O ano de 2023 foi marcado por notícias envolvendo a descoberta de trabalhos análogos à escravidão em todo o país. Um dos casos que mais ganhou notoriedade, foi o das vinícolas do Rio Grande do Sul, onde, segundo os sites de notícias, mais de 200 homens foram encontrados trabalhando em condições degradantes, assemelhadas à escravidão1 .
Os trabalhadores resgatados, no entanto, não trabalhavam diretamente para as vinícolas, mas para uma empresa terceirizada, que oferecia mão de obra para as empresas produtoras de vinho. E é justamente aqui o ponto da discussão.
Em 31 de março de 2017, foi publicada a Lei 13.429/2017, que introduziu na legislação brasileira dispositivos que passaram a legitimar, de forma ampla e irrestrita, a terceirização de serviços.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324 e do Recurso Extraordinário (RE) 958252, com repercussão geral, reconheceu a constitucionalidade do instituto em toda e qualquer atividade, encerrando qualquer discussão sobre a legalidade da lei.
Com isso, afastou a interpretação anteriormente conferida pelo Tribunal Superior do Trabalho, por meio da Súmula 331, que indicava a ilicitude da terceirização de atividade-fim, inclusive com a possibilidade de reconhecimento de vínculo entre o empregado terceirizado e a empresa tomadora de serviços.
A partir de então, com a segurança jurídica trazida pela Lei 13.429/2017 e com a interpretação dada pelo STF sobre a constitucionalidade da matéria, a terceirização da cadeia produtiva se tornou cada vez mais frequente.
Ocorre que nas relações comerciais marcadas pelo capitalismo, em que não há outro objetivo senão o lucro, os problemas de degradação das condições de trabalho se tornam evidentes.
Isto porque, na cadeia produtiva de bens e serviços, a contratante, visando a diminuição de custos e aumento dos lucros, terceiriza alguns, se não todos, os serviços e produção de bens, celebrando contratos com valores muito baixos se comparados aos gastos necessários para empregar a mão de obra própria para execução dos mesmos serviços terceirizados.
A empresa contratada (terceirizada), por sua vez, também precisa lucrar. Para isso, contrata empregados que serão submetidos a baixos salários e a condições de trabalho precárias. E quanto menor os salários pagos aos trabalhadores e menores os benefícios, maiores serão os lucros da empresa contratada.
Diante desse modelo de negócio, não havia dúvidas que começariam a surgir casos como o que ocorreu nas vinícolas gaúchas. E não se tratam de casos isolados. São diversos os casos de empregados terceirizados que são resgatados em condições análogas à escravidão em todo o país. Segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT), entre janeiro de novembro deste ano, mais de 2,8 mil trabalhadores foram resgatados de trabalho análogo à escravidão. É o maior número de resgate dos últimos 14 anos.
Esses dados só corroboram que a prática desenfreada da terceirização é palco para a banalização da exclusão e miséria social.
Por esse motivo, enquanto sociedade, devemos restabelecer o debate sobre a prática indiscriminada da terceirização da cadeia produtiva, que afeta cada vez mais de forma negativa trabalhadores e trabalhadoras Brasil a dentro, expondo-os a condições degradantes de trabalho, sem condições mínimas de saúde e segurança do trabalho.
Enquanto não forem estabelecidos critérios rígidos e limites à terceirização, os casos de precarização do trabalho serão cada vez mais frequentes, levando-nos a passos cada vez mais distantes da tão almejada dignidade do ser humano e da função social do trabalho.
Referências
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1. Vinícolas devem pagar R$ 7 milhões por caso de trabalho escravo no RS. Agência Brasil. 2023. Disponível em: link.