Em 1º de julho de 2021, foi publicada a Lei n. 14.181/21, a denominada Lei do superendividamento para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.
Esta lei, em seu artigo 54-A, § 1º, dispõe sobre o conceito de superendividamento ao estabelecer que “entende-se por superendividamento a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.” Percebe-se então claramente que o legislador fez uma opção por aplicar o instituto do superendividamento somente às pessoas naturais, o que se percebe neste dispositivo e outros que expressamente se referem à pessoa natural. Esse é o entendimento exposto pelos autores:
A origem da Lei n. 14.181/21, que cria uma espécie de “falência”, ou melhor, “recuperação extrajudicial” do consumidor pessoa natural, explica essa limitação, pois as pessoas jurídicas já têm seu sistema de tratamento do “endividamento” de risco ou falência das pessoas jurídicas.1
Afirmam ainda os autores, que exclusão social é um fenômeno das pessoas, dos indivíduos, mas entendem que a jurisprudência poderia se utilizar de algumas regras de prevenção, analogicamente, para pequenas pessoas jurídicas. 2
Entretanto, sabe-se que há muito tempo os tribunais brasileiros vêm adotando com relação ao conceito de consumidor, a denominada teoria finalista mitigada ou aprofundada.
Segundo esta teoria, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor ao empresário ou sociedade empresária, excepcionalmente, no caso concreto em que for demonstrada a vulnerabilidade desse consumidor-empresário. Nos últimos julgados do Superior Tribunal de Justiça, a destinação final do produto tem-se demonstrado irrelevante para a caracterização do consumidor-empresário. 3
Diante desse novo instituto introduzido no direito do consumidor brasileiro a pergunta que se faz é: não haveria uma contradição dentro do próprio Código de Defesa do Consumidor que prevê a pessoa jurídica como consumidora? O art. 2, caput, do CDC, dispõe que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Ainda no art. 51, I, está expressamente previsto que “nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis”.
Percebe-se que não foi equívoco do legislador expressamente prever a aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao empresário e sociedade empresária. Todavia, como já amplamente debatido pela doutrina, a finalidade do Código de Defesa do consumidor é a proteção da pessoa natural, ela é a destinatária final da lei, e a jurisprudência, com o finalismo mitigado admitiu a aplicação do CDC ao empresário e sociedade empresária, de forma excepcional.
Ocorre que a aplicação do finalismo mitigado não foi restrita a um instituto ou um dispositivo do Código, e nem poderia sê-lo, pois a aplicação dá-se em todo o Código de Defesa do Consumidor.
Desse modo, ao restringir a aplicação da prevenção e tratamento do superendividamento somente ao consumidor pessoa natural resta clara a intenção do legislador em retirar da proteção desse instituto a pessoa jurídica, mas nos parece que esses dispositivos mostram-se contraditórios ao próprio Código.
Ao estabelecer que consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final o legislador original não fez qualquer restrição. Nesse sentido, os autores João Paulo A. Vasconcelos, Sandro Marcos Godoy e Lícia Pimentel Marconi já defenderam que as regras do sureperendividamento aplicam-se ao empresário individual:
“Diante do exposto, entende-se que as normas da lei do Superendividamento alcançam o empresário-individual-consumidor, destinatário dos processos de repactuação de dívidas e por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas previstos nos artigos 104-A e 104-B do CDC, meios alternativos ao instituto da recuperação da empresa (lei 11.101/2005) para a superação da crise econômica ou financeira do empreendedor individual, porquanto, em tese, mais acessíveis, eficientes e efetivos, à medida que, de um lado, viabilizam a adimplência e a preservação da empresa e, de outro, garantem o mínimo existencial e a dignidade.” 4
Afirmam os autores que aplicar as regras do superendividamento ao empresário individual atende ao princípio da preservação da empresa, uma vez que esses agentes têm crucial relevância na economia nacional, além do que esses atores possuem um regime de responsabilidade patrimonial único, “regra segundo a qual não há distinção entre os bens pessoais ou particulares do empreendedor e os bens empresariais (afetados ao exercício da empresa), que se confundem.” 5
Ocorre que a teoria finalista mitigada também não faz qualquer restrição à aplicação do CDC ao empresário individual, existem vários julgados aplicando o finalismo mitigado ao empresário e à sociedade empresária, o que define o finalismo mitigado não é o tipo de pessoa jurídica, mas sim a sua vulnerabilidade perante o fornecedor, art. 4, I, da Lei n. 8.078/90. Portanto, excluir as demais espécies de pessoas jurídicas da aplicação das regras do superendividamento não nos parece adequada. A intenção do legislador era excluir todas pessoas jurídicas e não esta ou aquela espécie.
Percebe-se que o tema é bastante polêmico e será objeto de debate no poder judiciário. É cediço que os empresários e sociedades empresárias obtêm empréstimos e créditos no mercado financeiro como forma de fomento à sua atividade, sendo um dos principais aspectos econômicos de qualquer país. Sabe-se que esses personagens são os principais destinatários desses créditos e estão sujeitos às todas as práticas elencadas na Lei n. 14.181/21.
