O parecer de Orientação da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) nº 40, de 11 de outubro de 2022 trata especificamente sobre os criptoativos[^] e o Mercado de Valores Mobiliários, figurando como um marco para o cenário de regulamentação nacional ao que se refere a criptoativos, haja vista a escassez legislativa sobre o tema.
Neste sentido, a CVM, de forma pioneira assumiu a responsabilidade de consolidar normas aplicáveis aos criptoativos que forem valores mobiliários, haja vista o art. 2º da Lei 6.385/76 (que regulamenta os valores mobiliários).
Isto posto, para que seja possível obter uma perspectiva holística sobre as mudanças introduzidas pelo advento do parecer de orientação da CVM, no corpo do presente texto será realizado uma análise dos principais tópicos e de seus possíveis reflexos no mercado de valores mobiliários.
De forma introdutória, pareceres de orientação (tal como o objeto em análise), tratam-se de:
atos expedidos pela CVM para orientar os agentes do mercado e os investidores sobre matéria que cabe à Autarquia regular (nos termos do art. 13 da Lei 6.385/76), além de veicular as manifestações da Comissão a acerca de interpretação das Leis 6.385/76 e 6.404/76 no interesse do mercado de capitais.2
Adentrando ao conteúdo do parecer, cabe evidenciar que os criptoativos eram unicamente conceituados pela Instrução Normativa da Receita Federal Brasileira nº 1888/19 que, em seu art. 5º, inciso I, dizia que se tratava de:
[…] representação digital de valor denominada em sua própria unidade de conta, cujo preço pode ser expresso em moeda soberana local ou estrangeira, transacionado eletronicamente com a utilização de criptografia e de tecnologias de registros distribuídos, que pode ser utilizado como forma de investimento, instrumento de transferência de valores ou acesso a serviços, e que não constitui moeda de curso legal. 3
Com o advento do parecer de orientação CVM nº 40/2022, foi introduzido uma nova definição de criptoativos, sendo compreendidos como “ativos representados digitalmente, protegidos por criptografia, que podem ser objeto de transações executadas e armazenadas por meio de tecnologias de registro distribuído (Distributed Ledger Technologies – DLTs)”.4
Todavia, conforme já mencionado, nem todos criptoativos são abarcados por tal orientação, ou seja, somente os criptoativos que são valores mobiliários (consoante o art. 2º da Lei 6.385/76) são abarcados pela referida orientação.
Adentrando ao parecer, em especial ao tópico “Novas Tecnologias e Regulamentação”, é ampliado (pelo parecer) a abrangência de aplicabilidade da regulamentação, afirmando que a adoção de novas tecnologias deve ser vista como uma maneira de acrescer horizontes e não limitar a extensão as quais os direitos podem ser exercidos.
Sendo assim, faz-se possível compreender que independentemente da tecnologia utilizada, um criptoativo poderá ser considerado um valor mobiliário e, assim o sendo, a administração de mercado organizado para sua negociação, os serviços de intermediação, escrituração, custódia, depósito centralizado, registro, compensação e liquidação de operações estarão sujeitos às regras aplicáveis aos valores mobiliários e não mais a ausência legislativa comumente inerente aos criptoativos.
Ao que se refere ao tópico do parecer de título “Critério Funcional para Taxonomia de Tokens” a norma, com a finalidade de indicar o tratamento jurídico a ser aplicado, utiliza uma abordagem funcional para classificar os tokens, sendo estes subdivididos em:
(i) Token de pagamento: busca replicar as funções de moeda, notadamente de unidade de conta, meio de troca e reserva de valor.
(ii) Token de utilidade: utilizado para adquirir ou acessar determinados produtos ou serviços.
(iii) Token referenciado a ativo: Representa um ou mais ativos, tangíveis e intangíveis. São exemplos os security tokens, as stable coins, os non-fungible tokens (NFTs) e os demais ativos objeto de operações de tokenização.
