O fenômeno do sharenting entre influenciadores mirins é uma realidade cada vez mais comum nas redes sociais, impulsionada pelo crescente desejo das gerações mais jovens de se tornarem influenciadores digitais. Esses jovens, frequentemente incentivados ou geridos pelos próprios pais, atingem milhões de seguidores, conquistando um público fiel e potencialmente lucrativo para campanhas publicitárias.
O termo se originou “da junção das palavras de língua inglesa share (compartilhar) e parenting (cuidar, exercer a autoridade parental)”,1 e atualmente apresenta cada vez mais relevância, considerando que essa é a primeira geração de jovens a fazer sucesso nas redes sociais, principalmente como influenciadores.
Cada vez mais os jovens desejam se tornar influenciadores digitais, conquistando a relevância digital de seus “novos ídolos”, como demonstram dados de pesquisa realizada no ano de 2019 pela Morning Consult:
But young people don’t only trust influencers, they want to be them: 86% of Gen Z and millennials surveyed would post sponsored content for money, and 54% would become an influencer given the opportunity, according to the report by research firm Morning Consult, which surveyed 2,000 Americans ages 13 to 38 about influencer culture.2
Por trás desses perfis, muitas vezes, estão os pais/responsáveis, gerenciando a imagem dos filhos e suas atividades digitais. Contudo, a linha entre o gerenciamento adequado e a exploração é tênue. Em certos casos, os pais visualizam nos filhos verdadeiras “minas de ouro“, colocando-os em situações vexatórias ou expondo-os de forma exacerbada, com o objetivo de alcançar fama e lucro.
Esse abuso da autoridade parental é o que especialistas classificam como oversharenting, um fenômeno que vai além do simples compartilhamento cotidiano, passando a representar a superexposição dos direitos da personalidade dos menores, especialmente no que tange à imagem, privacidade e intimidade.
A prática do sharenting se demonstra usual no cenário dos influenciadores digitais mirins, pois, diversos responsáveis legais se utilizam das crianças e adolescentes para a criação de conteúdo para suas próprias redes sociais ou para as redes sociais dos infantes (criadas e administradas pelos pais ou responsáveis legais), com a finalidade de angariar seguidores, adquirir engajamento e, desse modo, auferir lucro por meio de atividade publicitária em ambiente digital.3
Esses jovens influenciadores produzem conteúdo que mescla entretenimento e publicidade, destacando brinquedos, games e aspectos cotidianos de suas vidas. Um fenômeno que cresceu com a popularidade desses influenciadores mirins é o sharenting, a prática dos pais ou responsáveis que expõem excessivamente a vida dos filhos nas redes sociais. Embora, em muitos casos, essa exposição seja consentida e até desejada pela criança ou adolescente, em outros, há uma linha tênue que separa o compartilhamento saudável da superexposição abusiva.
Nos últimos meses, duas figuras emblemáticas chamaram atenção nas redes sociais: os “Costco Guys” — A.J. Befumo e seu filho Eric, conhecidos no TikTok como “Big Justice” — traz à tona um exemplo peculiar desse fenômeno. Em síntese, pai e filho costumam fazer vídeos relacionados à rede varejista norte-americana Costco, avaliando produtos e realizando resenha de alimentos numa escala conhecida como “Boom or Doom”, indicando que se determinado alimento é bom ou ruim.
Os vídeos são classificados pelo público geral norte-americano como “hit or miss”, no sentido de ame ou odeie. O conteúdo é classificado por alguns como “cringe” (vergonhoso, em tradução livre), o que gera ondas de ódio gratuito na internet, algo praticamente inerente à atividade dos influenciadores. Contudo, esses conteúdos, mesmo sob tais alegações, ataques e possibilidade de se tornarem uma “auto sátira”, geram muito engajamento, pois não apenas os fiéis seguidores os acompanham, mas os chamados “haters” promovem uma base tão grande quanto os admiradores, promovendo um engajamento ainda maior através dos comentários, o que faz com que os vídeos fiquem sempre em alta. Não por menos, os “Costco Guys” possuem uma audiência de 1,3 milhão de seguidores, com vídeos de até 47 milhões de visualizações no TikTok.4
Assim, o canal, que começou de forma despretensiosa, transformou-se em um grande sucesso, com milhões de visualizações e seguidores fiéis. Contudo, Eric (Big Justice), de apenas 11 anos, já enfrenta a pressão do reconhecimento público, chegando a cogitar ser retirado da escola para evitar distrações. Embora o jovem Eric goste de participar dos vídeos, já menciona sentir-se assediado na escola e em locais públicos, o que indica um impacto emocional significativo. Esse tipo de impacto ressalta os dilemas éticos e psicológicos que permeiam a exposição constante de influenciadores mirins nas redes sociais.
Some-se a isso o fato de que, recentemente, fora divulgado um vídeo por trás das câmeras onde o pai A.J. ensaiava takes com o filho e um convidado, o que retirou, para muitos, o caráter supostamente espontâneo da dinâmica pai e filho e trouxe outros questionamentos envolvendo o bem-estar do menor: Big Justice pode estar vivendo o sonho do jovem americano de ser popular na internet, mas poderá, quando atingir a maioridade, se questionar se estava sendo pressionado a realizar os vídeos que podem ser constrangedores no futuro.
