A sociedade contemporânea é marcada, principalmente, pelo aspecto digital que lhe envolve, ampliando a conexão dos indivíduos de forma antes inimaginável. Tal concepção, embora positiva, promove acepções negativas quando determinadas pessoas, em manifesto abuso de direito, abalam as estruturas sociais com comportamentos muitas vezes reprováveis e/ou ilícitos.
Neste sentido, com o advento das redes sociais, a assimetria (des)informacional fora ampliada, notavelmente pela disseminação de discursos de ódio, notícias falsas e criação de usuários falsos para promoção da desestabilidade social em ambiente digital. Principalmente relacionada ao contexto político, muito se questionou, nos últimos meses, se tais formas de manifestação estariam amparadas pela liberdade de expressão, gozando de proteção constitucional.
Inicialmente, necessário estampar o paralelo entre o cenário brasileiro e o contexto estado-unidense, para melhor clarificar a amplitude da referida garantia. Nas palavras de Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk:
Nos Estados Unidos da América, a freedom of speech, ainda que não seja ilimitada, ocupa posição de evidente primazia, sendo admitida a sua restrição apenas em casos excepcionais. Fora dessas hipóteses de absoluta exceção, prevalece a liberdade de discurso. Essa liberdade, na construção jurisprudencial norte-americana, se estende, inclusive, a discursos ofensivos ou, mesmo, aqueles francamente inseridos no conceito de discursos de ódio.1
Nesse contexto, Larry Flynt, idealizador da revista Hustler, travou longa batalha judicial na década de 1980, defendendo a liberdade de expressão, mesmo que ofensiva, com intuito de satirizar personalidades públicas, garantindo interpretação ampla da Primeira Emenda. O caso Hustler Magazine v. Falwell (1988) é tratado como verdadeiro paradigma, demonstrando a força cognitiva da liberdade de expressão no sistema norte-americano.
To be sure, in other areas of the law, the specific intent to inflict emotional harm enjoys no protection. But with respect to speech concerning public figures, penalizing the intent to inflict emotional harm, without also requiring that the speech that inflicts that harm to be false, would subject political cartoonists and other satirists to large damage awards.2
Assim, a reflexão norte-americana sobre os limites da liberdade de expressão se aparta dos avanços brasileiros em relação à temática, em parte pelo próprio contexto cultural, sendo que o caso não é novidade em termos da “escolha de Sofia” norte-americana, uma vez que grandes empresas precisam tomar uma decisão em resguardar a liberdade de opinar (por mais que deturpada) ou retirar conteúdos ilícitos, ofensivos, falsos ou apelativos.
O próprio governo de Joe Biden incentiva a retirada de conteúdos de mídias sociais que sejam permeados pelas fake news e desinformação, medida que empresas como o Facebook e o Instagram já atuam, em linha vanguardista, mas, sempre, com opositores que entendem ser a retirada uma forma plena de censura, como o bilionário Elon Musk, agora proprietário do Twitter, que inicialmente comprou a plataforma com intuito de garantir a liberdade de expressão plena e absoluta (ainda que, nos últimos dias, tenha adotado comportamento contraditório e digno de ser taxado de censura, como a suspensão do perfil da comediante Kathy Griffin).3
Contudo, a experiência brasileira na temática é outra, com atuações de caráter preventivo e repressivo nos casos em que indivíduos, ao violarem padrões éticos, morais ou jurídicos, são alertados de que a liberdade de expressão possui, sim, limites no ordenamento jurídico pátrio, não sendo revestida de caráter absoluto.
