Compreender as várias facetas da proteção de dados continua sendo uma tarefa que demanda tempo e principalmente ouvir e filtrar os diferentes interesses que perpassam essa área que é tão transversal, afetando todos os indivíduos, por consequência todas as organizações e grupos.
Nesse sentido, ao observar diferentes pontos não se deve deixar de colocar a pessoa humana como ponto referencial para compreender o ordenamento, como lembra o art.1º, inciso III da Constituição Federal de 1988, onde se elenca como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana, que funciona como importante critério hermenêutico, ao mesmo tempo que funciona como critério para ponderação entre interesses constitucionais conflitantes e controle de atos estatais.1
A ponderação de interesses, contudo, não significa levar as relações sociais à lógica de tudo ou nada, mas de permitir a coexistência de demais interesses, desde que não se firam as liberdades e garantias fundamentais. É o caso de uma das bases legais para a proteção de dados: o legítimo interesse: O tema retorna frente à consolidação da Guia2 emitida pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) divulgada no mês de fevereiro.
Em primeiro momento foi divulgado estudo preliminar3 a respeito dessa base que possui, por definição, um aspecto de cláusula aberta. Esse tipo de técnica apresenta pontos positivos e negativos. Enquanto ponto negativo está na sua inerente incerteza na falta de critérios interpretativos, por outro lado, como ponto positivo está na possibilidade de se revigorar e resistir ao desgaste do tempo, “deixando ao juiz, ao intérprete, uma maior possibilidade de adaptar a norma às situações de fato”.4 Segundo Gustavo Tepedino esse tipo de cláusula assim é escolhida pelos legisladores por estarem cientes “da sua própria incapacidade, em face da velocidade com que evolui o mundo tecnológico, para regular todas as inúmeras e multifacetadas situações nos quais o sujeito de direito se insere”.5
Frente a esse ponto, carecia, contudo, uma interpretação para aplicação dessa base legal, tendo em vista que o contexto normativo brasileiro ainda não tinha sido devidamente confrontado com essa cláusula. Com a versão preliminar e agora com a versão consolidada do Guia Orientativo caminha-se, ainda que a pequenos passos, rumo a uma baliza para aplicação dessa base legal.
Comparadas as duas versões percebe-se que houve pouca inovação entre elas, de forma que a maior parte do texto permaneceu inalterada, apesar da consulta depois ter sido aberta para a sociedade, a fim de apontar melhorias no documento.
Quanto a esse aspecto vale destacar que boa parte do Guia nas duas versões aparenta ser influenciado pelas orientações do contexto europeu e, por manter a interpretação em ambas, sinaliza o interesse de convergência normativa entre os diferentes atores, em verdadeiro Efeito Bruxelas6 sobre o ordenamento brasileiro.
Uma questão contudo é que não pôde ser no momento abordado o conflito dos interesses quando aparecerem direitos e garantias fundamentais. Ainda que se reconheça a prioridade destes frente aos mercantis, não fica claro como de fato esses interesses disputarão pelo manejo dos dados, o que demandará maiores análises de casos para subsidiar a ANPD nesse caminho. Uma outra forma, porém, é novamente recorrer às experiências do contexto europeu e como essa base tem sido interpretada.7
Referências
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1. Sarmento, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p.82-84.
2. GUIA Orientativo: Hipóteses legais de tratamento de dados pessoais legítimo interesse. ANPD. Disponível em: link.
3. ESTUDO preliminar – Hipóteses legais de tratamento de dados pessoais legítimo interesse. ANPD. ago 2023.
4. Perlingieri, Pietro. Perfis do Direito Civil. Trad. Maria Cristina De Cicco. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.27.
5. Tepedino, Gustavo. TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Temas de direito civil, v. 3, p. 1-22, 2004, p.19.
6. Cf: Bradford, Anu. The Brussels effect: How the European Union rules the world. Oxford University Press, USA, 2020.Ebook
7. Tome-se como exemplo o caso de 2022 em que foi aplicada uma das maiores multa ao Meta, dentre outros motivos, pela aplicação indevida da base legal do legítimo interesse para crianças e adolescentes. Record fine for Instagram following EDPB intervention. European Data Protection Board. 15 set. 2022. Disponível em: link.