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Bebê Alice: Entre Memes, Sharenting e o Direito ao Esquecimento

Em dezembro de 2021, alcançou notoriedade um comercial do Banco Itaú envolvendo uma interação entre a renomada atriz Fernanda Montenegro e uma bebê de dois anos de idade, publicidade recorde de visualizações entre os anúncios do referido Banco e que se converteu em verdadeiro fenômeno nas redes sociais.

O motivo é a impressionante dicção da bebê envolvida, Alice Secco, que conquistou as mídias com a popularidade do comercial veiculado, e, ao mesmo tempo, rendeu inúmeros memes e compartilhamentos que refletem nos novos contornos do Direito Civil contemporâneo.

A mãe da criança, Morgana Secco, declarou que não autorizava a reprodução de imagens envolvendo a menor para fins humorísticos, em especial os que envolviam política e religião.1

Imediatamente, o descontentamento da mãe da criança rendeu discussões que envolvem os limites do compartilhamento de fotos de menores em plataformas digitais, limites da publicidade com crianças, a superexposição da bebê e a (im)possibilidade de criação de memes sob a ótica jurídica.

Ab initio, é necessário pontuar que é permitido legalmente a participação de crianças em publicidades, desde que exista concordância entre os responsáveis legais e autorização do órgão competente para tanto (art. 149, II, do ECA2 ), sendo necessária a observação – assim como em outros tipos de publicidade realizadas no país – às normas contidas no Código de Defesa do Consumidor, Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, etc.

Contudo, mesmo sendo permitida, a disposição contratual realizada entre o fornecedor/anunciante e os responsáveis legais não autoriza que terceiros compartilhem imagens dos envolvidos, preservando-se os direitos da personalidade estampados no Código Civil.

Neste norte, parece claro, em momento inicial, que os memes, in casu, atingem diretamente a imagem e a honra da menor, em total afronta ao artigo 20 do Código Civil. Ainda que os pais da bebê Alice tenham auferido lucros com o comercial veiculado, a autorização contratual para veiculação da imagem da menor é exclusiva do Banco, inexistindo permissão para que terceiros se apropriem do conteúdo para criação e compartilhamento de memes.

A questão, contudo, encontra-se em caminho sinuoso, uma vez que inexistem disposições normativas específicas para disciplinar os memes no Brasil. Lado outro, invoca-se o argumento da liberdade de expressão e o exercício do direito de sátira para justificar o vácuo legislativo que, não reprimindo, seria considerado permitido.

Em sentido:

Assim, se é utilizada imagem de uma pessoa – seja pública ou não –, com intuito jocoso, ofendendo, em princípio, sua dignidade humana e sua honra, temos que a liberdade de expressão deve dar espaço aos direitos da personalidade, que devem prevalecer, sendo que o ofendido poderá manejar ação de reparação por danos morais. 3

Alguns tribunais brasileiros entendem, em certa escala, que os memes envolvendo imagens de terceiros seriam indenizáveis nas situações em que o autor da figura humorística aufere lucros com o veiculado (observando-se, inclusive, o disposto na Súmula 403/STJ), ou quando o meme é manifestamente insultoso, mas é certo que, se tratando de uma menor, deve ser procedida maior observância aos direitos fundamentais inerentes a ela.

Ademais, como via de regra os criadores desses memes são grandes perfis humorísticos do Instagram, sendo certo que obtêm vantagens com o compartilhamento do conteúdo – seja pela via direta pecuniária, por meio da promoção de produtos e serviços, tal como pela indireta, através de engajamento e aumento de seguidores –, deve se aplicar a máxima do tort must not pay, isto é, o ilícito não deve ser lucrativo (não se pode ter ganhos desrespeitando os direitos de outrem).

A linha jurisprudencial contemporânea, a partir de casos similares4 , caminha na consolidação de garantia aos ofendidos de seu direito à indenização por danos morais, uma vez que, mesmo com o exercício da liberdade de expressão sendo estampado como garantia fundamental, ele não é absoluto e não permite abusos, sendo aqui compreendida a não permissão de violação a outros direitos. Deste modo, insta destacar que o limite da liberdade de expressão é a fronteira com um outro direito.

Lado outro, o caso “Bebê Alice” também movimenta discussão envolvendo o “sharenting”,5 que se traduz como uma exposição considerada excessiva, normalmente, por parte dos pais (ou de outro representante legal) de conteúdo sobre seus filhos nas redes sociais 6 , com a expressão surgindo da junção entre share (compartilhar) e parenting (paternidade).

