade do Direito de Família. Tal compreensão é decisiva para entender como a Constituição de 1988 consagrou a ideia de uma família afetiva e plural, reconhecendo como legítimas as mais diversas formas de convivência fundadas na solidariedade e no cuidado mútuo. Esse movimento de constitucionalização do afeto encontra paralelo simbólico em A Grande Família, cuja narrativa cotidiana representa, de modo acessível e até inconsciente, o valor jurídico e social dos vínculos sustentados mais pela convivência e empatia do que pela formalidade legal.

Venosa (2021, p. 67) reforça que a família contemporânea se estrutura a partir da solidariedade existencial, e não mais dos vínculos consanguíneos. Ao enfatizar a convivência e o cuidado como elementos constitutivos, o autor aproxima o Direito Civil da realidade social plural. Essa visão amplia o conceito jurídico de família e o alinha à ideia de “família extensa”, já prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 25, § único). Em A Grande Família, o cotidiano expandido da casa de Lineu e Nenê — onde convivem gerações e personagens diversos — encarna justamente essa noção de solidariedade como eixo da vida familiar.

No REsp 1.559.348/SE, relatado pela Ministra Nancy Andrighi (STJ, 2018), o Superior Tribunal de Justiça consolidou a tese de que a paternidade socioafetiva prevalece sobre a biológica, quando fundada na convivência e no afeto. Essa jurisprudência evidencia que o Direito passou a proteger a verdade afetiva em detrimento da mera verdade genética. No campo cultural, A Grande Família traduz esse princípio jurídico ao apresentar relações parentais simbólicas — como a entre Lineu e Tuco — que se sustentam no cuidado e na presença, e não apenas em laços de sangue. O seriado, nesse sentido, antecipa o Direito ao celebrar o afeto como critério de legitimidade familiar.

4.       A cultura como espelho do Direito: A Grande Família e a representação da família brasileira

A Grande Família, ao retratar o cotidiano de Lineu, Nenê, Bebel, Tuco e Agostinho, reproduz e ironiza os conflitos e transformações da sociedade brasileira. O personagem Lineu Silva, servidor público moralista, simboliza o patriarca tradicional que tenta manter a ordem e a moral familiar, enquanto Nenê representa o equilíbrio e o afeto, o eixo de conciliação e cuidado. Já Agostinho Carrara, genro e contraponto de Lineu, encarna o brasileiro que vive de improvisos, refletindo a informalidade econômica e moral da vida cotidiana.

Essa interação entre personagens revela a transição entre o modelo patriarcal e o pluralismo afetivo. A família Silva-Carrara não é perfeita, mas é funcional, baseada em laços de afeto, diálogo e perdão — características centrais da família contemporânea.

Zygmunt Bauman (2003, p. 102), ao analisar a “modernidade líquida”, descreve um cenário em que as relações humanas tornam-se instáveis e negociáveis, refletindo a fluidez dos valores contemporâneos. No campo familiar, essa liquidez não implica o colapso da instituição, mas sua adaptação a novas formas de vínculo. Assim, a modernidade líquida descrita por Bauman repercute no Direito de Família, que passa a lidar com vínculos instáveis, mas dotados de igual valor jurídico e afetivo. Em A Grande Família, essa flexibilidade aparece no modo como os personagens conciliam conflito e afeto, representando uma família “líquida”, mas resiliente — um microcosmo da própria sociedade brasileira, em que a permanência depende da capacidade de se reconstruir.

Marilena Chauí (2018, p. 221) observa que o humor popular brasileiro desempenha função crítica, expondo contradições e naturalizando debates sociais. Essa leitura é essencial para compreender A Grande Família como objeto de análise: a comédia atua como espelho deformante da realidade, permitindo discutir tabus como desigualdade, gênero e autoridade doméstica. Dessa forma, a cultura e o Direito se cruzam — ambos reinterpretam a vida comum e revelam o que antes era invisível. A série, portanto, se torna uma alegoria da democratização da família, paralela ao processo jurídico iniciado em 1988.

5.  O diálogo entre o Direito e a realidade social

O Direito de Família não se desenvolve isoladamente, mas em constante diálogo com a sociedade. Como enfatiza Rodrigo da Cunha Pereira (2018, p. 77), “o Direito de Família é o mais humano dos ramos do Direito, pois lida diretamente com sentimentos, afetos e dores”. Essa dimensão humanística exige do intérprete uma sensibilidade ética, capaz de equilibrar norma e vida. A reflexão de Pereira reforça que o papel do jurista é compreender o amor, o conflito e o cuidado como fenômenos jurídicos legítimos. Essa perspectiva se alinha à mensagem de A Grande Família: o direito à convivência, em um lar que é simultaneamente espaço de conflito e de afeto.

A análise de A Grande Família revela que o ordenamento jurídico acompanha — e, em muitos casos, é impulsionado — pelas transformações culturais. A ampliação do conceito de família não é apenas jurídica, mas moral e social.

Ao representar uma família que vive conflitos, divergências e reconciliações, a série evidencia que a legitimidade familiar repousa na afetividade, na solidariedade e na convivência, não mais na rigidez formal. Essa compreensão alinha-se ao princípio da dignidade da pessoa humana, que orienta todo o sistema jurídico brasileiro (CF/88, art. 1º, III).

6.  Conclusão

A família brasileira passou por uma profunda metamorfose. Do modelo patriarcal e hierárquico do início do século XX, chegamos a uma concepção plural, inclusiva e afetiva, que reflete o reconhecimento jurídico da diversidade e da liberdade individual.

A Grande Família, como produto cultural, é um espelho desse processo de transformação: uma narrativa que traz, com humor e sensibilidade, as tensões e conquistas de um país em mudança. O Direito de Família, ao acolher a pluralidade e a afetividade como princípios, reafirma sua função social de proteger o ser humano em sua integralidade.

Assim, a cultura e o Direito se encontram: o primeiro, como espelho das transformações; o segundo, como instrumento de reconhecimento e proteção da diversidade familiar. O resultado é a consolidação de um paradigma humanista, que reconhece a família como espaço de amor, cuidado e dignidade.

 

Referências

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