Adoção e Guarda Compartilhada: Convergências e Desafios na Efetivação do Melhor Interesse da Criança

Adoção e Guarda Compartilhada: Convergências e Desafios na Efetivação do Melhor Interesse da Criança

adoção

1. Introdução

A Família é o primeiro núcleo de convivência e aprendizado, sendo reconhecida como o alicerce da sociedade e o primeiro espaço de formação moral, social e afetiva do indivíduo. A Constituição Federal de 1988 consolidou essa relevância ao consagrar a proteção integral da criança e do adolescente, valorizando o afeto, a dignidade da pessoa humana e o melhor interesse da criança como fundamentos essenciais das relações familiares. De modo a colocar a família em posição central no ordenamento jurídico brasileiro, compreendendo-a com uma visão que ultrapassa um viés biológico ou formal e questões de responsabilidade, mas também como um ambiente construído pelo vínculo afetivo e pela corresponsabilidade parental.

Nesse contexto, tanto a adoção quanto a guarda compartilhada traduzem a ampliação e modernização do conceito jurídico de família, visto que esses conceitos se apresentam como institutos que refletem a evolução da concepção de família supracitada. Embora, possuam naturezas jurídicas claramente distintas, ambos compartilham o propósito de assegurar à criança o direito de crescer em um ambiente estável, saudável, carente da possibilidade de lhe causar danos e dotado de afeto. Enquanto a adoção rompe o elo do indivíduo com a família biológica, estabelece um novo vínculo jurídico de filiação firmando uma nova estrutura parental, a guarda compartilhada visa promover um convívio equilibrado da criança com ambos os genitores, viabilizando que ela não seja privada de manter laços afetivos significativos mesmo diante da dissolução da união familiar.

Dentro dessa seara, emerge uma questão relevante e ainda pouco explorada no âmbito da prática jurídica: seria possível, e juridicamente adequado, aplicar o regime de guarda compartilhada em situação de adoção, especialmente diante da separação dos pais adotivos? A problemática que essa questão traz não se restringe apenas a análise do ordenamento jurídico e das normas legais que regem o tema, vão muito adiante, abrangendo também uma reflexão sobre os aspectos emocionais e sociais que permeiam a vida da criança adotada, bem como deveres e responsabilidades dos adotantes. Além disso, a discussão ganha relevância diante do aumento das novas configurações familiares e da necessidade de conciliar o direito à convivência afetiva com a segurança jurídica proporcionada pelo vínculo adotivo.

O presente artigo tem como objetivo analisar as convergências entre os institutos da adoção e da guarda compartilhada, investigando e se aprofundando na forma como ambos podem coexistir na busca pela efetivação do melhor interesse da criança. Ademais pretende-se discutir os desafios teóricos e práticos que surgem quando o afeto, o vínculo jurídico, o poder familiar e o exercício da parentalidade se entrelaçam em contextos de adoção, contribuindo para o debate acerca das novas configurações familiares e da atuação do Direito de Família diante dessas transformações. Assim como, busca-se fornecer subsídios que possam orientar a aplicação da legislação e a atuação do Judiciário, de modo a harmonizar o respeito ao vínculo adotivo com a promoção da convivência equilibrada entre a criança e seus responsáveis.

2. Adoção no Ordenamento Jurídico Brasileiro

A adoção, prevista nos artigos 39 a 52 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), constitui um dos instrumentos mais relevantes de proteção à infância no ordenamento jurídico brasileiro. Por meio dela, estabelece-se um vínculo jurídico e afetivo entre adotante e adotado, assegurando à criança a condição plena de filho, com todos os direitos e deveres inerentes à filiação, inclusive os de natureza sucessória, conforme dispõe o artigo 41 do ECA. Trata-se, portanto, de uma medida que vai além de um simples ato formal: a adoção tem caráter essencialmente humanitário e social, concretizando o princípio do melhor interesse da criança, consagrado no artigo 227 da Constituição Federal e reforçado pelo artigo 4º do próprio Estatuto. A doutrina contemporânea tem reconhecido o papel central do afeto como elemento jurídico estruturante das relações familiares modernas. Maria Berenice Dias, ao abordar o tema, afirma que o afeto é o “cimento que sustenta a estrutura da família contemporânea”, destacando que é o vínculo afetivo — e não o biológico — que legitima a parentalidade. Sob essa ótica, o ato de adotar ultrapassa o campo legal e assume dimensão ética e emocional, traduzindo o compromisso de oferecer à criança um ambiente de segurança, pertencimento e amor.

