Um dos principais fatores para a evolução da sociedade foi a criação do crédito, como muito bem nos elucida o escritor Yuval Noag Harari em sua obra “Sapiens, uma breve história da humanidade”. A efetividade do crédito só foi possível porque a humanidade acreditou no futuro.1 Logo, eu só empresto meu capital para outrem com a confiança de que seu investimento será promissor e irá angariar lucros para adimplir o montante acrescido de eventuais encargos.
Com a confiança no futuro, o sistema financeiro moderno desenvolveu um mecanismo complexo de funcionamento do crédito. Inúmeras formas de firmar contratos de financiamento e empréstimo, com as mais diversas taxas de juros e formas de garantia. As instituições financeiras vislumbraram uma possibilidade de potencializar seus lucros e investiram no crédito.
O Estado percebendo a evolução econômica e as implicações que tais procedimentos resultaram na vida das pessoas, criou legislações para regulamentar as operações de crédito. Assim, o direito foi um instrumento necessário para garantir a paridade de armas entre os sujeitos que firmavam contratos de crédito. Criando normas que determinavam as possíveis formas de cobrança e seus limites, evitando cobranças demasiadamente onerosas a fim de impossibilitar o enriquecimento ilícito.
Em 1997 foi promulgada a lei nº 9.514, a qual elucidava o modo dos procedimentos e os limites no tocante ao sistema de financiamento imobiliário bem como instituiu a alienação fiduciária. A alienação fiduciária “é definida como o negócio jurídico mediante o qual o devedor (fiduciante), transmite a propriedade imobiliária ao fiduciário (credor), em garantia da dívida assumida pela aquisição de imóvel2”.
No ano de 2017, foi promulgada a lei nº 13.465, a qual instituiu alterações significativas no sistema financeiro, principalmente o imobiliário. Ocasionando a alteração de diversos artigos da lei nº 9.514.
A luz da legislação vigente (lei nº 13.645 de 2017) vamos analisar o procedimento de consolidação da propriedade nos contratos de compra e venda com cláusula de alienação fiduciária.
Para entendermos o funcionamento da alienação fiduciária precisamos compreender quais são as partes envolvidas. Comumente é uma relação triangular, constituída pelo (i.) vendedor; (ii.) devedor (fiduciante); e (iii.) credor (fiduciário). O comprador (fiduciante) adquire um imóvel do vendedor, o qual transmite a propriedade ao credor (fiduciário) que irá transferir ao vendedor os valores pecuniários no tocante ao preço do imóvel.
Para a perfectibilização da relação contratual, as partes envolvidas assinam o contrato de compra e venda com cláusula de alienação fiduciária, posteriormente o contrato é levado ao registro de imóveis para que ocorra a lavratura do respectivo contrato na matrícula do imóvel. Frisa-se que o contrato deve conter de forma clara: (i.) o valor principal da dívida; (ii.) o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito; (iii.) a taxa de juros e os encargos incidentes; (iv.) cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel, indicação do título e o modo de aquisição; (v.) cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização do imóvel; (vi) a indicação, para efeito da venda em leilão público do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão; e (vii.) a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27 da mesma lei (art. 24, da lei nº 9.514/97).
Em caso de inadimplemento contratual por culpa do comprador, o fiduciante pode iniciar o procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade.
Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.
O devedor deverá ser intimado pessoalmente para purgar a mora no prazo de 15 dias. O débito será integrado pelas (a.) parcelas vencidas e (b.) vincendas até a data do pagamento; (c.) os juros convencionados no contrato; (d.) penalidade e encargos previstos contratualmente; (e.) contribuições condominiais; (f.) eventuais despesas provenientes do imóvel; e (g.) as despesas da intimação. A intimação deve ser exercida pelo Oficial do Registro de Imóveis, ou por oficial de Registro de Título e Documentos da comarca onde está localizado o imóvel ou do domicílio de quem deva recebê-la ou, ainda, pelos correios, sendo necessário o aviso de recebimento para ter validade.
