,

Ceticismo e Processo

direito, balança da justiça, sopesamento de direitos

A figura do cético, hoje equivocadamente associada a uma pessoa que é descrente, que dúvida de coisas que beiram o misticismo, a religião e o sobrenatural, nos tempos da antiguidade grega tinha seu prestígio filosófico, sobretudo quando a pensamos vinculada a escola pirrônica. Pirro, na antiguidade, foi o pioneiro em se tratando de ceticismo enquanto suspensão do juízo e como meio de se alcançar a ataraxia, ou mais propriamente a tranquilidade da alma.

Sua forma de pensar e pôr em dúvida os sentidos, deu-se em uma viagem à parte da índia, onde teve contato com os chamados gminosofistas, homens que suportavam deitar em camas de prego, e andar em cima de caminhos de brasa quente. A capacidade de suportar a dor, bem como de superar outras sensações pelas quais o corpo humano está fadado, levou Pirro a conceber a sua filosofia, a qual punha sob questão, ou melhor, sob dúvida, não só a veracidade das sensações humanas, mas se a cognição humana poderia alcançar a verdade.

Com base nessa perspectiva de crítica da assimilação do mundo pelo sensível, Pirro, propôs uma nova forma de compreender a vida, e de agir em relação ao que até então era assumido como o real. Ao colocar em suspenso as coisas, as sensações, o juízo, promoveu um exercício intelectivo genuíno de humildade que muito se assemelhava ao que Sócrates afirmou dias antes da consumação de sua sentença, “só sei, que nada sei”.

O ceticismo então surge não só como método que lança dúvida sobre o que aparece ao sensível, mas enquanto filosofia de vida que abre as portas para um conhecer interminável, um pensar disposto a novidade, a alteridade.

Do pirronismo, outras escolas vieram, tendo destaque os acadêmicos, e os antagonistas dos céticos, os dogmáticos, os quais por sua vez concebiam, ou admitiam o assentimento para o que é o justo e o que é injusto, acerca do que é verdadeiro e do que é falso. Além dessas escolas, as quais promoveram a continuidade da discussão filosófica cética, filósofos céticos de grande vulto ainda na antiguidade foram Arcesilau, Carnéades, Enesidemo, Cícero, Filo, e especialmente Sexto Empírico.  Esses foram de suma importância para o desenvolvimento do ceticismo sob outras perspectivas, e para a elaboração de maneiras mais sofisticadas do pensamento pirrônico.

Dentre as nuances do pirronismo advindas dessa continuidade do pensamento cético sobre os sentidos e a própria realidade, sob fortes críticas à suspensão do juízo, em especial pelos dogmáticos, esse método de obtenção da ataraxia pelo sábio cético, passou a ser entendido como um entrave a ação. Uma vez admitida a equipolência, isto é, a igualdade de força entre crenças antagônicas, a suspensão do juízo, para os dogmáticos, resultava em inação ante as coisas do mundo que se apresentam ao cético pirrônico. Posto isso, inferiam os dogmáticos, que vez ou outra o cético teria de tomar postura valorativa sobre seus sentidos, assentindo ou não a eles.

Essa discussão perdura até os dias atuais, mas há filósofos contemporâneos que conseguem encontrar uma saída para o argumento dogmático de banalização da suspensão do juízo, como é o caso de Roberto Bolzani Filho (2014). Bolzani, atento aos textos de Sexto Empírico chama a atenção para a compreensão do fenômeno em uma perspectiva cética. O fenômeno, à grosso modo, seria, aquilo que aparece ao cético e lhe causa de imediato uma reação não voluntária. Isso por si só, já lhe impele a realizar alguma ação, não sendo o fenômeno à primeira vista objeto de intelecção, de digressão intelectual passível de ser lançado à dúvida.

