Cuidado com o golpe da retenção do veículo para obrigar o pagamento de serviços mecânicos

Cuidado com o golpe da retenção do veículo para obrigar o pagamento de serviços mecânicos

carro veiculo na oficina

No Brasil algumas oficinais de má-fé, além de iniciarem serviços não solicitados e trocarem peças dos automóveis sem necessidade a fim de lucrar com o desconhecimento técnico dos motoristas, costumam argumentar que o cidadão somente poderá retirar o seu carro após quitarem a astronômica conta apresentada pelo fornecedor.

No entanto, em que pese a pressão psicológica exercida pelo fornecedor, o consumidor deve ter cautela e jamais assinar documentos ou pagar valores para retirar o seu bem, visto que, conforme será melhor explicado abaixo, o ato da oficina é completamente indevido e a depender das circunstâncias poderá configurar crime.

1 Da Aplicação do Código de Defesa do Consumidor e Da Ilegalidade da Retenção do Veículo pela Oficina.

Antes de mais nada deve ser mencionado que a  prestação de serviços por empresa especializada (oficinais ou concessionárias), é classificada como uma relação de consumo, assim, devendo incidir as normas protetivas do CDC.

Ao compulsarmos o CDC, percebemos que o artigo 39, inciso V, veda a exigência de vantagem manifestamente excessiva, o que se evidencia no momento no qual o fornecedor retém um bem de valor expressivamente superior ao débito, colocando o consumidor em posição de submissão e pressão psicológica injustificável.

Também não é permitido que o fornecedor execute qualquer serviço sem autorização expressa do consumidor, bem como se aproveite de sua hipossuficiência técnica, assim tornando ilegal qualquer débito fantasioso utilizado para justificar a retenção do carro.

Ainda que o débito não seja irreal ou maquiado pelo fornecedor indevidamente, não é possível reter um bem para exigir a quitação de contas em aberto, restando configurada a cobrança vexatória do artigo 42 do CDC.

De mais a mais, ainda que se alegasse um suposto acordo tácito ou verbal que permitisse a retenção do veículo até o pagamento do serviço, tal cláusula seria nula de pleno direito, nos termos do artigo 51, inciso IV, do CDC, por representar obrigação excessivamente onerosa e desproporcional ao consumidor.

2 A Jurisprudência tem Concluído pela Ilegalidade da Retenção do Veículo.

O STJ ao analisar o REsp 1.628.385/SP, publicado no Informativo 610, entendeu pela  ilegalidade de retenção do veículo, ainda que o serviço tenha sido prestado, uma vez que a oficina possui apenas a detenção do automóvel, não a posse, jamais podendo invocar o direito de retenção sob a alegação de que realizou benfeitorias.

No STF, temos a Súmula 323, expressamente consignando que “é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”, entendimento que se aplica, por analogia, a outras formas de constrição patrimonial extrajudicial para a quitação de dívidas.

Diversos tribunais estaduais também seguem decidindo que a retenção do veículo para a cobrança da dívida com a oficina é abusiva, gerando danos morais e estando clara a tipicidade do delito de exercício arbitrário das próprias razões, vejamos:

PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS – Oficina mecânica – Veículo levado para realização de orçamento – Conserto efetuado sem anuência da proprietária – Retenção do veículo como forma de obter o pagamento pelo conserto – Ação declaratória de inexistência de débito cumulada com indenização por dano moral – Sentença de procedência – Apelo da ré – Conserto sem comprovada anuência da proprietária – Retenção indevida – Exercício arbitrário das próprias razões – Dano moral caracterizado – Apelação desprovida   (TJSP;  Apelação Cível 1002437-47.2020.8.26.0664; Relator (a): Carlos Henrique Miguel Trevisan; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro de Votuporanga – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 21/01/2021; Data de Registro: 21/01/2021).

 

INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. Retenção de veículo em oficina. Inadmissível abuso. Réu qualificado como empresário individual. Pagamento do serviço convencionado por meio de promissórias. Política alterada posteriormente, de forma unilateral. Inadmissibilidade. Autor que ficou impossibilitado de arcar com as despesas. Carro restituído somente após o ajuizamento de demanda possessória, o que elide a reconvenção. Prejuízo material devidamente comprovado. Dano moral in re ipsa, graduado por concreto desvio produtivo. Teoria do risco proveito. Indenização de R$ 5.000,00 que, por não representar quantum irrisório nem exorbitante, merece prestígio. Correção monetária x juros de mora. Termos iniciais alterados. Matéria de ordem pública. Litigância de má-fé que não verifica na espécie. Sentença mantida. Recurso desprovido, com observação. (TJSP;  Apelação Cível 1027005-29.2021.8.26.0071; Relator (a): Ferreira da Cruz; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bauru – 6ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/06/2023; Data de Registro: 24/06/2023).