Após duas tentativas de intimação do devedor, havendo motivada suspeita de ocultação, o responsável pela realização da intimação deverá intimar um familiar, em sua falta, poderá intimar algum vizinho, de que no dia útil subsequente irá retornar num horário pré-fixado, para realizar a intimação por hora certa. Aplica-se subsidiariamente o Código de Processo Civil no tocante ao procedimento da intimação por hora certa. Outrossim, residindo o devedor em condomínio edilício, a intimação deve ser feita pelo funcionário responsável pelo recebimento da correspondência.
Não encontrado o devedor e tentado realizar todas as formas de intimação previstas no art. 26, poderá o Oficial do Registro de imóveis começar o procedimento para a realização de intimação por edital, medida excepcional, via de regra. Após notificar no procedimento de consolidação da propriedade os dias, horários e os modos que foram realizadas as tentativas de intimação, conforme dispõe a lei, o edital de intimação deverá ser publicado por três dias, em jornais de grande circulação local ou em comarca de fácil acesso. O prazo para a purgação da mora, em caso de intimação por edital, será contado a partir da última publicação do edital.
Se o devedor purgar a mora, o contrato de alienação fiduciária continuará em vigor. Ao passo que se a dívida não for paga no prazo de 15 dias, o Oficial do Registro de Imóveis irá consolidar a propriedade do imóvel em nome do credor fiduciário, na matrícula do imóvel. O fiduciário precisa comprovar o pagamento do imposto de transmissão para a realização da consolidação.
Nos casos de financiamento habitacional o prazo para purgação da mora é de 45 dias. Sendo que o débito poderá ser pago até a data de averbação da consolidação da propriedade.
Consolidada propriedade o imóvel poderá ser objeto de leilão. Assim, o devedor deverá ser intimado sobre as datas, horários e locais onde ocorrerão os leilões. Geralmente a intimação ocorre no mesmo endereço que o devedor foi intimado para purgar a mora, contudo poderá ocorrer no endereço existente no contrato de financiamento, bem como poderá ser realizada por meio eletrônico.
Conforme demonstrado, a lei nº 9.514/97, em seu artigo 26, elucida de forma clara como se dará o procedimento de consolidação da propriedade e as formas que devem ser utilizadas para intimar o devedor para realizar o pagamento da mora.
Ao analisarmos o entendimento dos tribunais no tocante a situação fática de tais procedimentos encontramos um problema preocupante: a grande divergência de entendimentos entre o Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul e o Tribunal Regional Federal da 4º região.
O objeto do debate consiste na forma como estão sendo realizadas as notificações dos devedores para purgar a mora. Na prática, verifica-se que a notificação não está seguindo a forma prevista em lei, não contendo informações primordiais no tocante aos dias, horários e as formas das tentativas de intimação.
A demanda chegou à tutela do judiciário brasileiro, e dentro da prestação jurisdicional verificamos entendimentos diversos do que diz a legislação.
O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento que nos casos em que for comprovada a irregularidade na notificação do devedor para purgar a mora é possível a anulação do procedimento de consolidação da propriedade3. Caso tenha ocorrido o leilão do imóvel, este também será considerado nulo. A Desembargadora Relatora Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti, deixa de forma clara em seu voto a importância de os procedimentos extrajudiciais respeitarem o Código de Processo Civil.
Sustenta que: O Código de Processo Civil (seja-nos relevado o truísmo, a redundância), como regra geral, aplica-se a todos os processos cíveis, com as exceções das leis especiais, de que é, todavia, supletivo. Não há como excluir da proteção das normas processuais as execuções extrajudiciais. Forçoso é concluir que a garantia legal conferida à arrematação se aplica aos procedimentos extrajudiciais. A lei não distingue. Não pode fazê-lo o intérprete. Houve, assim, violação do art. 903, caput e § 4° do Código de Processo Civil
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul está em conformidade com o entendimento do STJ4. Na apelação cível de nº 50105254720218210005, proferida pela décima nona câmara cível, de relatoria do Desembargador Antônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard, verifica-se que não foi seguida a forma e a ordem prevista no art. 26 da Lei 9.514/97. Sendo assim, entendeu a câmara que a falta de intimação pessoal do devedor conforme prevê a legislação ocasiona a anulação do procedimento de consolidação da propriedade.
