Muito se tem discutido sobre o uso de animais em cerimônias, festas e espetáculos no Brasil. Qualquer criança nascida até a década de 1990 com certeza já se divertiu muito em shows com animais, recordam-se os elefantes de circos que fazem trapalhadas, tigres que atravessam bambolês jogados ao alto por seus domadores, aves que voam sobre o público etc. Dentre as mais divertidas festas não se pode esquecer da Vaquejada.
Na vaquejada, dois vaqueiros, cada um montado em seu cavalo, perseguem o boi na arena e, após emparelhá-lo com os cavalos, tentam conduzi-lo até uma região delimitada, onde deverão derrubar o boi puxando-o pelo rabo. Se o boi, quando foi derrubado, ficou, ainda que por alguns instantes, com as quatro patas para cima antes de se levantar, o juiz declara ao público “Valeu boi!” e a dupla recebe os pontos. Se o boi caiu, mas não ficou com as patas para cima, o juiz anuncia “Zero!”, e a dupla não pontua.1
Existem muitas variações brasileiras de espetáculos com bovinos, dotados de nomes e regras diferentes a depender da região onde são praticados, dentre os principais: O Laço e os Rodeios. O ponto em comum de todas as festas é a estrela do espetáculo, certamente o boi. Ao público competirá torcer pela desenvoltura dos competidores ao enfrentar os animais, e escolher as equipes que obtiveram sucesso na tarefa. Ganha quem mais desafiar o animal, em outras palavras, quem o tiver humilhado mais: no caso da Vaquejada e do Laço quem o derrubou com maior maestria; nos rodeios o homem que subsistiu mais tempo montado no touro saltitante.
A Vaquejada, assim como todas as demais variações regionais, é um esporte com roupagem de festa, praticado diante de um grande público torcedor, uma verdadeira olimpíada sobre patas. É fácil compará-la com os esportes romanos da antiguidade, quando homens e animais se gladiavam num coliseu diante de uma grande plateia torcedora. Assim como nos esportes bovinos atuais, havia também em Roma juízes que escolhiam o guerreiro de maior êxito na carnificina, à semelhança do vaqueiro que melhor derrubou o boi.
Ainda comum em algumas regiões do Brasil, esses espetáculos, no entanto, têm perdido público nos últimos anos. Já é um desafio encontrar qualquer criança nascida no século XXI que queira assistir um alarde com animais, ou que sequer tenha ouvido falar de algum, seja com bovinos, elefantes, tigres, ou qualquer outra besta excêntrica. Há pessoas que dizem estarem contados os dias dos espetáculos com animais, outros vão além, prontamente já os descrevem como mito e histórias do passado.
Afinal, o que pode ter acontecido? Estão mesmo as festas com feras exóticas extintas? A resposta para essas perguntas está longe de ser resolvida, ainda não se pode vislumbrar um consenso, todavia, a lei e o Poder Judiciário já tentaram colocar um fim.
A Constituição Federal brasileira de 1988, em seu art. 215, caput, prevê a importância dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional. Como forma de proteger/tutelar esses direitos, exige que o Estado garanta a cultura e incentive a valorização e difusão das manifestações culturais. O parágrafo primeiro do mesmo artigo da Constituição ainda vai além, exige que o Estado proteja – todas – as manifestações das culturas populares, de qualquer grupo participante do processo civilizatório nacional.2
Assim como a Vaquejada, muitos outros espetáculos com animais são indubitavelmente culturas populares. Há inclusive cidades e povos brasileiros que foram criados ao redor dessas manifestações: como ocorre com o Festival Folclórico de Parintins (município do interior do estado do Amazonas), reconhecido como patrimônio cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; a grande Festa do Peão de Barretos, que acontece todos os anos no interior do estado de São Paulo; a Vaquejada de Juazeiro do Norte, no estado do Ceará (…) e muitos outros.
É fácil dizer que se as festas fizeram parte do processo de criação das sociedades brasileiras, então obrigatoriamente devem ser preservadas. Contudo, se engana quem pensa ser uma questão de solução simples e desembaraçada. A Constituição brasileira de 1988 também impede – todas – as práticas que coloquem em risco de crueldade os animais:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (grifei)3
Ora, não é preciso muito esforço para concluir que espetáculos com animais os submetem a muito estresse, alguns deles, inclusive, têm como principal objetivo induzir vexame e humilhação nos brutamontes. Nos Rodeios, quanto mais estressado o boi, mais é esperado que ele pule para derrubar o peão; no Laço e na Vaquejada, quanto mais o animal estiver bravo e assustado, mais rápido fugirá das equipes que o tentam derrubar. Portanto, é indiscutível que os espetáculos entorno deles os submetem a crueldade, ato em desconformidade com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Enfim, são permitidas as festas, esportes ou espetáculos entorno de animais? Do ponto de vista legal/constitucional, deve-se preservar a cultura popular adjacente, parte do processo civilizatório brasileiro, ou é mais importante garantir o não sofrimento dos animais? Adianto que não há resposta pronta, nem consenso, mas o Poder Judiciário já se pronunciou no caso da Vaquejada. Essa questão estudaremos na próxima coluna de Direito Constitucional Popularizado, “o assunto ainda vai dar pano pra manga!”.
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Referências
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1. DIZER O DIREITO. Lei 13.873/2019: altera a Lei 13.364/2016 para reforçar que as atividades de rodeio, vaquejada e laço são bens de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro. Disponível em: https://bit.ly/3F6it62. Acesso em: 08 nov. 2021.
2. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.
3. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.