A disputa pelos interesses de vários setores dentro das leis não é situação nova. Distintos ramos profissionais, classes sociais, culturas e demais grupos buscam influenciar as legislações e as formas de interpretação de dispositivos normativos. A Lei Geral de Proteção de Dados não ficou fora. Justamente por seu caráter transversal sua aplicação é de interessante de todos os setores da sociedade.
Como podemos perceber no art.2º da LGPD há uma busca pelo equilíbrio dos interesses e, ao mesmo tempo, a busca por uma harmonização destes. Valores como o livre desenvolvimento da personalidade (inciso VII) e o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação (inciso V) aparecem nesse artigo. Esse último inciso ao ser inserido, segundo Souza, Magrani e Carneiro, contribui para retirar um antagonismo artificial entre proteção de dados e inovação,1 uma vez que o desenvolvimento permite também que mecanismos de proteção de dados sejam aperfeiçoados e criados.2
Uma das questões contudo que aparece na LGPD é a defesa da personalidade no art.1º e em contrapartida as sucessivas disposições do termo “segredo comercial e industrial”, espalhados pela lei. A utilização do termo acaba remetendo a propriedade intelectual, em especial uma forma de “proteção” que não está expressamente disposta: o segredo.
Interessante ponto que as disposições em que esse termo aparece na LGPD está comumente ligado a situações de tensão entre os direitos do titular, a aplicação do princípio da transparência e do livre acesso, bem como das comunicações junto a Autoridade Nacional de Proteção de Dados. A questão que se coloca é: poderia esse segredo ser um entrave a proteção dos titulares de dados pessoais?
A publicização da produção e do conhecimento técnico de empresas e inventores é de fato uma questão complexa, uma vez que se busca ter algum reconhecimento pelo que foi criado, mas como garantir que ao torna-lo conhecido alguém não venha e copie a invenção, de forma que outro desfruta em nome próprio do esforço empenhado? A Lei de Propriedade Industrial, a Lei do Software, Lei dos Direitos Autorais, Lei dos Cultivares e demais leis pertencentes a essa área de estudo permitem caminhos para proteção da criação humana, seja por meio de patentes, marcas, cultivares, softwares e outras formas de proteção.3
Contudo, em um sistema de leis que preza por vários valores, todos conformados a melhoria das relações humanas, elencar um direito como absoluto demonstra-se um obstáculo.4 A própria proteção de dados é “flexibilizada” nas hipóteses do art.4º da LGPD frente a interesses como a defesa nacional (inciso III, alínea b) ou para fins jornalísticos e artísticos (inciso II, alínea a). Dessa forma se espera que o segredo comercial e industrial seja de alguma forma mitigado frente a defesa do titular.
Apesar da proteção intelectual e da proteção de dados não serem necessariamente estranhas uma a outra5 é importante lembrar que ambas possuem suas especificidades, de forma que transportar conceitos ou aglutina-las pode enfraquecer seus institutos.
Nos casos6 elencados por Ana Frazão, como no Compas de policiamento preditivo, a demissão de professores por sistemas algorítmicos e o sistema de recomendação da Uber questionado por motoristas pela sua opacidade podem nos ajudam a imaginar que em situações em que a coletividade seja lesada abre-se possibilidade de quebra do sigilo.
Esse chamamento à coletivização da proteção de dados é, de fato, uma necessidade, tendo em vista que não há só uma dimensão individual, mas uma massificação da prática para alimentar grandes bancos de dados, culminando em agrupamentos problemáticos e por que não dizer de alto risco aos direitos e liberdades fundamentais.7 Dessa forma a LGPD é aberta a proteção de interesses difusos,8 podendo em certa medida participar do microssistema do processo coletivo, os quais ganham mais corpo frente a segredos industriais que possam prejudicar a coletividade.
Contudo, caberá ainda maior papel da ANPD, seja em suas atribuições legais em requerer informações nos processos administrativos, seja na participação com órgãos e entidades em defesa de direitos coletivos a tarefa de balizar se o segredo comercial e industrial se mantém frente a interesses difusos.
Referências
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1. SOUZA, Carlos Affonso; MAGRANI, Eduardo; CARNEIRO, Giovana. Lei Geral de Proteção de Dados: uma transformação na tutela dos dados pessoais. In: MULHOLLAND, Caitlin (Org.) a LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago, 2020. p. 52.
2. SOUZA, Carlos Affonso; MAGRANI, Eduardo; CARNEIRO, Giovana. Lei Geral de Proteção de Dados: uma transformação na tutela dos dados pessoais. In: MULHOLLAND, Caitlin (Org.) a LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago, 2020. p. 52.
3. Não cabe nessa sede elencar cada um dos requisitos das várias formas de proteção da propriedade intelectual.
4. FRAZÃO, Ana. Transparência de algoritmos x segredo de empresa. Jota. 09 jun. 2021. Disponível em: site. Acesso em: 24 jul. 2023.
5. BARIVIERA, Eliz. Propriedade Intelectual e Proteção de Dados: das origens ao segredo de negócio. Lapin. 2 jul 2021. Disponível em: site. Acesso em: 24 jul. 2023.
6. FRAZÃO, Ana. Transparência de algoritmos x segredo de empresa. Jota. 09 jun. 2021. Disponível em: site. Acesso em: 24 jul. 2023.
7. Sobre a perfilização (profiling) e os riscos da prática para sujeito individual e coletividade confira-se: MARTINS, Pedro Bastos Lobo. Profiling na Lei Geral de Proteção de Dados: o livre desenvolvimento da personalidade em face da governamentalidade algorítmica. Indaiatuba: Foco, 2022.
8. ZANATTA, Rafael. Tutela coletiva e coletivização da proteção de dados pessoais. In: PALHARES, Felipe (Org.). Temas atuais de Proteção de Dados Pessoais. São Paulo: Thompson Reuters Brasil. P.345-374, 2020.