APELAÇÃO. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. INTERESSE DE AGIR. DEMONSTRADO. SENTENÇA CASSADA. CAUSA MADURA. ARTIGO 1013, §3º, INCISO II DO CPC. PRIMAZIA DE JULGAMENTO DE MÉRITO. VEICULO DEIXADO EM OFICINA PARA CONSERTO. AUSENCIA DE PAGAMENTO. DIREITO DE RETENÇÃO. ILEGALIDADE. AUTOTUTELA. VEDAÇÃO. AUSENCIA DE PROPRIEDADE. MERA DETENÇÃO. RECURSO PROVIDO.

  1. Apelação interposta contra a sentença que, considerando inadequada a via eleita para pugnar pela restituição do objeto da presente demanda, julgou extinto o processo, sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, VI do Código de Processo Civil, por falta de interesse de agir.

  2. A existência do interesse de agir está condicionada à utilidade e à necessidade do provimento jurisdicional pretendido de acordo com os fatos narrados na inicial. No caso dos autos, não há se falar em perda de interesse de agir por parte do autor, pois se observa o intuito de prosseguir a demanda de reintegração de posse, porquanto lhe é útil e necessária na recuperação do bem.

  3. Nos termos do § 3º do artigo 1.013 do CPC, se a causa estiver em condições de imediato julgamento, poderá o Tribunal decidir o mérito desde logo quando reformar sentença fundada no artigo 485 do CPC. Sentença cassada.

  4. Nos termos do art. 561 do Código de Processo Civil, a procedência do pedido de reintegração de posse está condicionada à comprovação pela parte autora da sua posse anterior, do esbulho praticado pelo réu, e a data da ocorrência desse esbulho

  5. É vedado à oficina o direito de retenção do veículo, sob a alegação da realização de reparos e ausência de pagamento, porquanto, nos termos do artigo 1.219 do Código Civil/2002, a autotutela é exceção, permitida somente ao possuidor de boa-fé, mas não ao mero detentor do bem.

  6. Oficina mecânica ostenta mera detenção do bem deixado sob sua custódia por liberalidade pelo proprietário, pois anuiu com a realização do serviço. Embora tenha a apelada exercido cuidados com a manutenção do veículo ao longo do tempo (troca de óleo e da bateria), a posse não lhe foi transferida, não lhe conferindo o direito de retenção

  7. Sentença cassada. Pedido julgado procedente.

(TJDFT, Acórdão 1410702, 0726713-64.2021.8.07.0001, Relator(a): SANDOVAL OLIVEIRA, 2ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 23/03/2022, publicado no DJe: 05/04/2022.)

 

Ante do exposto, em vista do já decidido pelo STJ, posteriormente confirmado pelos Tribunais Estaduais, a oficina não tem o direito de reter o veículo, pois não detém tanto a propriedade quanto a posse do bem, mas mera detenção, não podendo reter o bem de alto valor, principalmente se considerarmos tratar-se de relação consumerista, cuja veículo vale muito mais do que a dívida civil entabulada entre as partes, tratando-se, pois de vantagem extremamente excessiva e desproporcional..

3 Conclusão

A retenção de veículo por oficinas como forma de compelir o pagamento de dívida configura prática abusiva, ilegal e arbitrária, devendo ser combatida com firmeza tanto pela via judicial quanto por políticas públicas de fiscalização das relações de consumo.

A proteção da dignidade do consumidor, a preservação do devido processo legal e o respeito ao princípio da boa-fé objetiva impõem que qualquer cobrança se realize por meios legítimos e formais, e não pela apropriação indevida de bens alheios.

Por fim, nos golpes como troca de peças não autorizadas, execução unilateral de serviços, dentre outros, a situação fica muito mais grave, sendo evidente o direito à posse do consumidor e também eventual indenização por ter sido vítima de vários golpes perpetrados pela oficina, que usa da retenção para garantir o sucesso dos atos ilícitos e receber valores indevidos do cliente.

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