A prática do sharenting não consubstancia uma afronta aos direitos das crianças e adolescentes, uma vez que essa exposição se encontra dentro dos limites legais da autoridade parental. Lado outro, em determinadas hipóteses a exposição de tais dados pode se tornar excessiva, é o que a doutrina denomina como (over)sharenting. 7 

Os limites da superexposição e da autoridade parental no contexto das mídias digitais são observados a partir do excesso – o denominado (over)sharenting –, em que são compartilhados momentos em que seriam considerados de privacidade, bem como situações vexatórias ou constrangedoras envolvendo a criança.

Aliando-se tal parametrização com a busca pela eficácia dos direitos da personalidade na sociedade do espetáculo, deve-se de destacar que a privacidade da criança é garantia fundamental, de modo que os pais necessariamente precisam observar os limites do que deve e o que não deve ser compartilhado.

A proteção da privacidade é um dos temas mais delicados na matéria dos direitos da personalidade, pois o potencial de ofensas à privacidade cresceu abruptamente com o desenvolvimento tecnológico e também com a dificuldade dos instrumentos de tutela tradicionais do ordenamento realizarem adequadamente esta proteção. 8

No caso em epígrafe, a genitora da bebê Alice não comete nenhum ilícito civil em suas redes sociais – que conta com mais de três milhões de seguidores – pois não compartilha fotos de sua filha de maneira desmoderada, excessiva ou vexatória. É preciso compreender que não é possível exigir que os pais deixem de publicar qualquer conteúdo na internet sobre seus filhos, e o compartilhamento moderado e saudável é prática legítima e legal, desde que não exceda os limites apontados.

Neste sentido, torna-se infundado o argumento levantado por alguns usuários de que a mãe da criança “deu azo à explosão de memes”, posto que o compartilhamento de fotos em suas redes sociais demonstra-se moderado e legítimo, bem como o comercial por si não caracteriza superexposição e tampouco autoriza a reprodução daquele conteúdo. Contudo, cabe mencionar que a criança, no futuro, poderá acionar os tribunais para garantia de seu direito ao esquecimento e eventual retirada dos conteúdos das redes.

É necessário enfatizar que a internet não pode ser considerada como “terra de ninguém”, sendo que os limites existentes no ordenamento jurídico brasileiro devem ser observados, amoldando-se e adequando-se aos preceitos consolidados até a existência de novas normas específicas para regulamentação da questão.

Merecido é o palco ao debate nas últimas semanas envolvendo os aspectos jurídicos do recente caso, posto que reascende a necessidade de parametrização legislativa envolvendo os novos danos da contemporaneidade. Assim, caso a “bebê Alice” vá parar nos tribunais, é importante, à luz dos valores e preceitos norteadores da Constituição da República de 1988, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente, observar os interesses da menor e, sobretudo, resguardar seus direitos fundamentais.

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Caio César do Nascimento Barbosa

 

Referências

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1. REVISTA VEJA. ‘Não autorizo’, diz mãe de bebê Alice sobre memes com a imagem da filha. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3qHlF3C. Acesso em: 12 jan. 2022.

2. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 12 jan. 2022.

3. BARBOSA, Caio César do Nascimento. Memes e Direito Civil: Aspectos Controvertidos. Magis – Portal Jurídico. Disponível em: https://bit.ly/32jtbII. Acesso em: 12 jan. 2022.

4. CONJUR. Juiz condena administrador de página a indenizar idoso por memes. Disponível em: https://bit.ly/3GLyPC6. Acesso em: 12 dez. 2021.

5. Para mais, ver: TARGINO, Sandra Simone Valladão. O sharenting e o direito à indenização dos filhos. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; ROSENVALD, Nelson; MUNIZ, Francisco. Responsabilidade Civil e Comunicação: IV jornadas luso-brasileiras de responsabilidade civil. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 399-408.

6. STEINBERG, Stacey B. Sharenting: Children’s Privacy in the Age of Social Media. Emory Law Journal, v.66, i.4, 2017, p.839-884. Disponível em: https://bit.ly/3rqgCUo. Acesso em: 18 maio 2021.

7. GUIMARÃES, Clayton Douglas Pereira; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira. Sharenting, (over)sharenting e autoridade parental. Magis – Portal Jurídico.  2021. Disponível em: https://bit.ly/3Ixxhx7. Acesso em: 12 jan. 2022.

8. DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no Código Civil. In:  TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo Código Civil: Estudos na perspectiva civil-constitucional. 3. Ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2007, p.53.

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