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Assédio, improbidade e a Caixa Econômica Federal

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Recentemente, as denúncias de assédio supostamente cometidas pelo presidente da Caixa Econômica Federal tomaram os noticiários e aqueceram as discussões sobre o rol taxativo dos ilícitos por improbidade administrativa em razão de violação a princípio da Administração. Pedro Guimaraes, ex-presidente da Caixa Econômica, está sendo investigado pelo Ministério Público Federal após denúncias de assédio sexual cometido contra funcionárias durante a sua gestão.

Apesar de o caso ser conduzido em sigilo, algumas depoentes aceitaram participar da reportagem realizada pelo Metrópolis,1 segundo o qual “As mulheres relatam toques íntimos não autorizados, abordagens inadequadas e convites heterodoxos, incompatíveis com o que deveria ser o normal na relação entre o presidente do maior banco público brasileiro e funcionárias sob seu comando”. Após a publicização do escândalo, o servidor exonerou o cargo. As investigações apontam que existia verdadeiro esquema de proteção ao ex-presidente e que as denúncias eram ignoradas ou caminhavam muito lentamente no interior da entidade. Não existia, portanto, efetiva investigação e punição dos envolvidos.

O assédio sexual é tipificado pelo artigo 216-A do Código Penal, o qual prevê “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.” Além da responsabilidade criminal prevista pelo ordenamento, encontra amparo na legislação eventual responsabilidade civil, por danos morais. A responsabilidade administrativa, porém, que poderia ser aplicada aos fatos sofreu profundas alterações em razão da reforma da Lei de Improbidade Administrativa, ocorrida em 2021.

A nova Lei de Improbidade mantém como atos de improbidade administrativa o enriquecimento ilícito (art. 9º), dano ao erário (art. 10) e violação à princípio da Administração Pública (art. 11). Em relação aos artigos 9º e 10, em que pese a lei ter objetivo de proteger a atuação dos agentes públicos, ainda restam dúvidas se o rol das condutas ali tipificadas são ou não taxativas. A redação dos respectivos artigos utiliza-se do advérbio “notadamente” antes de apresentar o respectivo rol, ensejando, portanto, dúvida e evidenciando certa incompatibilidade entre o texto legal e os fundamentos protetivos da reforma, a qual intentou conferir segurança jurídica aos gestores públicos e protegê-los de eventuais excessos dos órgãos de controle.

Todavia, essa dúvida não subsiste em relação ao art. 11. O texto da lei ficou redigido da seguinte maneira: “Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas”. A redação final deixa claro que somente há a tipificação prevista no caput se alguma das condutas elencadas tiver ocorrido no mundo dos fatos. Não há margem, portanto, para condutas não descritas ou interpretações extensivas. Além da expressa previsão legal, o direito administrativo sancionador, o qual é integrado pela tutela da improbidade, é conduzido pelos princípios protetores do direito sancionador por excelência, no caso, o direito penal. Destaca-se assim, a legalidade e a tipicidade das condutas e a proibição de analogia em prejuízo ao infrator.

Dentre as condutas violadoras dos princípios, destacamos a proibição ao nepotismo, a fraude a concurso público, a personalização da Administração Pública, a falta de publicidade aos atos oficiais. Porém, não há nenhum inciso que trate de assédio sexual ou alguma forma de violência no âmbito da Administração Pública.

É evidente, contudo, as práticas que estão sendo imputadas aos ex-Presidente da Caixa Econômica federal, empresa pública federal, são atentatórias aos princípios da Administração Pública, sejam os explícitos, como a moralidade, o qual costuma assumir contornos mais financeiros e econômicos, mas não se furta a proteção da dignidade sexual, bem como os implícitos, como o interesse público, na medida em que, não apenas a conduta do ex-presidente seria inadequada, mas toda a estrutura protetiva construída ao seu redor, tanto na inobservância do interesse público e na falta de eficiência na condução dos processos disciplinares de prováveis assediadores e cúmplices.

Porém, a ausência de tipicidade impede que os infratores sejam punidos por cometerem atos de improbidade. A responsabilização administrativa, no caso, estaria restrita à punição disciplinar, via processo administrativo interno. Outros crimes, como a tortura, também não foram contemplados pela redação da nova lei. Por exemplo, se policiais praticam violência sistematicamente contra uma pessoa presa, não podem ser punidos pela Lei de Improbidade vez que a tortura não está prevista no rol de condutas.

Ainda de acordo com a lei (art. 12, inciso III) as punições aos atos ímprobos atentatórios aos princípios são apenas o pagamento de multa civil de até 24 vezes o valor da remuneração e a proibição de contratar com o poder público pelo prazo máximo de 4 anos. Diante da gravidade dos casos de assédio, tais sanções, ainda que pudessem ser aplicadas, seriam brandas e incapazes de promover a prevenção à violência, seja a geral, seja a específica.

Nota-se que a lei excluiu do seu âmbito de aplicação a punição de condutas violentas ou atentatórias à dignidade sexual como violadora de princípios, restringindo-se aos casos mais corriqueiros no atuar administrativo, como a fraude a concurso público. Acredita-se que o legislador, no caso, restou crente que tais condutas, por serem crimes, já estariam devidamente punidas. Contudo, em virtude de questões axiológicas e do objetivo de proteção dos valores da Administração, verifica-se a importância da punição dessas condutas no âmbito da improbidade, essencialmente por se tratar de conditas dolosas, para que os agentes públicos não se valham da proteção conferida para cometerem crimes dessa ordem.

Condutas violentas deveriam estar abarcadas pelo sistema punitivo de improbidade, seja por meio de uma previsão genérica, a exemplo da citação direta de condutas puníveis, ou pela previsão de um rol exemplificativo de condutas dolosas violadoras de princípios, sendo verificada. no caso concreto, as condutas ilícitas aos caros valores da Administração. Além disso, somaria a possibilidade de perda do cargo como sanção aplicável a tais condutas, de acordo com sua gravidade. Porém, observando-se a proporcionalidade entre as sanções impostas, de modo que a tutela da improbidade seja efetiva na proteção da moralidade e dos valores administrativos e não como forma de perseguição a determinados agentes ou instrumento desproporcional de sanção.

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Paulo Victor Barbosa Recchia

 

Referências

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1. RANGEL, Rodrigo; LEITE, Fabio; GULARTE, Jeniffer. Exclusivo: funcionárias denunciam presidente da Caixa por assédio sexual. Metrópoles. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3PoE7He. Acesso em: 13 ago. 2022.

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