Vale ressaltar que as classificações supramencionadas admitem que um criptoativos seja caracterizado em uma ou mais categorias, por exemplo, um criptoativos que é ao mesmo tempo um token de utilidade e um token de pagamento.
A respeito do tópico “Caracterização das Criptomoedas como Valores Mobiliários”, cabe ressaltar que os valores mobiliários estão contidos nos incisos do art. 2º da Lei nº 6.385/76, tendo como objetivo de delimitar o regime mobiliário e a competência da CVM.
Assim sendo, quando um criptoativo enquadrar-se como um valor mobiliário, os seus emissores e os demais agentes envolvidos estarão obrigados a cumprir as regras estabelecidas para todo o mercado de valores mobiliários e estarão também sujeitos a regulação da autarquia.
Vale ressaltar que, ainda que os criptoativos não estejam incluídos entre os valores mobiliários contidos na lei 6.385/76, os agentes do mercado deverão analisar as características de cada criptoativo com o objetivo de determinar o seu enquadramento como sendo ou não um valor mobiliário. Essa avaliação determina se um criptoativo considerar-se-a um valor mobiliário quando:
(i) é a representação digital de algum dos valores mobiliários previstos taxativamente nos incisos I a VIII do art. 2º da Lei 6.385/76 e/ou previstos na lei 14.430/2022(i.e., certificados de recebíveis em geral; ou
(ii) enquadra-se no conceito aberto de valor mobiliário do inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/76, na medida em que seja contrato de investimento coletivo.
Destaca-se, independentemente do ativo subjacente ser ou não um criptoativo e/ou um valor mobiliário, os contratos de investimento coletivo, assim como os derivativos serão considerados valores mobiliários e, portanto, seus emissores e demais agentes envolvidos estarão obrigados a cumprir as regras comuns ao mercado de valores mobiliários determinadas pela CVM.
O tópico do “Regime Infracional e Valorização da Transparência” prestigia a observância do regime de divulgação de informações em relação aos criptoativos. Assim sendo, para atingir essa finalidade, determina-se que a transparência deve ser um compromisso dos emissores, como também de todos os integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários em suas respectivas atividades.
Portanto, é aplicável a regulamentação da CVM quando da realização das ofertas públicas de criptoativos enquadrados como valores mobiliários às normas que dispõem:
(i) sobre o registro e prestação de informações periódicas e eventuais dos emissores de valores mobiliários admitidos à negociação em mercados regulamentados de valores mobiliários – Resolução CVM nº80/22; e
(ii) sobre as ofertas públicas de distribuição primária e secundária de valores mobiliários e a negociação dos valores mobiliários ofertados nos mercados regulamentados.
Destaca-se também as regulamentações específicas que tratam de regimes especiais em função das características dos emissores e da oferta, tais como a resolução CVM nº 88/22 e Resolução CVM nº 86/22.
Outrossim, cumpre salientar que a admissão à negociação secundária de qualquer valor mobiliário – incluindo os que são representados em forma de criptoativos, devem ocorrer em mercados que sejam organizados e autorizados pela CVM, nos termos da resolução CVM nº 135/22.
Assim sendo, será aplicável o arcabouço vigente já instituído pela CVM às ofertas públicas de criptoativos considerados como valores mobiliários seguindo as mesmas orientações e respeitando as especificidades de cada caso.
Em sequência, de maneira exemplificativa, não substituindo a legislação vigente, o parecer de orientação traz dois subtópicos com diversas informações que deverão ser apresentadas por esses criptoativos caracterizados como valores mobiliários. Estes sub tópicos são: informações sobre os direitos dos titulares dos Tokens e informações sobre a negociação, infraestrutura e propriedade dos Tokens.
O tópico “Papel dos Intermediários” de forma assertiva regula a atuação dos intermediários de criptoativos, ora conhecidos como “exchanges”. Dessa forma, as instituições que negociam criptoativos que sejam valores mobiliários deverão observar a regulamentação vigente da CVM.