Um dos pontos que se pode questionar acerca da aplicação das regras do superendividamento ao consumidor-empresário seria o mínimo existencial. Esse conceito que é um conceito bastante polêmico, se refere ao consumidor pessoa natural, mas não seria possível pensar em um mínimo existencial da pessoa jurídica? Um valor ou um percentual que deveria ser preservado para que a mesma continue operando?
As pessoas jurídicas possuem um regime próprio que é a recuperação de empresas prevista na Lei n. 11.101/05, mas a pessoas jurídicas também possuem regulamentação própria no que diz respeito aos seus contratos empresariais e, mesmo assim, na prática, os tribunais reconheceram a possibilidade de aplicação do Código de Defesa do consumidor àquelas que se mostravam vulneráveis. Perceba-se que a chave de aplicação do finalismo mitigado é a vulnerabilidade e elas podem ser vulneráveis em uma contratação de crédito. Ademais, a recuperação de empresas prevista na referida lei é um procedimento bem mais amplo, envolvendo qualquer espécie de dívida e também muito mais complexo. Esses fatores, por si só, vão levar pequenos empresários e sociedades empresárias ao judiciário na busca de uma repactuação de suas dívidas de crédito. No Brasil, deve-se ficar atento entre o ‘ser” o “dever ser”.
Todos sabem que o empresário e a sociedade empresária deveriam ser constituídos por pessoas preparadas, com assessoria jurídica e conhecimento de contratos dos mais diversos tipos, mas a realidade é completamente diferente. É o seu José, taxista que vai solicitar um empréstimo bancário para financiar o veículo, é a sociedade empresária da papelaria que assina um contrato com o banco com cláusulas abusivas. Esses abusos das instituições financeiras com o pequeno e médio empresário continuarão acontecendo e agora pode existir um instrumento adequado para a solução do problema.
O certo é que mesmo com todas as intenções do legislador em restringir a aplicação do superendividamento às pessoas naturais, a realidade pode ser completamente diferente.
À medida que esses novos direitos previstos no CDC forem sendo implementados, os tribunais provavelmente serão chamados a se posicionar a respeito da aplicação das regras do superendividamento às pessoas jurídicas, e assim como acontece com o restante do Código, a aplicação do finalismo mitigado provavelmente será excepcional, desde que a pessoa jurídica demonstre a sua vulnerabilidade no caso concreto, mas essa resposta será dada pela jurisprudência.
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Referências
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1. BENJAMIN, Antônio Herman et. al. Comentários à Lei 14.181/21: a atualização do CDC em matéria de superendividamento. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 33.
2. BENJAMIN, Antônio Herman et. al. Comentários à Lei 14.181/21: a atualização do CDC em matéria de superendividamento. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 34.
3. Nesse sentido, já tivemos a oportunidade de discutir: “Tem-se notado nas últimas decisões do STJ acerca do tema que a discussão sobre o destinatário final acabou ficando em segundo plano ou muitas vezes não tendo relevância na aplicação do finalismo mitigado. O Superior Tribunal de Justiça tem admitido a mitigação da teoria finalista para autorizar a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), apesar de não ser destinatária final do produto ou serviço, apresenta-se em situação de vulnerabilidade. Esse posicionamento pode ser inferido dos seguintes julgados mais recentes da corte: AgRg no AREsp 601234/DF, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 12/05/2015, DJe 21/05/2015; AgRg no AREsp 415244/SC, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 07/05/2015, DJe 19/05/2015; REsp 567192/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 05/09/2013, DJe 29/10/2014; AgRg no REsp 1321083/PR, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 09/09/2014, DJe 25/09/2014; AgRg no AREsp 426563/PR, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 03/06/2014, DJe 12/06/2014; AgRg no REsp 1413889/ SC, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 27/03/2014, DJe 02/05/2014; AgRg no AREsp 439263/SP, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Turma, julgado em 27/03/2014, DJe 04/04/2014; EDcl no AREsp 265845/ SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 18/06/2013, DJe 01/08/2013; AREsp 588646/SP (decisão monocrática), Rel. Ministra Isabel Galloti, julgado em 03/06/2015, DJe 15/06/2015; REsp 1500994/RS (decisão monocrática), Rel. Ministro Moura Ribeiro, julgado em 06/03/2015, DJe 10/04/2015. (Jurisprudência em Tese n. 39)” (OLIVEIRA, Júlio Moraes. Curso de Direito do Consumidor Completo. 7. ed. Belo Horizonte: D´Plácido, 2021. p. 176-177).
4. VASCONCELOS, João Paulo A.; GODOY, Sandro Marcos; MARCONI, Lícia Pimentel. O empresário individual como destinatário da lei do Superendividamento? Migalhas. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3nPhuRQ. Acesso em: 24 nov. 2021.
5. VASCONCELOS, João Paulo A.; GODOY, Sandro Marcos; MARCONI, Lícia Pimentel. O empresário individual como destinatário da lei do Superendividamento? Migalhas. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3nPhuRQ. Acesso em: 24 nov. 2021.