No Brasil, a leitura do Supremo Tribunal Federal sobre a liberdade de expressão aponta, de modo coerente com o que emerge do texto constitucional, uma “posição preferencial”, prima facie, ainda que relativa, que pode ceder a posteriori, na constatação de violação de outros direitos. Trata-se do pressuposto que serve de alicerce à vedação à censura prévia à expressão do pensar, mas não descura da resposta coerciva posterior, em caso de violação a outros direitos fundamentais, por meio do abuso da liberdade de expressão.4
Destarte, a liberdade de expressão no direito brasileiro possui limites, não sendo encarada em amplitude formal. Assim, se a chamada “opinião” ofender indivíduos ou grupos, ou caracterizar o discurso de ódio (hate speech), não pode ela ser alçada ao status de direito fundamental, posto que seria perfeitamente restringível nas situações em que a manifestação não observe os limites impostos pela Constituição Federal. De mesmo modo, as notícias falsas ou deturpadas também não gozariam da referida proteção.
Sobre a temática das Fake News, inclusive:
As fake news, a despeito de são serem um fenômeno recente, no contexto de uma sociedade da informação demonstra sérios riscos à sociedade e aos indivíduos uma vez que podem causar danos materiais, morais e, até mesmo, sociais. (GUIMARÃES, Clayton Douglas Pereira; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira. Influenciadores Digitais, Fake News e COVID-19. Portal Jurídico Magis, 2022).
A divulgação de informações falsas ou difamatórias no universo virtual produz efeitos muito reais, que vão de simples desconfiança ao esfriamento de relações profissionais e pessoais, abrangendo, por vezes, medidas mais objetivas como o preterimento em promoção ou em entrevista de emprego, a demissão ou até a ruptura de relacionamentos afetivos. Vítimas frequentemente ficam marcadas pelo episódio e passam a ser vistas como pessoas descuidadas e displicentes, mesmo quando não tenham contribuindo com seu comportamento para aquele resultado. (SCHREIBER, Anderson. Marco Civil da Internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade civil por dano derivado do conteúdo gerado por terceiro. DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO; Adalberto; LIMA, Cíntia Rosa Pereira de (coords). Direito & Internet, v. 2, p. 277-305, 2015.)
Imagine a seguinte situação: um famoso perfil de “fofocas” no Instagram divulga a informação de que renomada influenciadora se apropriou de bens de grife de outro influenciador, ou de que estaria traindo seu marido com um amigo do casal. As consequências (os casos são reais) são enormes, considerando a cultura do cancelamento, a falta de verificação de notícias falsas e o prestígio que tais personalidades gozam.
Mas não é preciso ir além, sendo que, no cotidiano, todos estão fadados a serem potenciais vítimas (inclusive pessoas jurídicas) de notícias inverídicas, discursos de ódio, etc., pelo que tais manifestações não podem ser consideradas como exercício de liberdade de expressão, não sendo amparadas pelo referido direito.
A manifestação de tais condutas configura abuso de direito (art. 187, CCB), podendo levar à responsabilidade civil (art. 927, CCB) dos responsáveis pela propagação, abrangendo, nesse contexto, todos os danos, inclusive de natureza moral, sofridos pelo ofendido. Na seara criminal, é possível a responsabilização por crimes de calúnia, injúria e/ou difamação.
Destarte, é necessário ter em mente que a liberdade de expressão garante a livre manifestação de pensamento, desde que respeitados os direitos dos outros indivíduos e a própria coletividade social, não podendo ser considerado como direito absoluto.
Referências
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1. RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Liberdade de expressão, responsabilidade civil e discurso de ódio. Portal Migalhas. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3ubLuJE. Acesso em: 21 out, 2022.
2. US SUPREME COURT. “Hustler Magazine, Inc. v. Falwell.” Oyez, Disponível em: https://bit.ly/3LaQbuk. Acesso em: 30 out. 2022.
3. G1. Comediante Kathy Griffin é suspensa do Twitter após trocar nome da conta para Elon Musk. Disponível em: http://glo.bo/3g1Vy4V. Acesso em: 08 nov. 2022.
4. RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Liberdade de expressão, responsabilidade civil e discurso de ódio. Portal Migalhas. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3ubLuJE. Acesso em: 21 out, 2022.