De modo consequente, os intermediários não poderão se isentar de garantir, na oferta de tais criptoativos, um adequado nível de transparência e informações dos seus produtos comercializados em sua plataforma. Tal regra vale tanto para os criptoativos oferecidos de forma direta, quanto para os oferecidos de maneira indireta.
Ademais, deverá ser promovido due diligence por esses intermediários para averiguar os parceiros comerciais com o objetivo de mitigar eventuais riscos.
Adentrando ao tópico da orientação a respeito dos “Fundos de Investimento”, o parecer não inova o entendimento da CVM a respeito dessa matéria, visto que, já foi manifestado nos ofícios circulares nº 1/2018/CVM/SIN, de 12/01/2018 e 11/2018/CVM/SIN, de 19/09/2018.
Deste modo, reforça-se a ideia de que se espera que, de maneira razoável e proporcional, sejam adotados novos critérios de diligências para um nível superior de transparência. Logo, os administradores do fundo deverão avaliar o adequado nível de divulgação de potenciais riscos ligados a esses ativos, em especial aos que dizem respeito a ativos baseados em tecnologias inovadoras, como os NFTs.
Por fim, o último tópico “Sandbox Regulatório” informa a respeito de uma iniciativa de acolhimento de novas tecnologias e modelos de negócios inovadores. Tal iniciativa é regulamentada pela resolução CVM nº 29/21 e vem recebendo projetos/propostas de tokenização, possibilitando um diálogo da autarquia com tais novas tecnologias. Portanto, essa é uma ferramenta útil para que a CVM avalie a necessidade de revisão e atualização de suas medidas regulatórias de acordo com as experiências práticas dos projetos aprovados.
Em síntese, ao longo da investigação o presente comentário vislumbra os limites de atuação da autarquia e a forma como a CVM pode e deve exercer seus poderes para normatizar, fiscalizar e disciplinar a atuação dos integrantes do mercado de capitais no que se refere aos criptoativos.
Ademais, cumpre salientar que serão adotados ao mercado de criptoativos que se enquadrem como valores mobiliários, as medidas legais cabíveis a prevenção e punição de eventuais violações às regulamentações. Deste modo, será aplicável a emissão de alertas de suspensão (Stop orders), a instauração de processos administrativos sancionadores, assim como a comunicação ao Ministério Público Federal ou Estadual e a Polícia Federal, acerca da existência de eventuais crimes de ação penal pública, nos termos da legislação aplicável.
Por fim, o presente parecer da CVM (objeto de análise), embora não esgote os debates em relação ao tema (uma vez que a natureza da tecnologia está em permanente evolução), apresenta um importante e grandioso marco para a consolidação de entendimentos a respeito dos criptoativos e promove uma maior segurança aos cidadãos brasileiros e ao mercado nacional.
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Pedro Alberto Alves Maciel Filho
*Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Técnico em Informática pelo Instituto Federal do Paraná. Membro do Programa de Formação Complementar em Direito e Tecnologia Nº822/2020 da Universidade Estadual de Londrina. ilhe.edwards@gmail.com
Referências
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1. O conceito de criptoativos foi trazido pelo art. 5º, inc. I, da instrução normativa da RFB nº 1888, de 03 de maio de 2019, tratando-se de um conceito mais amplo que o de criptomoedas e tokens digitais. Isto é, criptoativos trata-se de gênero, no qual as criptomoedas e os tokens digitais estão contemplados.
2. CVM. Pareceres de Orientação. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3UrTAJz. Acesso em: 2 de nov. de 2022.
3. RECEITA FEDERAL. Instrução normativa RFB nº 1888, de 03 de maio de 2019. Disponível em: https://bit.ly/2YCFSub. Acesso em: 2 de nov. de 2022. n.p.
4. CVM. Parecer de orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022. Disponível em: https://bit.ly/3UrbYlN. Acesso em: 2 de nov. de 2022. n.p.