ANPD e a independência para além da formalidade

ANPD e a independência para além da formalidade

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Um sistema de proteção de dados pessoais, inserido no fluxo informacional que ultrapassa fronteiras e que afeta todas as atividades e classes sociais, demanda a atuação dos mais variados agentes. Assim, reduzir a problemáticas e seus danos à esfera individual demonstraria nossa fuga da realidade. Rodotà, nesse ponto, nos lembra que uma estratégia jurídica integrada de proteção de dados deve conter não só uma disciplina legislativa base dotada de cláusulas gerais e normas específicas, presentes em leis autônomas, mas também uma “autoridade administrativa independente, eventualmente dotada de poderes para a adaptar a situações particulares os princípios contidos nas cláusulas gerais”.1

Esse agente cumpre, novamente citando Rodotà, com o papel de vigilância constante, pois enquanto outros sujeitos agem de maneira eventual e fragmentada,2 a autoridade independente concentra esforços para servir continuamente: i) como “cão de guarda” da legalidade do tratamento de dados; ii) como órgão consultivo a agentes públicos e privados; e iii) facilitador de práticas consensuais para fixar procedimentos, bem como editor de regulamentos que adaptem os princípios da lei.3

O papel de uma autoridade garante, assim entendida como aquela capaz de ponderar as situações subjetivas constitucionais sem estar vinculada ao interesse público administrativo,4 assume importante papel na sociedade movida à dados. No contexto europeu, apesar de suas peculiaridades, é possível ver a atuação de algumas delas, mediante, dentre outras medidas, na aplicação de multas contra grandes empresas de tecnologia que violam a GDPR. Por exemplo, em decisão recente o Comitê Europeu de Proteção de Dados concluiu por elevar duas multas ao Facebook e ao Instagram: de €36 e €23 milhões de euros para, respectivamente, €210 milhões e €180 milhões de euros.5

Essa possibilidade se insere na independência positivada no regulamento de proteção de dados europeu. Seu art. 52, ponto 1, expressa que elas possuem “total independência” para o cumprimento de suas obrigações, bem como seus membros “não estão sujeitos a influências externas, diretas ou indiretas no desempenho de suas funções” (ponto 2). O artigo ainda enfatiza que os Estados-membros devem “garantir os recursos humanos, técnicos e financeiros, instalações e infraestruturas necessárias” (ponto 4), próprio pessoal sob direção exclusiva das autoridades (ponto 5) e um controle financeiro separado e público que não afete sua independência (ponto 6). Busca-se, ao final, retirar possíveis amarras ao pleno exercício técnico e protetivo dos dados pessoais que delas se esperam.6

No contexto brasileiro há uma situação um pouco complexa, justamente pelas sucessivas alterações que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados passou. A sua inserção no projeto de lei ocorreu na Comissão especial da Câmara dos Deputados em 2018, na época PL5276/2016. Logo após a estrutura de autarquia prevista foi vetada pela Presidência da República. Em 2018 foi editada a MP 869/2018, mais tarde convertida na Lei 13853/2019, que disponha de sua natureza de órgão público dentro da Presidência. Todo esse trâmite foi objeto de críticas, justamente pela não autonomia e impossibilidade de patrimônio próprio. Ainda tinha o problema da dependência dos recursos, abrindo caminho para que agentes externos neutralizassem suas atividades,7 bem como os riscos a competividade brasileira no cenário internacional, pois a comunidade europeia esperava uma autoridade mais independente, ao mesmo tempo que essa medida facilitaria a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).8

Felizmente foi adicionado o art.55-A (hoje com nova redação) que atestava a natureza transitória da autoridade a ser revista dois anos após sua estrutura regimental. De fato: em 2022, com a edição da Medida Provisória nº 1124, logo após convertida na Lei 14460, a ANPD foi transformada em autarquia de natureza especial.

Isso não significa dizer que desde seu funcionamento efetivo, em novembro de 2020, até o momento ela não tenha atuado ou não tenha êxitos. Pelo contrário, a autoridade mostrou-se presente com o levantamento de consultas públicas, audiências e tomada de subsídios, editou várias recomendações e atuou na defesa dos titulares. Segundo seu levantamento recente ela demonstrou ter cumprido 100% de sua Agenda Regulatória do biênio 2021-2022.9

Como bem lembram Gabrielle Sarlet e Daniel Rodriguez há casos de autoridades em outros países, como no Uruguai, que foi reconhecida como independente, apesar de não ser dotada de personalidade jurídica própria. Nesse sentido, a tão buscada autonomia “não deriva exclusivamente de sua formal separação da administração direta, senão de uma complexa estruturação que permita o seu livre proceder, infenso às influências políticas”.10

Podemos concluir que mesmo com a sua nova estrutura jurídica, garantida por lei, cabe ainda a ANPD continuar a compreender seus contornos, identificando possíveis agentes externos e internos que possam comprometer sua integridade e análise técnica. Isso implica aprofundar na realidade brasileira e entender como os atores influenciam na tomada de decisão de organismos institucionais de grande importância.