3. Guarda Compartilhada e a Coparentalidade

A guarda compartilhada, por sua vez, consolidada pela Lei nº 11.698/2008 e aprimorada pela Lei nº 13.058/2014, inaugurou um novo paradigma no exercício do poder familiar. Diferentemente da guarda unilateral, essa modalidade busca assegurar a participação equilibrada de ambos os genitores na criação dos filhos, mesmo quando não convivem sob o mesmo teto. O artigo 1.583, §1º, do Código Civil define a guarda compartilhada como a responsabilização conjunta e o exercício equilibrado de direitos e deveres dos pais, reforçando a ideia de coparentalidade e de convivência ativa e saudável da criança com ambos. Assim, mais do que um arranjo jurídico, a guarda compartilhada representa uma forma de preservar o desenvolvimento emocional e social do menor. O Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado que a guarda compartilhada deve ser a regra, sendo afastada apenas em situações excepcionais. No Recurso Especial nº 1.251.000/SP, o Tribunal reconheceu que esse regime deve ser aplicado sempre que possível, ainda que existam divergências entre os pais, desde que não haja prejuízo ao filho. Tal entendimento reforça o compromisso do Judiciário com o equilíbrio nas relações parentais e com a efetivação do melhor interesse da criança, princípio basilar do Direito de Família.

4. Convergência entre Adoção e Guarda Compartilhada

Ao observar a adoção e a guarda compartilhada sob uma perspectiva conjunta, nota-se que, embora sejam institutos distintos, ambos compartilham o mesmo objetivo: garantir à criança um ambiente de afeto, proteção e estabilidade. A adoção assegura o direito de pertencer a uma família, enquanto a guarda compartilhada preserva o direito de conviver com ambos os pais, mesmo após a dissolução conjugal. Essa convergência torna-se ainda mais relevante diante das novas configurações familiares, nas quais o afeto e a responsabilidade têm se sobreposto aos laços exclusivamente biológicos. Nesse contexto, uma questão vem ganhando destaque na doutrina e na jurisprudência: é possível aplicar o regime de guarda compartilhada nos casos de separação de pais adotivos? Embora o ECA não trate expressamente do tema, a interpretação sistemática da Constituição Federal, do Código Civil e dos princípios do Direito de Família permite concluir que sim, desde que tal medida atenda ao melhor interesse da criança. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, reconheceu essa possibilidade ao julgar a Apelação Cível nº 100984773.2019.8.26.0506, entendendo que a separação dos pais adotivos não os exime do dever de participar ativamente da vida do filho.

5. Desafios Jurídicos e Práticos na Aplicação Conjunta dos Institutos

Entretanto, a aplicação conjunta desses institutos ainda enfrenta desafios, tanto de ordem jurídica quanto prática. Um deles é a ausência de norma específica que regulamente a guarda compartilhada em casos de adoção, o que exige do julgador uma interpretação orientada pelos princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança. Outro desafio envolve aspectos psicológicos e sociais: muitas crianças adotadas vivenciam, em algum momento, experiências de abandono ou insegurança, e a separação dos pais adotivos pode reavivar esses sentimentos. Nesses casos, a adoção da guarda compartilhada deve ser cuidadosamente avaliada por uma equipe interdisciplinar, conforme prevê o artigo 28, §4º, do ECA, garantindo que a medida proporcione estabilidade emocional e não cause novos traumas. A efetividade da guarda compartilhada, aliás, depende diretamente da capacidade dos pais de manter diálogo e cooperação. O STJ, no Recurso Especial nº 1.629.842/RS, ressaltou que o modelo não é adequado quando há ausência total de comunicação ou conflitos intensos entre os genitores, pois, nesses casos, o convívio pode ser prejudicial à criança. Dessa forma, o Judiciário deve sempre considerar não apenas a previsão legal, mas a realidade afetiva e relacional de cada família.