Verifica-se, portanto, que o TJRS e o STJ estão em conformidade com a possibilidade da anulação do procedimento de consolidação da propriedade nos casos que é ferida a legislação vigente, pois não pode um procedimento extrajudicial, com um resultado tão gravoso, não respeitar o ordenamento jurídico.
Contudo, entendimento divergente possui o Tribunal Regional Federal da 4º região. Ao analisarmos os agravos de instrumento de (i.) nº 5018985-74.2023.4.04.0000 proferido pela quarta turma, de relatoria do magistrado Luiz Alberto D’Azevedo Aurvalle, e (ii.) nº 5018301-52.2023.4.04.0000, proferido pela terceira turma, de relatoria do magistrado Roger Raupp Rios, em suas razões proferiu-se que os compradores assinaram o contrato de alienação fiduciária conscientes que em caso de inadimplência ocorreria a consolidação da propriedade. Ainda, o Oficial do Registro goza de fé pública, sendo de responsabilidade dos devedores comprovarem que não foram intimados para purgar a mora.
Percebe-se portanto que o TRF4 aplica de forma equivocada os preceitos da lei, quando não leva em consideração a falta de informações nas certidões de tentativa de intimação existentes nos procedimentos de consolidação da propriedade. Pois, comumente verifica-se que nos procedimentos de consolidação da propriedade faltam informações para que as partes possam exercer o contraditório e a ampla defesa. Não sendo informado de forma clara os dias, os horários e as formas que ocorreram as tentativas, bem como não é respeitada a ordem do art. 26, o qual explica de forma clara as formas que devem ocorrer a intimação em determinados casos. Assim, basta que o Oficial do Registro informe que por duas vezes compareceu no endereço e não encontrou o devedor, e realize o intimação por edital.
Podemos refletir que se as tentativas ocorrerem em dias diversos da semana, mas sempre no mesmo horário, poderá o devedor estar trabalhando. Logo, ele sofrerá um processo expropriatório de sua propriedade porque estava trabalhando e não estava em casa para receber uma notificação que ele não tinha conhecimento. Para que tais questionamentos sejam elucidados é necessário que o procedimento contenha todas as informações necessárias para possibilitar a ampla defesa e o contraditório.
O Código de Processo Civil, nos termos do art. 256, elucida que a citação por edital é medida excepcional, devendo ser aplicada somente após demais tentativas de encontrar o Réu. Logo, é de responsabilidade da parte autora realizar todas as pesquisas possíveis na busca do endereço do Réu. A citação por edital deve ser realizada somente depois de esgotadas todas as outras possibilidades.
Causa estranheza que um procedimento extrajudicial, no qual as partes não são representadas por advogado, goze do “privilégio” de não ser necessário seguir os parâmetros legais. A notificação por edital, que deve ser medida excepcional, uma exceção, que infelizmente virou a regra, gerando resultados demasiadamente gravosos e muitas vezes irreversíveis para a vida dos indivíduos.
Em resultado, as pessoas estão perdendo suas casas para as instituições financeiras, não sendo tutelado o direito à moradia, previsto no art. 5 da Constituição Federal, nem sendo considerado o direito à função social da propriedade. Frisa-se que o todo o ordenamento jurídico deve ser regido com base na CF, não sendo possível que normas e entendimentos contrariem suas determinações.
O resultado prático de tais questões é o fato que as pessoas estão perdendo seu direito de moradia. Tendo a casa de suas famílias expropriadas pelas instituições financeiras, notório o desequilíbrio na relação contratual. O debate jurídico deve ser sempre enaltecido e respeitado, pois é necessário que todas as partes sejam ouvidas e possuam a liberdade de expor sua realidade fática, pois só assim o direito poderá de fato exercer seu papel de trazer justiça para a vida das pessoas.
Referências
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1. HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, p 328-332.
2. JUNIOR, Luiz Antonio S. Direito Imobiliário: Teoria e Prática . Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559646050. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559646050/. Acesso em: 11 jun. 2023, p. 573.
3. Vide: AgInt nos EDcl no AREsp n. 1.998.722/TO, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 13/3/2023, DJe de 16/3/2023.
4. Vide: Apelação Cível, Nº 70085142222, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo João Lima Costa, Julgado em: 23-09-2021; e Apelação Cível, Nº 50002431320208210060, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Antonio Angelo, Julgado em: 02-09-2021