Um ponto que talvez possa testar a capacidade de autonomia da autoridade seja no momento de aplicação das multas. Uma das expectativas é a regulamentação da dosimetria e das sanções, com perspectiva ainda para fevereiro/março de 2023. Uma vez tornado público a sua forma de atuar e forem iniciadas as condenações poderemos ter alguma visão de seus procedimentos. Em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, por meio de entrevistas, constatou-se que a Autoridade Argentina, a qual passou por longo processo de transição da administração direta para a indireta, recebeu críticas pelos agentes privados pelo tratamento não isonômico. A pesquisa traz o dado que corrobora essa visão: desde a criação do órgão, em 2001, até a publicação da pesquisa, não houve uma única sanção aplicada ao poder público.11

Um dos caminhos para contribuírem na maior autonomia seria a estruturação híbrida de servidores com formação em tecnologia da informação somado a instrumentos de colaboração com a academia e setores privados[12], de forma a fortalecer as áreas de tecnologias da informação dentro da ANPD, formando seu know-how próprio, ao mesmo tempo que mantém diálogo com as diferentes esferas da sociedade.13

Certo é que não poderá nem a ANPD, tampouco os demais atores difusos e eventuais, descuidar da matéria da proteção de dados, cabendo a cada um estar atento a fim de contribuir para um ambiente que permite um fluxo informacional propício à inovação, mas que jamais descuide da proteção dos titulares de dados, tanto individual quanto coletivamente.

 

Referências

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1. RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância: a privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Renovar, Rio de Janeiro, 2008. p. 87.

2. RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância: a privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Renovar, Rio de Janeiro, 2008. p. 86.

3. RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância: a privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Renovar, Rio de Janeiro, 2008. p. 87.

4. DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. 2 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 318.

5. A decisão do Comitê decorre do questionamento de outras autoridades sobre pontos da Autoridade Irlandesa, a qual vinha conduzindo as investigações e aplicado os valores iniciais das multas. Facebook and Instagram decisions: “Important impact on use of personal data for behavioural advertising”. European Data Protection Board. 12 jan. 2023. Disponível em: https://bit.ly/4051LPK. Acesso em: 25 jan. 2023.

6. Isso não quer dizer que não há prestação de contas ou possibilidade de investigação. O próprio Considerando 118 da GDPR destaca que a independência garantida não significa ausência de monitorização ou controle jurisdicional.

7. FEIGELSON, Bruno; SILVA, Luiza Caldeira Leite. ANPD – Autoridade autoritária de dados. Jota Info. 01 jan. 2019. Disponível em: https://bit.ly/2F2R3SD. Acesso em: 24 jan. 2023.

8. TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Porque precisamos de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados? Jota Info. 07 jan. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3H5Nj1c. Acesso em: 24 jan. 2023. p. 230.

9. ANPD divulga balanço de acompanhamento e execução da Agenda Regulatória 2021/2022 referente ao 2º semestre de 2022. Autoridade Nacional de Proteção de Dados. 16 jan. 2023. Disponível em: https://bit.ly/3HeCslJ. Acesso em: 25 jan. 2023.

10. BEZERRA SALES SARLET, G.; PIÑEIRO RODRIGUEZ, D. A AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (ANPD): ELEMENTOS PARA UMA ESTRUTURAÇÃO INDEPENDENTE E DEMOCRÁTICA NA ERA DA GOVERNANÇA DIGITAL. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, [S. l.], v. 27, n. 3, p. 217–253, 2022. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v27i32285. Disponível em: https://bit.ly/3XYhmyL. Acesso em: 24 jan. 2023.

11. SIMÃO, Bárbara; OMS, Juliana; TORRES, Lívia. Autoridades de proteção de dados na América Latina: um estudo dos modelos institucionais da Argentina, Colômbia e Uruguai. São Paulo: IDEC, maio 2019. Disponível em: https://bit.ly/3wvL1DG. Acesso em: 25 jan. 2023.

12. BEZERRA SALES SARLET, G.; PIÑEIRO RODRIGUEZ, D. A AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (ANPD): ELEMENTOS PARA UMA ESTRUTURAÇÃO INDEPENDENTE E DEMOCRÁTICA NA ERA DA GOVERNANÇA DIGITAL. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, [S. l.], v. 27, n. 3, p. 217–253, 2022. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v27i32285. Disponível em: https://bit.ly/3XIavtm. Acesso em: 24 jan. 2023. p. 244.

13. BEZERRA SALES SARLET, G.; PIÑEIRO RODRIGUEZ, D. A AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS (ANPD): ELEMENTOS PARA UMA ESTRUTURAÇÃO INDEPENDENTE E DEMOCRÁTICA NA ERA DA GOVERNANÇA DIGITAL. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, [S. l.], v. 27, n. 3, p. 217–253, 2022. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v27i32285. Disponível em: https://bit.ly/3Dj8BHt. Acesso em: 24 jan. 2023. p. 244.

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