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Crianças, adolescentes e proteção de dados: há uma real prioridade absoluta?

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Em decisão a Autoridade de Proteção de Dados da Irlanda multou o Instagram (Meta) pelo uso indevido das bases legais no tratamento de dados de crianças e adolescentes. Sendo considerada a segunda maior multa já aplicada1 desde a entrada da GDPR até o momento, o valor de €405 milhões, resulta de uma investigação de dois anos sobre as políticas da plataforma.

Segundo consta, a empresa tornava público o número de telefone e endereço eletrônico das contas comerciais de crianças, bem como tinha como medida padrão (by default) deixar no modo público as contas pessoais de outras crianças. No primeiro caso se utilizavam tanto da base legal do legítimo interesse como da execução do contrato (performance of contract) previstas na GDPR. Concluiu-se que a violação era muito séria, desencadeando na aplicação da multa. O Comitê Europeu de Proteção de Dados (European Data Protection Board) recomendou ainda à autoridade irlandesa a imposição de mais uma multa, no valor de €20 milhões2 a empresa por não ter demonstrado a licitude de seu tratamento, destacando a grande quantidade de vítimas e sua condição de vulnerabilidade.

Trazendo ao contexto brasileiro, onde encontramos normas referentes à proteção de dados de crianças e adolescentes, fica o questionamento: como ficaria a proteção desses indivíduos? Seria destacada sua vulnerabilidade?

Em tempos de uso massivo de dados pelas empresas é necessário remeter não só a LGPD para a proteção dessa faixa etária,3 mas também a todo um arcabouço normativo, principiológico e histórico, resultado do amadurecimento constante desse ramo do direito.

A proteção desses indivíduos nem sempre foi para propiciar um ambiente de aprendizado e que ao mesmo tempo resguardasse sua condição física e emocional. A categoria “infância” só começou a ser pensada no final do século XVII. A situação foi agravada com a separação de sistema jurídicos distintos4 para diferentes sujeitos: um conjunto repressivo de regras destinado às crianças delinquentes/desvalidas5 – o menor – e outro sistema de normas civis direcionados às “boas crianças”.

É a partir do século XX, decorrente das transformações sociais, que o contexto normativo internacional entende crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e fins em si mesmas, necessitando de atenção e proteção de todos os agentes. No Brasil essa nova interpretação nasce efetivamente com a Constituição6 de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, fincando as bases interpretativas e o eixo central desse ramo: o melhor interesse e a proteção integral.

A partir dessas interpretações essas faixas etárias passam a ser protegidas e promovidas pela família, Estado e sociedade, constituindo um de seus deveres sociais, ao mesmo tempo que crianças e adolescentes passam a receber prioridade absoluta em serviços públicos, na elaboração de políticas e primazia em receber atendimento e socorro.7

Quando observada Lei Geral de Proteção de Dados no campo8 destinado a essas pessoas, a literatura jurídica destaca que apesar dos avanços o legislador deixou muitos pontos a desejar,9 como a aplicação das bases legais, a autoridade parental e sua relação com o consentimento, bem como as lacunas quanto a diferenciação de tratamento para adolescentes. Vamos, contudo, nos remeter apenas ao melhor interesse e à prioridade absoluta.

Esses dois valores são importantes pois ao mesmo tempo que se tornam direitos fundamentais da criança e do adolescente, também funcionam como critério interpretativo e regra de procedimento, inserindo-se na tomada de decisão de agentes de tratamento, levando-os a avaliar seu impacto para essa faixa etária.10

Contudo, a partir do exemplo inicialmente apresentado no texto, devemos questionar: em um modelo de exploração econômica onde nossas experiências são matéria prima11 para as empresas, onde não somos os que realmente se beneficiam nesse sistema, há efetiva proteção de crianças e adolescentes? São elas prioridade absoluta quando da elaboração das atividades empresariais? Infelizmente a resposta segue negativa.12 Apesar do permanente destaque dado aos responsáveis, detentores da autoridade parental, bem como do papel interventor do Estado, é papel de todos a proteção dessa faixa etária, tanto em nível individual quanto coletivo.

Esse modelo voltado a proteção integral perpassa não só o modo de extração, mas também toda a funcionalidade13 e operacionalidade dos sistemas. No caso do Instagram a autoridade irlandesa destacou, quando da aplicação da sanção, que mesmo não tendo agido intencionalmente ao tornar os perfis públicos, tendo informado a possibilidade de tornar a conta privada, ela ficou aquém do padrão exigido,14 consubstanciando comportamento negligente (negligent), justamente por estarmos falando de crianças e adolescentes em larga escala.

Para as futuras discussões será necessário demandar de todos os partícipes um nível satisfatório de proteção dos dados de crianças e dos adolescentes, a fim de garantir, efetivamente, seu melhor interesse.

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André Felipe Krepke

 

Referências

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1. Record fine for Instagram following EDPB intervention. European Data Protection Board. 15 set. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3RdzPDH. Acesso em: 18 set. 2022.

2. Data Protection Commission announces decision in Instagram Inquiry. Data Protection Comission. 15 set. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3SfDEJL. Acesso em: 24 set. 2022.

3. Segundo o art.2º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) considera-se “criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”.

4. Para uma análise mais detida sobre o histórico desse campo confira-se MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. Barueri: Manole. 2003.

5. A ideia por trás do conceito era uma identificação entre pobreza e delinquência, levando uma maior segregação de grupos já marginalizados.

6. Conforme art.227, caput da CRFB/88: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

7. Segundo Art.4º do ECA: É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

8. Art. 14 da LGPD.

9. Confira-se: FERNANDES, E.; MEDON, F. Proteção de crianças e adolescentes na LGPD: desafios interpretativos. REVISTA ELETRÔNICA DA PGE-RJ[S. l.], v. 4, n. 2, 2021. DOI: 10.46818/pge.v4i2.232. Disponível em: https://bit.ly/3fmXa8R. Acesso em: 20 set. 2022.

10. FERNANDES, E.; MEDON, F. Proteção de crianças e adolescentes na LGPD: desafios interpretativos. REVISTA ELETRÔNICA DA PGE-RJ[S. l.], v. 4, n. 2, 2021. DOI: 10.46818/pge.v4i2.232. Disponível em: https://bit.ly/3RcR5ZC. Acesso em: 20 set. 2022

11. ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Trad. George Schlesinger. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020.

12. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Ana Cristina de Carvalho. O princípio do melhor interesse no ambiente digital. In: LATERÇA, Priscilla Silva; FERNANDES, Elora; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; BRANCO, Sérgio (Coords.). Privacidade e Proteção de Dados de Crianças e Adolescentes. Rio de Janeiro: Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro; Obliq, 2021. E-book.

13. FERNANDES, Elora. Direitos de criança e adolescentes por design: uma agenda regulatória para a ANPD. In: LATERÇA, Priscilla Silva; FERNANDES, Elora; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; BRANCO, Sérgio (Coords.). Privacidade e Proteção de Dados de Crianças e Adolescentes. Rio de Janeiro: Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro; Obliq, 2021. E-book.

14. “In this case, the IE SA considered that the infringements of Article 12(1) GDPR with regard to the contact information processing and with regard to the public-by-default processing were negligent as they fell ‘short of the standard required’”. Binding Decision 2/2022 on the dispute arisen on the draft decision of the Irish Supervisory Authority regarding Meta Platforms Ireland Limited (Instagram) under Article 65(1)(a) GDPR. European Data Protection Board. 15 set. 2022.  Disponível em: https://bit.ly/3SbWvFy. Acesso em: 24 set. 2022

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