Contudo, ainda na antiguidade, mais especificamente no séc. III A.E.C (antes da era comum), o ceticismo acadêmico, originado na academia pós Platão, apresenta alternativas, sobretudo a partir de Carnéades, para que o sábio cético tivesse um critério de ação. Carnéades, assentado na ideia de verossimilhança, isto é, da possibilidade de verdade e de discriminação entre percepções, propõe não um critério de verdade, mas do que de possibilidade, de plausibilidade. Com isso não é mais o objeto que é colocado em dúvida, mas sim a assimilação que o sujeito faz desse. Carnéades, propõe que à depender do estado em que se encontra o sujeito, certas percepções são mais plausíveis do que outras. Fundamenta seu raciocínio mediante o critério da não contradição e da clara ou viva aparência.

Atento a isso, é possível fazer uma interlocução com processo judicial. Tal método cético, se assimilado não só pelas partes, mas também pelo juízo, pode trazer decisões mais profícuas, e mais alinhadas com o contraditório, a amplas defesas, a isonomia, e o devido processo legal. Aplicar o ceticismo mediante esse molde acima apresentado é trazer ao processo, certo grau de cientificidade e de privilegio a instrução probatória, questão que deve ser considerada primordial a defesa de direitos e satisfação destes. Mais do que palavras e jargões jurídicos rebuscados, o Advogado deve dirigir seu trabalho à uma produção probatória robusta, com vistas a lançar luz às circunstâncias que deram origem ou que ofenderam o direito posto em discussão.

Há que se ter em conta que o trabalho do Advogado é o de edificar uma tese jurídica, de pedido ou de defesa, que se estabeleça pelo maior grau de plausibilidade, de concatenação lógica de ações e reações. De outro lado, o juízo, deve-se ater ao que foi construído ao longo de todo o processo, não cabendo a ele introjetar de forma solipsista o que lhe chega, mas se valer do critério de não contradição, ou seja, de uma leitura não controversa. Extrai-se disso o que preconiza o texto do art. 369 do Código de Processo Civil, e ao mesmo tempo impõe-se obstáculos ao que versa o art. 370 do mesmo diploma, vez que equivocadamente dá autonomia ao juízo, para de ofício determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.

O ceticismo, enquanto instrumento do processo, demarca o papel do Advogado e do juízo, bem como traz uma nova ótica sobre o seu desenrolar, não sendo uma questão puramente de versões antagônicas, mas de testificação da tese mais adequada.

Nesse sentido, autores como o professor Rosemiro Pereira Leal, e especialmente Vinicius Lott Thibau, no que concerne a prova, fazem uma discussão mais elaborada e mais contundente demonstrando com olhar científico como processo deve ser conduzido no contexto do Direito Democrático.

Utilizando-se de Karl Popper, filósofo e matemático do séc. XX, referidos autores, sustentam, em certa medida, a noção de plausibilidade, mas sob a ideia do critério da correspondência. Tal critério, que por sua vez traz consigo outra importante noção popperiana, que é a da falseabilidade, oferece ao processo justamente a confrontação entre teses que se valem não só de arcabouço jurídico, mas probatório, sendo pontos vitais para a configuração do quadro que melhor atende a situação de fato e de direito que foi colocado em debate.

Sob pena de delongar demais a digressão aqui apresentada, percebe-se que o ceticismo, além de ser uma escola profícua para a filosofia, movimenta o Direito para rumos mais científicos, conferindo maior objetividade ao processo ao se apegar não a narrativas morais, que tendem a se justificar pelo interesse comum ou por crenças dogmáticas, mas que tem por critério o incontrovertido, respaldado pela argumentação impressa nas provas.

 

Referências

____________________

BOLZANI FILHO, Roberto. Pirronismo e Moral. SKÉPSIS, ANO VII, Nº 10, 2014.

COSTA, Rogério Soares. Panorama Histórico-Conceitual do Ceticismo Antigo. Link: https://bit.ly/3Vy3w4B. Acesso em: 01.01.2023.

THIBAU, Vinícius Lott. Presunção e Prova no Direito Processual Democrático. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio