Pesquisas possuem importante papel na sociedade, como estudos voltados a difusão do conhecimento ou aqueles que buscam informar agentes governamentais na tomada de decisões, mapeando pontos a serem melhorados, combatidos, ou mantidos pelas políticas públicas.
Quando falamos desses campos não podemos nos esquecer que em algum momento há tratamento de dados, conforme definição1 adotada pela LGPD. Nesse sentido são inseridas, dentro do campo normativo das pesquisas científicas, a observância desse marco regulatório e todas as suas especificidades.
Sob essa perspectiva a Lei Geral de Proteção de Dados inicia o tema no art.4º, II, b, dentro da seção que delimita os campos de não incidência da lei. A opção legislativa2 foi em resguardar, primeiramente, a liberdade acadêmica. Em posicionamento inicial, porém não conclusivo, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados entende que a não aplicação da lei visa permitir “ambientes propícios à exposição e debate de ideias, tais como salas de aula, congressos e seminários científicos”.3 Aos demais casos estariam amparados nas bases legais4 dos arts.7º, IV e 11, II, c.
Essas bases legais condicionam quem poderá utilizá-las, qual seja, apenas ao órgão de pesquisa, definido no art.5°, XVIII, destacando sua ligação com a administração pública direta ou indireta, ou ser de direito privado sem fins lucrativos. Ambas devem possuir em sua missão institucional ou objetivo social e estatutário a pesquisa.5 Essa limitação leva a agentes que não são órgãos de pesquisa a optarem por outras bases como o consentimento e o legítimo interesse. Felipe Palhares6 questiona a escolha do legislador, pois pesquisas cuja coleta envolvam dados sensíveis ficariam restritas apenas ao consentimento, devido ao legítimo interesse não ser aplicável a essa categoria, o que poderia prejudicar o prosseguimento da investigação científica.
Quanto ao quesito segurança a LGPD é enfática e estimula a utilização da anonimização e pseudoanonimização nas pesquisas. No art.13, referente a estudos em saúde pública, são requeridos de o agente observar não só os locais de armazenamento, como também os princípios e padrões éticos aplicáveis, ao mesmo tempo proibindo o compartilhamento das informações com terceiros.7
A observação anterior nos leva a outro apontamento: a observância dos princípios éticos quanto as metodologias adotadas na pesquisa, ainda mais se a pesquisa for realizada diretamente em humanos.
Imagine um questionário aplicado a 500 professores em um município sobre a qualidade de ensino nos últimos 10 anos, ou uma pesquisa de campo em que o(a) pesquisador(a) estuda determinado grupo e sua relação com o meio ambiente por 6 meses. Ambos devem passar pelo Conselho de Ética em Pesquisa responsável, a fim de analisar se é possível a realização da investigação científica. A título de exemplo, o Conselho Nacional de Saúde editou a Resolução nº 510/2016, aplicada às pesquisas de Ciências Humanas e Sociais cujo os dados sejam obtidos diretamente com os participantes. É destacado no documento que pesquisas de opinião pública cujo os participantes não são identificados, censitárias, realizadas utilizando exclusivamente textos científicos, entre outras, não estão sujeitas à resolução.8
Um ponto, contudo, deve ser destacado. Ainda que não haja a identificação dos participantes e o resultado da pesquisa seja apresentado de maneira descaracterizada, em formato de gráficos ou percentuais, deve se atentar, dentro dos aspectos éticos, na possibilidade de gerar danos ou discriminação a “grupos de pessoas, como resultado de informações relativas à saúde, status socioeconômico, etnia ou outros aspectos contidos nos conjuntos de dados e com potencial de gerar discriminações com relação a esses grupos”.9 Essa perspectiva se mostrou alarmante durante a pandemia, quando vários governos e empresas empreenderam pesquisas que, apesar de se revestirem de aspecto éticos, foram criticadas por estabelecerem falsas relações causais, culpabilizando grupos marginalizados pelo aumento de casos da covid-19, fortalecendo estigmas e discursos de ódio.10
São essas apenas algumas observações iniciais de um tema ainda palco para novas controvérsias e debates, justamente por tentar equilibrar as liberdades de pesquisa acadêmica, a promoção do conhecimento e inovação, resguardando ao mesmo tempo o direito a proteção de dados dos titulares.
____________________
Referências
________________________________________
1. Na dicção do art.5º, X: “toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração”.
2. Art. 4º Esta Lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais: II – realizado para fins exclusivamente: b) acadêmicos, aplicando-se a esta hipótese os arts. 7º e 11 desta Lei;
3. A própria autoridade caracteriza seu estudo como preliminar, visando primeiramente fomentar a temática. Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Estudo Técnico A LGPD e o tratamento de dados pessoais para fins acadêmicos e para a realização de estudos por órgão de pesquisa. Brasília, abril 2022. p.17.
4. Ambos os artigos possuem dicção praticamente idêntica, permitindo o tratamento “para a realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais”, sendo aos sensíveis adicionada a qualificação.
5. Art.5º, XVIII: órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos legalmente constituída sob as leis brasileiras, com sede e foro no País, que inclua em sua missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter histórico, científico, tecnológico ou estatístico.
6. PALHARES, Felipe. LinkedIn. Disponível em: https://bit.ly/3cmI4yU. Acesso em: 24 ago. 2022.
7. A lei parece convergir com o posicionamento de Stefano Rodotà, ao inserir as informações relacionadas a saúde como parte do núcleo duro dos dados pessoais. O autor vai além, colocando o dado genético em um degrau mais alto. Segundo Rodotà “exatamente por seu caráter estrutural e permanente, as informações genéticas constituem a parte mais dura do ‘núcleo duro’ da privacidade, fornecem o perfil mais definido da pessoa e estão, assim, na base de ações discriminatórias”. RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância: a privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda). Renovar, Rio de Janeiro, 2008.
8. Art.1º. Parágrafo único. Não serão registradas nem avaliadas pelo sistema CEP/CONEP: I – pesquisa de opinião pública com participantes não identificados; II – pesquisa que utilize informações de acesso público, nos termos da Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011; III – pesquisa que utilize informações de domínio público; IV – pesquisa censitária; V – pesquisa com bancos de dados, cujas informações são agregadas, sem possibilidade de identificação individual; e VI – pesquisa realizada exclusivamente com textos científicos para revisão da literatura científica; VII – pesquisa que objetiva o aprofundamento teórico de situações que emergem espontânea e contingencialmente na prática profissional, desde que não revelem dados que possam identificar o sujeito; e VIII – atividade realizada com o intuito exclusivamente de educação, ensino ou treinamento sem finalidade de pesquisa científica, de alunos de graduação, de curso técnico, ou de profissionais em especialização. CNS. Resolução Nº 510/2016. Disponível em: https://bit.ly/2OqTAIS. Acesso em: 24 ago. 2022.
9. BARRETO, M.; ALMEIDA, B.; DONEDA, D. Uso e proteção de dados pessoais na pesquisa científica. Revista de Direito Univille, Porto Alegre, Volume 16, n. 90, nov-dez 2019, p. 189. Disponível em: https://bit.ly/3PQRNLB. Acesso em: 24 ago. 2022.
10. MACHADO, J. de S.; NEGRI, S. M. C. de Ávila; GIOVANINI, C. F. R. Nem invisíveis, nem visados: inovação, direitos humanos e vulnerabilidade de grupos no contexto da Covid-19. Liinc em Revista, [S. l.], v. 16, n. 2, p. e5367, 2020. DOI: 10.18617/liinc.v16i2.5367. Disponível em: https://bit.ly/3CsTNXi. Acesso em: 24 ago. 2022