A narrativa dos Costco Guys, onde o sucesso viral rapidamente alterou a dinâmica familiar, serve como alerta sobre os desafios do sharenting e suas ramificações. A exposição precoce, quando não bem dosada, pode não só gerar lucro, mas também comprometer o desenvolvimento infantil e os direitos à privacidade e ao bem-estar emocional dos menores envolvidos.
A busca pelo sucesso digital não pode sobrepujar a necessidade de garantir um crescimento saudável, preservando os direitos fundamentais das crianças e adolescentes. A fronteira entre o sharenting saudável e o over-sharenting pode ser nebulosa, mas o bem-estar do menor deve ser sempre a prioridade.
A experiência dos Costco Guys exemplifica o desafio ético de equilibrar o desejo dos pais de compartilhar a vida de seus filhos e a proteção dos direitos fundamentais das crianças, como privacidade e bem-estar psicológico. Ao mesmo tempo, colocam em evidência o papel ativo que essas crianças desempenham como influenciadores e como o contexto digital pode amplificar as dinâmicas familiares em torno da fama e do lucro.
Ademais, a questão financeira deve ser balizada neste sentido, sendo que parte dos lucros aferidos devem ser destinados ao menor, quando atingir a maioridade, sob pena de se popularizarem casos como o de Larissa Manoela.5 É essencial que existam normas legislativas para proteger o patrimônio de influenciadores e celebridades mirins antes de atingirem a maioridade. A França, pioneira nessa regulamentação6 com a Lei n. 2020-1266, exige que os responsáveis obtenham licença governamental para a divulgação de conteúdo criado por menores. A legislação equipara influenciadores a outras celebridades infantis, como atores e apresentadores, representando um importante avanço.
Além disso, os responsáveis devem gerenciar os ganhos das crianças, que são depositados em uma poupança sob vigilância estatal até a maioridade. Essa medida se assemelha à “Coogan Account” dos EUA, que destina 15% dos rendimentos de artistas infantis a uma conta fiduciária. Casos como os de Britney Spears e Jennette McCurdy chamaram a atenção para abusos, com McCurdy relatando a violação de sua Coogan Account em sua autobiografia.
A proteção do direito à imagem e à privacidade de crianças e adolescentes é profundamente impactada no ambiente digital, onde se cria uma identidade virtual muitas vezes sem a iniciativa ou o consentimento dos próprios infantes. O sharenting priva as crianças do poder de decisão sobre suas escolhas e identidade, forçando-as a viver com uma exposição não escolhida. Nesse contexto, o uso abusivo da imagem e nome dos menores por pais ou responsáveis para autopromoção ou ganhos financeiros afronta diretamente os direitos de personalidade das crianças e adolescentes, que têm sua dignidade violada ao serem tratadas como ferramentas de lucro.
Além disso, as crianças e adolescentes, por serem relativamente ou absolutamente incapazes, dependem de seus pais ou responsáveis para assegurar seu desenvolvimento adequado, o que deve ser feito sempre com base no princípio do melhor interesse. A superexposição dos influenciadores mirins, especialmente nas situações de (over)sharenting, pode resultar em danos psicológicos e emocionais, contrariando preceitos constitucionais e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Dessa forma, o debate em torno do sharenting exige uma reflexão mais profunda sobre os limites da autoridade parental no contexto digital. Embora a exposição moderada e saudável possa não prejudicar o desenvolvimento das crianças, a superexposição, caracterizada pelo (over)sharenting, é um tema sensível, que pode culminar em responsabilizações civis e até na perda de autoridade parental em casos de abuso claro. Assim, proteger os direitos da personalidade dos influenciadores mirins, especialmente sua imagem, privacidade e dignidade, é um passo crucial para evitar danos irreparáveis no futuro.
Referências
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1. AFFONSO, Filipe José Medon. Little Brother Brasil: pais quarentenados, filhos expostos e vigiados. Jota. 2020.Disponível em: site. Acesso em: 10 out. 2024.
2. Tradução nossa: Mas os jovens não confiam apenas nos influenciadores, eles querem ser eles: 86% da Geração Z e da geração do milênio pesquisados postariam conteúdo patrocinado por dinheiro, e 54% se tornariam um influenciador se tivessem a oportunidade, de acordo com o relatório da empresa de pesquisas Morning Consult, que pesquisou 2.000 americanos com idades entre 13 e 38 anos sobre a cultura do influenciador. (LOCKE, Taylor. 86% of young people say They want to post social media content for money. CNBC. 2019. Disponível em: site. Acesso em: 10 out. 2024).
3. SILVA, Michael César; BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira.
Influenciadores digitais mirins e (over)sharenting: uma abordagem acerca da superexposição de crianças e adolescentes nas redes sociais. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; DENSA, Roberta (Coords.). Infância, Adolescência e Tecnologia: o estatuto da criança e do adolescente na sociedade da informação. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022, p.397-420.
4. ROLLING STONE. Meet A.J. and Big Justice, the Father-Son Duo Behind the Viral ‘Costco Guys’. 19 Jul. 2024. Disponível em: site. Acesso em: 10 out. 2024.
5. BARBOSA, Caio César do Nascimento. VILAÇA, Jéssica Luana de Oliveira. Caso Larissa Manoela: a necessidade da criação de legislação específica para garantir o melhor interesse patrimonial da criança e do adolescente. Portal Jurídico Magis. 26 ago. 2023. Disponível em: site. Acesso em: 10 out. 2024.
5. FRANCE, Assemblée Nationale. Lei N° 2020-1266. 2020. Disponível em: site. Acesso em: 12 ago. 2024.