É interessante começar a presente coluna com a afirmação de que todo direito prescreve. Isso se dá porque a Constituição preveu a necessidade de conferir proteção jurídica à confiança, por meio da instituição do princípio da segurança jurídica, conforme já tivemos a oportunidade de tratar nas colunas de Direito Constitucional Popularizado. Dessa maneira, o decurso de determinado tempo pode convalidar qualquer situação, ainda que ela não esteja correta, isto é, amparada juridicamente.
Há, todavia, algumas poucas exceções à regra, passaremos a analisar como isso será possível. É fácil perceber que se a Constituição é a norma mais importante do país, qualquer previsão sua só poderá ser excepcionada por outra previsão constitucional de, ao menos, o mesmo valor hierárquico. Se foi a Constituição quem previu que todo direito prescreve, para que haja possibilidade de prescrição de qualquer direito, será necessário que também a Constituição preveja a exceção.
Um exemplo de hipótese na qual a Constituição Federal de 1988 permitiu a imprescritibilidade de um direito está previsto no art. 37, §4º e §5º.1 A previsão permite que um dano decorrente de ilícito praticado por agente público possa ser alvo de ação de ressarcimento, independentemente da data em que foi praticado, desde que o ilícito tenha sido praticado mediante ato de improbidade administrativa.2 O referido dispositivo constitucional excepciona a regra da prescrição quinquenal imposta pelo art. 21 da Lei 4.717/65.3
Outros exemplos importantes dentro do sistema jurídico brasileiro são: a imprescritibilidade aquisitiva de imóvel público, ou seja, imóvel público não é passível de usucapião (art. 183, §3º, e 191, parágrafo único da CF/88); o crime de racismo é além de inafiançável, também imprescritível (art. 5º, XLII, CF/88); a ação de grupos armados também é inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLIV, CF/88).
Uma hipótese diferente pode ter como base fatos ocorridos durante o período do regime militar brasileiro. Não existia à época a Constituição Federal de 1988 e todas as suas garantias cidadãs, é interessante dizer que conforme o direito vigente na data de acontecimento de algumas atrocidades estas poderiam ter tido respaldo jurídico-político. Além disso, ainda que os atos praticados fossem ilícitos na altura da ditadura militar, só o tempo mostrou o temor que as vítimas teriam tido de enfrentar o Estado.
Suponhamos a seguinte situação: o marido de Maria foi perseguido politicamente, desaparecido no ano de 1966, durante o regime militar, deixou a esposa e dois filhos sozinhos. Somente com o fim do regime, em 1989, Maria criou coragem para investigar o que poderia ter se passado com seu esposo. Ao procurar um advogado, recebeu a resposta de que não poderia mais fazer nada, porque a lei prevê prazo para buscar possível ressarcimento do Estado, qual seja, cinco anos.
Já entendemos que a Constituição Federal de 1988 diz que todo direito prescreve e que somente ela pode prever as exatas situações em que isso não será aplicado. Ora, o legislador não é onisciente, onipresente, tampouco onipotente, ele erra. Quando foi feita a atual Constituição brasileira não se lembraram de escrever, pontualmente, que os danos decorrentes de atos ilícitos cometidos por agente público durante a ditadura poderiam ter prazo eterno para ação de ressarcimento movida pela vítima.
Dessa forma, caso o advogado de Maria tivesse instaurado o procedimento judicial, a resposta da lei teria sido a de que a ação estaria prescrita em 1971, ainda no meio do regime militar. Essa situação hipotética aconteceu com muitos cidadãos brasileiros, o que levou o Superior Tribunal de Justiça a colocar um fim na discussão somente em 2021.
Vejamos, embora possa parecer imoral não permitir a análise do ocorrido durante o regime militar, não pode o tribunal simplesmente desconsiderar a lei e tomar uma decisão. Assim, a solução encontrada teve como fundamento jurídico um princípio ainda maior que uma previsão literal da Constituição, levou em consideração um princípio norteador de todo o sistema jurídico, previsto no início da Constituição Federal de 1988, chamado de princípio da dignidade da pessoa humana. Foi a interpretação do Superior Tribunal de Justiça de acordo com a integralidade da Constituição que permitiu a solução com base em princípios gerais.
Assim diz a Súmula 647 do Superior Tribunal de Justiça: “São imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar.”4
Alguns poucos direitos devem ser tidos como regras hierarquicamente mais importantes dentro do sistema jurídico, seja por assegurarem uma proteção mais essencial ao cidadão, ou por garantir o funcionamento do próprio Estado Democrático de Direito. Quando se trata, por exemplo, do direito à manutenção da vida e da liberdade, é fácil perceber seu superior patarmar de importância. A dignidade da pessoa humana é provavelmente o mais importante parâmetro de análise e proteção de direitos, graças à ela foi possível decidir pela imprescritibilidade das ações de ressarcimento por danos decorrentes de perseguição política durante o regime militar.
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Referências
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1. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.
2. FERRAZ, Luciano de Araújo. Ações de ressarcimento ao erário são imprescritíveis? São Paulo: Conjur, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3zNkUL6. Acesso em: 30 jul. 2022.
3. BRASIL. Lei 4.717/65. Regula a ação popular. Disponível em: https://bit.ly/3PMww6o. Acesso em: 30 jul. 2022.
4. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 647. 1ª Seção. Aprovada em 10 mar. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3bl1O5w. Acesso em: 30 jul. 2022.