6. O Princípio do Melhor Interesse da Criança como Eixo Norteador

Em qualquer desses cenários, o princípio do melhor interesse da criança deve permanecer como eixo norteador, conforme previsto na Constituição Federal e na Convenção sobre os Direitos da Criança, incorporada ao direito brasileiro pelo Decreto nº 99.710/1990. Esse princípio impõe que todas as decisões envolvendo menores priorizem condições que assegurem seu desenvolvimento integral, físico, emocional e social. Assim, tanto a adoção quanto a guarda compartilhada devem ser compreendidas como instrumentos complementares de um mesmo propósito: garantir a toda criança o direito de crescer em um ambiente seguro, afetuoso e propício à sua plena formação. Portanto, a análise das convergências entre a adoção e a guarda compartilhada evidencia a evolução do Direito de Família para um modelo mais humanizado e plural, que reconhece o afeto como elemento essencial da parentalidade. Ainda que existam lacunas legislativas, o sistema jurídico brasileiro oferece bases sólidas para compatibilizar esses institutos, desde que sua aplicação esteja sempre orientada pela proteção integral e, sobretudo, pelo melhor interesse da criança.

7. Considerações Finais

Diante do exposto, é possível perceber que tanto a adoção quanto a guarda compartilhada representam avanços significativos no campo do Direito de Família, reafirmando o compromisso do ordenamento jurídico com a proteção integral da criança e do adolescente. Ambos os institutos, cada um a seu modo, concretizam o princípio do melhor interesse da criança, ao priorizarem a convivência familiar, o afeto e a estabilidade emocional como pilares essenciais para o desenvolvimento humano. A adoção confere à criança o direito de pertencer a um lar, de ser acolhida e amada, enquanto a guarda compartilhada assegura a continuidade dos vínculos afetivos, mesmo diante da dissolução conjugal. Essa complementaridade revela uma transformação profunda na forma como se compreende a parentalidade: ela deixa de ser um mero exercício de autoridade e passa a ser entendida como um ato de cuidado, responsabilidade e presença. A evolução da jurisprudência e da doutrina demonstra que o Direito de Família caminha para uma abordagem mais sensível e inclusiva, capaz de acolher as novas configurações familiares e reconhecer o afeto como verdadeiro elemento estruturante das relações. Ainda que persistam desafios, especialmente no tocante à regulamentação da guarda compartilhada em contextos de adoção, é possível afirmar que o sistema jurídico brasileiro dispõe de instrumentos sólidos para garantir que nenhuma criança seja privada do convívio, da segurança e do amor familiar.

Assim, a reflexão sobre a convergência entre adoção e guarda compartilhada não apenas reforça a importância do afeto como valor jurídico, mas também reafirma o papel do Direito como instrumento de transformação social. Mais do que assegurar direitos, trata-se de garantir experiências de vida marcadas pela dignidade, pela pertença e pela construção de laços que ultrapassam o vínculo biológico — laços que, em última análise, definem o verdadeiro sentido de família. Conclui-se, portanto, que a verdadeira missão do Direito de Família é traduzir o amor em justiça, assegurando que toda criança encontre, no seio da família — seja ela qual for —, o abrigo seguro onde possa crescer, sonhar e florescer como ser humano pleno.

 

Referências

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990).

BRASIL. Lei nº 13.058/2014 — Altera os arts. 1.583 e 1.584 do Código Civil.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil – Famílias.

  1. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Família. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2022

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