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Caso Larissa Manoela: a necessidade da criação de legislação específica para garantir o melhor interesse patrimonial da criança e do adolescente

Larissa-Manoela

Nas últimas semanas, ganhou repercussão nacional uma entrevista concedida pela atriz e influenciadora Larissa Manoela ao programa Fantástico, transmitido pela TV Globo, ocasião em que revelou que seus pais a mantinham desinformada a respeito da administração das finanças que ela acumulou ao longo de sua carreira1.

Os pais da atriz, apesar de administrarem seu patrimônio, não permitiam seu domínio financeiro e mantinham um controle extremamente rígido sobre os seus gastos. Quando Larissa resolveu tomar as rédeas da administração da sua vida financeira, foi surpreendida pela resistência implacável e pelas condutas agressivas dos seus pais, que, por meio de pressão psicológica, levaram a atriz a renunciar o valor de 18 milhões de reais.

O caso coloca em debate importantes discussões e análises acerca da temática da violência patrimonial e psicológica no contexto de relações familiares, ressaltando a necessidade de regulamentação específica para proteger crianças e adolescentes que possuem patrimônio administrados por seus genitores.

Um dos instrumentos mais utilizado na atualidade como meios de proteger o patrimônio são as chamadas holdings familiares. No caso envolvendo a atriz, a divisão das cotas da holding foi feita da seguinte maneira: apenas 2% (dois por cento) das cotas pertenciam a atriz, e os outros 98% (noventa e oito por cento) pertenciam aos pais, que se encontram sob a administração exclusiva dos bens da filha, mesmo após Larissa completar a maioridade e não possuir qualquer impedimento para que ela própria pudesse administrar e se responsabilizar por todos os seus atos civis.

A distribuição desigual das cotas na holding, a resistência e a pressão psicológica exercida pelos pais em permitir que a atriz administrasse seus próprios bens, levantaram preocupações sobre abuso de autoridade parental e violência patrimonial2. De acordo com a Lei Maria da Penha (11.340/2006), a violência patrimonial é “entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazerem suas necessidades”.

Diante do conceito acima, pode-se concluir que a conduta dos pais da atriz em insistir em ficar na administração quase que exclusiva dos bens, se apossando do patrimônio adquirido por ela, são fortes indícios da ocorrência de violência patrimonial. Em um primeiro momento, poder-se-ia pensar que a referida legislação não teria aplicação em face da genitora de Larissa, por se tratar de pessoa do sexo feminino, entretanto, já existem julgados no sentido de que embora o sujeito passivo, ou seja, o alvo de proteção da Lei 11.340 /06, seja a mulher, o sujeito ativo (agressor) pode ser tanto do gênero masculino quanto do feminino, desde que o fato tenha ocorrido em contexto de relação doméstica, familiar ou de afetividade. 3

Além da violência patrimonial, as condutas dos genitores descritas pela atriz evidenciam também a existência de uma clara violência psicológica diante da pressão dos pais que a levaram a renunciar de parte de seu patrimônio. Já é consolidado na jurisprudência a possibilidade da aplicação da Lei Maria da Penha nos casos em que inexiste vínculo afetivo ou de parentesco. Basta que violência seja praticada contra a mulher, tendo em vista que a sua finalidade é proteger as mulheres de todas as formas de violência, incluindo a familiar e patrimonial.

A análise à luz da Lei Maria da Penha demonstra a relevância de aplicar a legislação de maneira ampla para proteger indivíduos vulneráveis, independentemente do gênero dos agressores. No entanto, a lacuna na legislação ressalta a necessidade de medidas adicionais para proteger menores em situações similares e coibir abusos de autoridade parental, assegurando seu bem-estar financeiro e emocional.

Idealmente, seria que importante a existência de uma legislação específica que conferisse proteção à criança e ao adolescente, que em razão da sua tenra idade, somente passa a ter conhecimento, maturidade e condições para gerir a sua vida financeira na fase adulta, em casos que envolvam a administração de patrimônio e exploração financeira dos genitores de crianças e adolescentes, especialmente se os infantes estiverem envolvidos no meio artístico, a fim de coibir o exercício abusivo da autoridade parental.

Assim, o caso também chama atenção, dentre muitos aspectos, a respeito dessa ausência de legislação específica que garanta às jovens celebridades uma maior proteção patrimonial relacionada aos ativos financeiros adquiridos durante a menoridade. Cabe destacar que a regra estampada no artigo 1.689 do Código Civil Brasileiro4 dita que incumbe aos pais a administração dos bens de seus filhos menores, sendo qualificados como administradores e usufrutuários.

Tal responsabilidade cessa quando a autoridade parental é extinta e os filhos adquirem plena capacidade civil ao completarem a maioridade. Contudo, após os dezesseis anos, a vontade do menor passa a ser relevante nos atos de gestão, que deverão ser decididos em mútuo acordo. Os responsáveis devem, ainda, preservar o patrimônio, buscando não o onerar ou diminuí-lo.5

A regra consubstanciada no Código Civil, contudo, não abarca de forma contundente o recente fenômeno dos influenciadores digitais e o “boom” das celebridades mirins. Os influencers mirins emergem como figuras que, através das plataformas de mídia social, ganham considerável influência sobre o público jovem, desempenhando o papel de criadores de conteúdo dentro desse nicho. Eles oferecem entretenimento, compartilham momentos cotidianos e também promovem produtos e serviços novos, principalmente voltados para o âmbito de brinquedos e jogos.

