Recentemente, o ator norte-americano B.J. Novak, conhecido pela aclamada série “The Office”, descobriu, de um jeito inusitado, que estampava vários produtos ao redor do mundo, sem receber nenhuma contrapartida financeira para tanto. Em tom cômico, Novak apontou produtos que vão desde perfumes na Suécia a barbeadores elétricos na China.
O ator destacou que alguns anos atrás alguém colocou uma foto sua em um banco de dados de imagens que são consideradas de domínio público, tecnicamente livres para serem utilizadas por qualquer um. Segundo Novak e o New York Times, não seria possível determinar quem foi o indivíduo que colocou a foto no banco de imagens.1
Geralmente, as pessoas nessas fotos são pagas especificamente para esse tipo de trabalho e, assim, transferem seus direitos de imagem para a empresa que as gerencia, sendo que a partir deste ponto as imagens são consideradas livres para uso. Novak destacou que mesmo sendo um engano, não pretende tomar ações legais.2
Contudo, a questão levanta interessantes parâmetros que poderiam ser analisados sob a ótica do Direito Civil Contemporâneo.
Sob a ótica da common law, Novak poderia optar, na via extrajudicial, pelo envio de cartas de desistência (cease-and-desist letters) para as empresas que obtiveram proveito com o uso indevido de sua imagem, ou, pela via judicial, poderia o ator se valer do instituto do disgorgement of profits.
Segundo o Legal Information Institute, o disgorgement é classificado como “um remédio que exige que uma parte que lucra com atos ilegais ou ilícitos ceda qualquer lucro que tenha obtido como resultado de sua conduta ilegal ou ilícita. A finalidade deste remédio é de se evitar o enriquecimento sem causa” (tradução nossa). 3
Caprice L. Roberts preleciona que se trata de “um remédio ousado e poderoso emergindo como uma nova expansão do direito contratual americano. O remédio não é novo, mas sua aplicação no contexto de violação contratual está florescendo (tradução nossa)”. 4
Miguel Kfouri Neto e Rafaella Nogaroli explicitam que “a raison d’être dos disgorgement damages é a retirada de qualquer benefício/lucro obtido pelo ofensor com a sua conduta ilícita, independentemente da existência ou não dessa transferência.” 5
Nelson Rosenvald indica que seria possível, nesta sistemática, “aplicar a remoção ou a devolução de ganhos indevidos no campo da violação a direitos de propriedade (tangível e intangível), contratos, relações de confiança, direito de concorrência, mercado de capitais e direitos da personalidade”. 6
Destarte, o referido instituto apresenta-se, contemporaneamente, como relevante instrumento que busca desestimular a prática dos ganhos indevidamente obtidos (ill-gotten gains). A questão que envolve o caso é a de que B.J. Novak não autorizou que a referida imagem fosse vinculada aos produtos mencionados, de forma que seu direito à imagem restou como violado no descrito episódio.
Portanto, em uma análise do sistema da common law e amoldando o caso em epígrafe às tendências da responsabilidade civil, o disgorgement7 teria espaço para que o ator buscasse compensação financeira pelo uso indevido de sua imagem na venda dos produtos, afinal, sendo uma pessoa famosa, existe a probabilidade de que os consumidores tenham adquirido determinado produto por tal motivo e, mesmo que tal argumento fosse rechaçado, a foto em questão foi escolhida com um específico objetivo de atrair consumidores à compra do produto.
Neste contexto, mais interessante seria para Novak ajuizar uma demanda em face das empresas que comercializaram os produtos com sua imagem, do que contra a pessoa que colocou a referida foto no banco de dados de domínio público, mesmo que a responsabilidade dos mencionados agentes seja distinta e com sustentáculo em diferentes condutas e com distinto grau de culpabilidade.8
No espectro da civil law, mais especificamente em relação ao ordenamento jurídico brasileiro, qual seria a alternativa de B.J. Novak quanto ao recente episódio?
Em linha congênere ao disgorgement of profits, poderia o ator se valer da figura do lucro da intervenção, que significa “o lucro obtido por aquele que, sem autorização, interfere nos direitos ou bens jurídicos de outra pessoa”,9 sendo a vantagem de cunho patrimonial obtida com base em direito alheio.
Nota-se, contudo, que o lucro da intervenção não é uma tradução do instituto norte-americano, sendo o objetivo de compará-los apenas o de destacar um de seus objetivos em comum: retirar da esfera do ofensor a vantagem financeira obtida de forma ilícita.
O lucro da intervenção ganhou destaque jurisprudencial no Recurso Especial nº 1.698.701/RJ, leading case da temática no Brasil, em que uma empresa de cosméticos utilizou da imagem da atriz Giovanna Antonelli, sem a sua autorização, para uma campanha publicitária de um produto.
A atriz requereu pela via judicial a compensação pelos danos patrimoniais e extrapatrimoniais sofridos, bem como a restituição dos lucros da intervenção auferidos pela empresa-ofensora.
Em breve contextualização do decisum, o voto do Ministro Relator Ricardo Villas Bôas Cueva destaca que a mera indenização dos danos causados seria insuficiente quando na hipótese do lucro obtido pelo ofensor superar tal valor, sendo possível a condenação do ofensor nos lucros auferidos com base na intervenção sob o direito alheio.10
Assim, B.J. Novak possuiria suporte jurisprudencial apto a justificar suas pretensões, ante ao paradigmático caso que ostenta similaridades que se amoldam ao caso em epígrafe, bem como escora nos recentes avanços doutrinários concernentes a matéria.
