O Brasil é conhecido pelas danças, pela festividade, pelo futebol e pelo Carnaval. O brasileiro, pela calorosidade, pelo acolhimento e pela receptividade aos não-nacionais, estampados pela alegria constante, pelo sorriso no rosto e pelo abraço apertado. Porém, o que não contam são os limites dessa recepção. Como em qualquer situação, não é possível generalizar uma população nem pelos seus atos de bondade nem pelos de discriminação. Contudo, quando a violência ultrapassa o amor é importante alertar que “nem tudo são flores”, principalmente quando os atos são direcionados a pessoas que vivem à margem da sociedade.1
Este é o caso de nacionalidades consideradas periféricas,2 como nossos vizinhos venezuelanos. Por volta de 2010, a Venezuela começou a apresentar os primeiros sinais de uma crise. A partir de 2016, ela se tornou uma crise generalizada, de forma a afetar o campo social, econômico, político, humanitário e migratório. Além disso, ela atingiu uma escala transnacional, uma vez que necessitou – e ainda necessita – de ajuda internacional, principalmente de países transfronteiriços. Apesar de o Brasil ter contribuído com ajuda humanitária e recepção na fronteira por alguns anos, em 2018, o candidato à Presidência, Jair Bolsonaro, apresentou discursos xenofóbicos contra os venezuelanos.3 A partir de 2019, os discursos continuaram4 e o controle de fronteiras ficou mais rigoroso,5 principalmente com a pandemia Covid-19.6
Do mesmo modo, este é o caso dos negros de quaisquer nacionalidades, que vivenciam olhares desconfiados e atravessados. Por exemplo, em 2011, Moïse Kabagambe chegou ao Brasil – junto com a mãe e com os irmãos – como refugiado político no intuito de fugir da guerra na República Democrática do Congo.7 De acordo com a mãe de Kabagambe, um dos motivos da escolha do Brasil foi o fato de achar que todo mundo viveria junto e seria tratado como igual.8 Porém, ela descobriu a realidade brasileira de uma maneira brutal ao ter seu filho, de 24 anos, assassinado no posto 8 da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro não só em razão de uma cobrança de pagamento atrasado pelo seu trabalho, mas também de sua cor9 e da sua nacionalidade.
A xenofobia e o racismo são crimes executados pelo ódio instaurado no agressor. Em regra, o sujeito ativo dos atos violentos acredita ser superior em razão de etnia, cor, religião e/ou nacionalidade e, devido a isso, não aceita a igualdade concedida a eles (p. ex. convivência no mesmo ambiente, compartilhamento da mesma classe social, divisão dos mesmos saberes, garantia dos mesmos direitos, luta por seus direitos). Neste sentido, atuam como se os corpos marginalizados não pudessem atuar fora de um limite preestabelecido pelas autoridades (p. ex. instituições, empresas, indivíduos com características comumente julgadas como superiores).10 Em casos como o de Moïse Kabagambe, no qual o corpo exerce uma interseccionalidade11 entre migrante e negro, a situação se agrava.
Infelizmente, estes não são os primeiros casos de xenofobia e de racismo, bem como não serão os últimos. Por conta disso, é dever da sociedade brasileira que enxerga esses corpos como iguais expor a situação e, mais, defender que sejam aplicadas as sanções previstas contra quem descumpriu normas de direitos humanos e de direitos fundamentais.12 Em casos de violência, é bem verdade que gestos públicos em favor da memória da vítima não restituem de maneira equivalente sua vida. Ainda assim, é importante incentivar que, após atos de brutalidade, sejam realizadas atos públicos de demonstração de solidariedade com a vítima e sua família, como é o caso do memorial à cultura africana,13 a fim de que a sociedade, as instituições e as empresas não esqueçam dos atos criminosos anteriormente praticados.
Diante dos fatos expostos, é possível constar que o Brasil seja um país receptivo, mas não para todos. Portanto, é inegável a existência de uma seletividade com relação aos corpos que merecem respeito e igualdade. Dentre eles, corpos migrantes e negros continuam a ser exceções.
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Márcia Carolina Santos Trivellato
Referências
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1. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. De acordo com o Giorgio Agamben, existe um binômio inclusão-exclusão, controlado pelo poder soberano (autoridade responsável por uma dada situação), que determina as pessoas que (sobre)vivem à margem da sociedade.
2. WALLERSTEIN, Immanuel. Universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007. Para o autor, há uma divisão clássica na sociedade entre os países centrais/desenvolvidos e os periféricos/em desenvolvimento. Os Estados centrais são aqueles que se julgam como detentores de conhecimento científico e capazes de auxiliar no desenvolvimento dos Estados periféricos. Porém, em verdade, ao longo dos anos, as nações desenvolvidas têm subjugado as nações em desenvolvimento por meio do controle de corpos e do controle econômico.
3. BOLSONARO critica lei de migração e fala em barrar ‘certo tipo de gente’. Uol, [s.l.] 12 dez. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3357mgc. Acesso em: 07 fev. 2022.
4. RESENDE, Sarah Mota. Bolsonaro diz que maioria de imigrantes não tem boas intenções e que apoia muro de Trump. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 mar. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3rJ44sN. Acesso em: 07 fev. 2022.
5. RESENDE, Sarah Mota. Bolsonaro diz que maioria de imigrantes não tem boas intenções e que apoia muro de Trump. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 mar. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3rJ44sN. Acesso em: 07 fev. 2022.
6. CARMO, Márcia. ‘É a principal ameaça’: situação de pandemia no Brasil gera temor em vizinhos na América do Sul. BBC, [s.l.], 12 maio 2020. Disponível em: https://bbc.in/3uw9toI. Acesso em: 07 fev. 2022.
7. ASSASSINATO de congolês no Rio causa indignação. DW, Berlim, 01 fev. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3LhhB2g. Acesso em: 07 fev. 2022.
8. ‘EU só quero justiça. E peço: por favor, me ajudem’, diz mãe de congolês assassinado no Rio. Carta Capital, São Paulo, 01 fev. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3B3pljO. Acesso em: 07 fev. 2022.
9. ‘EU só quero justiça. E peço: por favor, me ajudem’, diz mãe de congolês assassinado no Rio. Carta Capital, São Paulo, 01 fev. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3B3pljO. Acesso em: 07 fev. 2022. “Eles quebraram o meu filho. Bateram nas costas, no rosto. Ó, meu Deus. Ele não merecia isso. Eles pegaram uma linha (uma corda), colocaram o meu filho no chão, o puxaram com uma corda. Por quê? Por que ele era pretinho? Negro? Eles mataram o meu filho, porque ele era negro, porque era africano”.
10. CRENSHAW, Kimberle W. A Interseccionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. In: Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004. Disponível em: https://bit.ly/3HFqQqQ. Acesso em: 07 jan. 2022. Um corpo interseccional é aquele que possui mais de uma característica de marginalização (p. ex. negro e migrante; mulher e migrante; negro e pobre).
11. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, [1988]. Disponível em:https://bit.ly/3oy8ssr. Acesso em: 07 fev. 2022. Não se deve esquecer de que o artigo 5º, I, da Constituição da República Federativa do Brasil prevê que, perante a lei, todos os homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Além disso, será garantida a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade tanto aos brasileiros quanto aos não-nacionais residentes no País.
12. CASO Moïse: quiosques serão transformados em memorial à cultura africana. Aventuras na História, São Paulo, 07 fev. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3LgE67r. Acesso em: 07 fev. 2022.