A visibilidade de tais personalidades trouxe, aos responsáveis legais pelos menores, a possibilidade de empregar esforços com intuito de monetização do conteúdo criado, o que, em alguns casos, gera o abuso do exercício parental, através da difusão excessiva de diversos direitos da personalidade dos infantes, com intuito meramente lucrativo e com ativos administrados pelos pais, de forma desarrazoada, a prejudicar o patrimônio constituído pelos menores.6

É necessário, portanto, que existam regramentos no campo legislativo para resguardar, de forma categórica, o patrimônio formado pelos influenciadores e celebridades antes de completarem a maioridade. Neste sentido, convém salientar que a França, em 2020, se tornou o primeiro país a regulamentar a exploração comercial dos influencers mirins (Lei n.2020-1266),7 exigindo que os responsáveis solicitem uma licença junto à entidade governamental responsável para a divulgação de vídeos e conteúdos criados pelos menores nas plataformas digitais. A legislação, inclusive, equiparou os influenciadores às outras celebridades mirins (como atores, atrizes e apresentadores), representando outro avanço na temática.

Ainda, os responsáveis deverão assumir responsabilidade patrimonial pela atividade dos jovens, sendo que a receita auferida através das atividades online deverá ser depositada em uma “espécie de poupança federal (Caisse des Dépôts et consignations), ficando sob vigilância do Estado até que a criança atinja a maioridade ou ainda seja emancipada pelos pais”.8

A medida se assemelha à proteção norte-americana conhecida como “Coogan Account“, uma salvaguarda estabelecida por lei no estado da Califórnia,9 que exige a criação de uma conta fiduciária para artistas infantis envolvidos em atividades profissionais. Nesse arranjo, 15% dos rendimentos brutos da criança são destinados a essa conta até que ela atinja a maioridade.10

É importante salientar, entretanto, que a atuação dos influenciadores mirins guarda notáveis semelhanças com o trabalho artístico infantil e, nesse sentido, envolveria diversos requisitos para permitir que a criança ou adolescente participe de suas atividades nas plataformas digitais. Especificamente, seria necessário obter um alvará específico emitido por um Juiz da Vara da Infância e da Juventude. Isso garantiria que o desenvolvimento educacional da criança não seja prejudicado, que haja tempo adequado para recreação e também para o acompanhamento psicológico necessário.

Em campo brasileiro, e considerando que casos como o de Larissa Manoela parecem despontar na mídia com rotineira frequência, torna-se imperiosa a necessidade da elaboração de uma legislação específica que garanta ampla proteção patrimonial ao menor envolvido em meio artístico e digital, estabelecendo que determinada porcentagem dos lucros auferidos seja destinado a conta bancária específica até que atinja a maioridade.

A medida visaria resguardar o abuso parental, na seara financeira, conferindo um reforço jurídico à regra geral estampada no Código Civil Brasileiro, ante ao vácuo legislativo específico para o regramento do tema.

Neste sentido, o ordenamento jurídico pátrio reconhece a hipervulnerabilidade do público infantojuvenil e estabelece que a proteção dos infantes deve ser preservada em sua máxima amplitude, de modo em que a salvaguarda do patrimônio dos menores considerados “celebridades” alcançaria o pluralismo constitucional estabelecido pelo artigo 227.11 O princípio do melhor interesse da criança, assim, se perfaz como a palavra de ordem na temática, devendo ser obedecido rigorosamente.

 

Referências

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1. BBC NEWS BRASIL. Caso Larissa Manoela: ‘Pais são administradores, não donos do dinheiro’. Disponível em: site. Acesso em: 17 ago. 2023.

2. Grande parte dos bens integralizados na referida holding é proveniente dos trabalhos que a atriz realizou na menoridade.

3. TJ-MG – AI: 10079200087645001 Contagem, Relator: Paula Cunha e Silva, Data de Julgamento: 03/08/2021, Câmaras Criminais / 6ª CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 04/08/2021

4. BRASIL. Código Civil – Lei 10.406. 2002. Disponível em: site. Acesso em: 15 ago. 2023.

5. Para maiores aprofundamentos, recomenda-se a leitura de: TRANJAN, Eliette. Usufruto e administração dos bens de filhos menores. Migalhas. Disponível em: site. Acesso em: 15 ago. 2023.

6. Neste sentido, recomenda-se a leitura de: BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; SILVA, Michael César. Influenciadores Digitais Mirins E (Over)Sharenting: Uma Abordagem Acerca Da Superexposição De  Crianças E Adolescentes Nas Redes Sociais. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; DENSA, Roberta (Coords.). Infância, Adolescência e Tecnologia: o estatuto da criança e do adolescente na sociedade da informação. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022.

7. FRANCE, Assemblée Nationale. Lei N° 2020-1266. 2020. Disponível em: site. Acesso em: 17 ago. 2023.

8. DENSA, Roberta; DANTAS, Cecília. Regulamentação sobre o trabalho dos youtubers mirins na França e no Brasil. Migalhas. 2020. Disponível em: site. Acesso em: 15 ago. 2023.

9. Os estados de Nova York, Illinois, Kansas, Louisiana, Nevada, Novo Mexico, North Carolina, Pennsylvania e Tennessee também promulgaram leis semelhantes à do estado da Califórnia.

10. No entanto, é relevante destacar que a lei abrange atualmente somente os artistas “convencionais” (como atores, cantores e atletas), não incluindo os influenciadores mirins.

11. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: site. Acesso em: 18 ago. 2023.

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