Observa-se, assim, a aplicação da máxima “tort must not pay”, isto é, o ilícito não deve ser lucrativo, pois, ao contrário, tais práticas seriam compensatórias aos ofensores e assim seriam eles beneficiados pela sua própria torpeza, algo que o Direito não admite.11
Em síntese, não excluindo outras possíveis vias para solucionar a temática, acredita-se como plenamente compatível a aplicação das referidas figuras com o caso traçado e com escopo nos ditames contemporâneos da Responsabilidade Civil, se apresentando como relevante instrumento de vedação de ganhos ilícitos.
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Caio César do Nascimento Barbosa
Referências
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1. NEW YORK TIMES. B.J. Novak’s Face Is on Products Worldwide. He’s Not Sure Why. 2021. Disponível em: https://nyti.ms/3bZ0nX6. Acesso em: 28 out. 2021.
2. NEW YORK TIMES. B.J. Novak’s Face Is on Products Worldwide. He’s Not Sure Why. 2021. Disponível em: https://nyti.ms/3bZ0nX6. Acesso em: 28 out. 2021.
3. No original: “A remedy requiring a party who profits from illegal or wrongful acts to give up any profits he or she made as a result of his or her illegal or wrongful conduct. The purpose of this remedy is to prevent unjust enrichment.” (LEGAL INFORMATIONS INSTITUTE. Disgorgement. Disponível em: https://bit.ly/3n3lY6Q. Acesso em: 28 out. 2021)
4. No original: “Disgorgement is a bold, powerful remedy emerging as a novel expansion of American contract law. The remedy is not new, but its application in the context of contractual breach is bourgeoning”. (ROBERTS, Caprice L. Supreme Disgorgement. Florida Law Review, v. 68. Gainesville: Fredric G. Levin College of Law, 2016, p. 1413-1440, p. 1415)
5. KFOURI NETO, Miguel. NOGAROLI, Rafaella. A Aplicação do Lucro da Intervenção (Disgorgement of Profits) no Direito Civil Brasileiro: Um Novo Dano no Campo da Responsabilidade Civil ou Uma Categoria de Enriquecimento Sem Causa? In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de (Orgs.). Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 563.
6. ROSENVALD, Nelson. As fronteiras entre a restituição do lucro ilícito e o enriquecimento por intromissão. In: BARBOSA, Mafalda Miranda. MUNIZ, Francisco. ROSENVALD, Nelson (Coords.). Desafios da nova Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora JusPodivm, 2019, p. 313-314.
7. Como o objetivo do presente artigo não é dissertar amplamente sobre o disgorgement of profits, ante a sua extensão e complexidade, recomenda-se a leitura de: ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. Salvador: Editora JusPodivm, 2019; ROSENVALD, Nelson. As fronteiras entre a restituição do lucro ilícito e o enriquecimento por intromissão. In: BARBOSA, Mafalda Miranda. MUNIZ, Francisco. ROSENVALD, Nelson (Coords.). Desafios da nova Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora JusPodivm, 2019; ROSENVALD, Nelson. As funções da Responsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017; ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bernard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement? Revista Fórum de Direito Civil, Belo Horizonte, a. 6, n. 14, p. 11-31, jan./abr. 2017; KFOURI NETO, Miguel. NOGAROLI, Rafaella. A Aplicação do Lucro da Intervenção (Disgorgement of Profits) no Direito Civil Brasileiro: Um Novo Dano no Campo da Responsabilidade Civil ou Uma Categoria de Enriquecimento Sem Causa? In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de (Orgs.). Autonomia Privada, Liberdade Existencial e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 559-587; BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; SILVA, Michael César. Contenção de ilícitos lucrativos no Brasil: o disgorgement of profits enquanto via restitutória. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, a. 2, p. 517-542, 2020.
8. A defesa das empresas, no caso, certamente destacaria a (in)existência do nexo causal e a suposta ausência de culpabilidade dos agentes. Contudo, a jurisprudência que permeia a matéria demonstra diferentes rumos em que, mesmo com base em tais argumentos de defesa, o agente ainda seria condenado a indenizar o ator com base nos lucros obtidos a partir de sua imagem.
9. SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil e enriquecimento sem causa. São Paulo: Atlas, 2012, p. 7.
10. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.698.701/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julg. 02 out. 2018, Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, 08 out. 2018. Disponível em: https://bit.ly/31NgMMu. Acesso em: 01 nov. 2021.
11. Todavia, cumpre ressaltar que, assim como na jurisprudência anglo-saxônica o disgorgement of profits encontra alguns obstáculos, a figura do lucro da intervenção também possui causas impeditivas (ao menos em teoria) para atingir a eficácia plena, como a possibilidade de se ofender a cláusula de indenização geral prevista no artigo 944 do Código Civil, a suposta falta de amparo legislativo que poderia impedir uma maior amplitude indenizatória/compensatória, a indicação de que estar-se-ia utilizando de uma função punitiva (punição sem prévia cominação legal), o real valor dos lucros obtidos e a base de cálculo, dentre outros fatores levantados pela doutrina.