O Direito, cada vez mais frequentemente, é obrigado a lidar com uma dicotomia que coloca de um lado antigas e tradicionais instituições e, de outro, novas e revolucionárias tecnologias. É o caso, por exemplo, da relação entre fundamentação das decisões judiciais (garantia processual cuja origem remonta, pelo menos, as Ordenações Filipinas, promulgadas em 1603)1 e as possibilidades da Inteligência Artificial (nova tecnologia que vem influenciando o processo judicial principalmente nos últimos cinco anos).2
Outro tema que coloca novamente em discussão essa dicotomia é o dos contratos inteligentes, ou smart contracts. Se, por um lado, o contrato (seja qual for o seu nível de complexidade) tem origens milenares, os contratos adjetivados como inteligentes despontaram principalmente nos últimos anos. E as perspectivas mostram que muito se tem a evoluir com relação a temática.
Trata-se de tema que já vem batendo as portas do mundo jurídico. No início de 2023, circulou notícia com a seguinte chamada: “Não pagou as parcelas? Carro poderá voltar sozinho para a montadora”.3 Com o desconto do sensacionalismo, a referida reportagem relatou, em resumo, que a empresa Ford “patenteou um sistema capaz de reaver a posse de um veículo caso seu proprietário não pague as parcelas do financiamento”, destacando que “Com a tecnologia, a fabricante pode fazer com que o carro ande sozinho até um guincho para ser removido, ou mesmo seja devolvido à montadora”. No fundo, a tecnologia desenvolvida funciona com base em smart contract.
O objetivo fundamental do novo modelo contratual é fazer com que a obrigação pactuada entre as partes, seja dar, fazer ou não fazer, transporte-se para algoritmos, no intuito de facilitar e tornar mais célere a parte registral, de monitoramento e a própria execução das disposições pactuadas, além de dificultar, ou então impossibilitar, o descumprimento de alguma condição. Inicialmente, a modalidade contratual foi utilizada em operações financeiras através de criptoativos.
Essa realidade, agora vinculada ao cumprimento (e descumprimento) de obrigações implementadas em meio físico, certamente trará impactos ao processo judicial, especialmente no âmbito da Execução. O primeiro questionamento atrela-se ao cumprimento dos requisitos clássicos do título executivo, sejam formais ou substanciais (certeza, liquidez e exigibilidade), à medida que o contrato deixa sua forma estática (hígida) para se tornar dinâmico, a partir da conduta dos contratantes, além da tipicidade do documento, tendo em vista a taxatividade em seu rol no processo brasileiro.
O segundo vincula-se à autorização legal para a prática de atos executivos autônomos. Veja-se que no exemplo do sistema da Ford, a própria empresa detém a tecnologia de controle e, com isso, garante a certificação do inadimplemento, bloqueio e retomada do veículo por meio de direção autônoma. Em teoria, isso se dá sem a possibilidade de contraditório pelo usuário, nem fiscalização do Judiciário, relembrando, de certa forma, a autotutela executiva do Direito Romano. Como orienta o art. 778 do CPC, a execução é promovida pelo credor ao bater as portas do Poder Judiciário, não lhe sendo permitido, salvo por disposição expressa, promover diretamente o ingresso forçado nos bens do devedor.
Sem contar que, muito embora a execução corra no interesse do exequente (art. 797 da lei processual), deverá observar o princípio da menor onerosidade ao devedor, estampado no art. 805 do CPC. Necessita a autoexecução contratual levar em consideração esse princípio? Se sim, há como controlar? São questionamentos que os juristas, especialmente aqueles que atuam com execução e mesmo com novas tecnologias, devem começar a responder, se é que ainda faz sentido falar em menor onerosidade do devedor em um cenário de reiterados casos de frustração da demanda executiva. Mas essa é temática para um próximo artigo.
O tema cujo debate aqui é apenas sumário, sem dúvidas, é instigante e provocador, como não poderia deixar de ser quando tecnologia e processo se tocam. Merece ele novos e aprofundados estudos, com debates objetivando: (a) traçar uma brevíssima linha histórica da evolução do direito contratual até os dias atuais; (b) definir e apontar características do que se entende atualmente por smart contracts; (c) identificar o impacto de algumas novas tecnologias no âmbito da Execução; e, por fim, (d) apresentar algumas reflexões iniciais a respeito do impactos dos smart contracts no âmbito da Execução de Título Executivo Extrajudicial. Como é comum ao estudar novas tecnologias, cabe-nos aguardar os próximos passos.
Referências
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1. SILVA, Beclaute Oliveira. Contornos da fundamentação no CPC brasileiro de 2015. Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, v. 1, n. 1, p. 319-339, jan. 2019. Disponível em: bit.ly/43qHcOz. Acesso em: 8 maio 2023.
2. Sobre esse tema, ver FRÖHLICH, Afonso Vinício Kirschner. Fundamentação das decisões judiciais e inteligência artificial: uma ressignificação ao direito processual atual e futuro. Londrina: Editora Thoth, 2023.
3. LAMIN, Jonathan. Não pagou as parcelas? Carro poderá voltar sozinho para a montadora. In Techtudo [S.l], 7 mar. 2023. Disponível em: bit.ly/3WxXdQF. Acesso em 4 mar. 2023.