Para Daniel Mitidiero, Tiago Conde Teixeira e Valter Lobato
De início, ao inaugurarmos nossa coluna no ano de 2023, gostaríamos de desejar a todos os leitores um feliz ano novo, repleto de saúde, sucesso e realizações. Que possamos realizar nossos sonhos em paz e com amor.
Não podemos também deixar de nos manifestar acerca da torpe delinquência ocorrida no 08 de janeiro. Criminosos que são, os responsáveis pelo ocorrido – todos eles – devem ser tratados com o rigor da lei, respeitadas as regras materiais e processuais que animam toda e qualquer persecução penal em um Estado Democrático de Direito. De público, renovamos nosso compromisso inabalável com o Estado de Direito, prestando o devido apoio e rendendo nossas as homenagens às instituições do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e da Presidência da República. Estado de Direito sempre! Democracia sempre!
Por fim, nossa coluna inicia 2023 recebendo um dileto amigo e colega, o Dr. Victor Hugo Piller Menezes. Talentoso como poucos, nosso parceiro neste artigo é Bacharel em Direito pela UFMG, a insuperável Vetusta Casa de Afonso Pena. Ademais, trata-se de um dos fundadores da Liga Acadêmica de Direito Financeiro e Tributário da UFMG, a LAFT, instituição a qual ele presidiu e que atualmente exerce funções de Conselheiro. Dr. Victor Hugo também é Pós-graduando em Direito Processual Civil pelo IDP, além de ser nosso companheiro de trincheira na batalha diária da advocacia. Obrigado pelo aceite do convite, meu querido amigo!
Sem mais delongas, passamos ao nosso estudo, elaborado a quatro mãos.
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No dia 08/02/2023, foram julgados conjuntamente, em sessão plenária do STF, os recursos extraordinários nº 949.297/CE e 955.227/BA, Leading cases dos Temas nº 881 e 885 de Repercussão Geral. Tratava-se de discussão acerca dos limites temporais da coisa julgada em relações tributárias de trato sucessivo, em situações nas quais há decisão judicial transitada em julgado, afastando a cobrança de tributo por entendê-lo inconstitucional, com superveniente julgamento, pelo STF, interpretando pela constitucionalidade do tributo, tanto no controle concentrado, quanto no difuso. Na oportunidade, foram firmadas as seguintes teses, para ambos os recursos:
1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.
Os recursos extraordinários em questão tratavam da cobrança de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) pela União em face de pessoas jurídicas que obtiveram decisões transitadas em julgado em seu favor, dispensadas do recolhimento do tributo porque entendido que a cobrança seria inconstitucional. Mais especificamente, as coisas julgadas em questão formaram-se antes do ano de 2007, quando o STF julgou a ADI nº 15, à qual foi negada provimento, restando reconhecida a constitucionalidade da Lei nº 7.689/88, instituidora do citado tributo.
No julgamento recentemente ocorrido, o STF entendeu pela cessação dos efeitos da coisa julgada inconstitucional em relações jurídicas de trato sucessivo, quando sobrevier decisão em controle concentrado ou precedente firmado em sede de controle difuso, por meio da sistemática da Repercussão Geral, em sentido contrário, ou seja, entendendo-se pela constitucionalidade da cobrança do tributo. Mais do que isso, até o momento da escrita deste texto, decidiu-se que, no caso da CSLL, os contribuintes deveriam recolher o tributo a partir de 2007.
Ocorre que, no passado, o STF sequer admitia a subida de recursos extraordinários que tratassem da matéria da coisa julgada, em especial com relação à cobrança da CSLL, como se observa na ementa do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 473.214-9/CE:
AGRAVO REGIMENTAL. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO LÍQUIDO (CSLL). VIOLAÇÃO DA COISA JULGADA. A alegação de ofensa ao inciso XXXVI do artigo 5º da Constituição é indireta ou reflexa, e, portanto, não dá margem ao cabimento do recurso extraordinário. Agravo regimental ao qual se nega provimento. (STF – RE-AgR: 473214 CE, Relator: JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 04/03/2008, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-092 DIVULG 21-05-2008 PUBLIC 23-05-2008 EMENT VOL-02320-04 PP-00673)
Some-se a isto o fato de que, em 06/04/2011, o STJ julgou o REsp nº 1.118.893/MG, leading case do Tema Repetitivo nº 340, no qual restou decidido que não seriam obrigados a recolher o tributo aqueles contribuintes que possuíam em seu favor coisa julgada relacionada à CSLL anterior ao julgamento da ADI nº 15, mesmo depois de reconhecida a sua constitucionalidade, uma vez que a coisa julgava não teria seus efeitos cessados. O ponto 3 da ementa do julgado ressalta que
3. O fato de o STF posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade.
Com isso, a indagação que surgiu foi a seguinte: o que ocorreria com o contribuinte que, além de possuir a coisa julgada em seu favor, confiou plenamente no julgado do STJ no Tema Repetitivo nº 340? Deveria tal contribuinte recolher o tributo desde 2007, se não alcançado pela decadência?
É lugar comum apontar a força que detém a coisa julgada no ordenamento jurídico brasileiro e, de modo mais amplo, na cultura jurídica ocidental. Trata-se de direito fundamental insculpido no art. 5º, XXXVI, do texto constitucional, segundo o qual “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Como direito fundamental que é, não se deve perder de vista o disposto no art. 5º, §1º, também da CRFB/88, o qual categoricamente dispõe que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
No âmbito infraconstitucional, a força da coisa julgada é insistentemente salientada pelo CPC. Tanto assim o é que, nos termos de seu art. 337, VII, o réu deve alegar a existência de coisa julgada antes mesmo de discutir o mérito da ação. O §4º do mesmo artigo predica que “há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida por decisão transitada em julgado”. Daí que, nos termos do art. 485, V, o Digesto Processual determina que o juiz não resolverá o mérito quando verificar a existência da coisa julgada, definida em seu sentido material, nos termos do art. 502, como sendo “a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”. Por fim, incumbe ressaltar o disposto no próprio art. 505, I, segundo o qual o juiz apenas poderá decidir novamente o mérito “se, tratando-se de relação jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença”, ou seja, respeitar o prazo para o ajuizamento de ação rescisória. Em nosso sistema, esse prazo é bienal, “contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo”, nos termos art. 975, caput, do CPC.
Nas palavras de JOSÉ AFONSO DA SILVA, a proteção constitucional conferida à coisa julgada visa a tutelar “a estabilidade dos casos julgados, para que o titular do direito aí reconhecido tenha a certeza jurídica de que ele ingressou definitivamente no seu patrimônio”.1 No mesmo sentido, VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA acentua que o objetivo da coisa julgada é o de “garantir ou a estabilidade das relações jurídicas pretéritas ou a previsibilidade para as relações jurídicas futuras, ou ambas”.2 A respeito do fundamento da autoridade da coisa julgada, assim se manifesta o eminente processualista HUMBERTO THEODORO JÚNIOR:
Por que deve revestir-se a sentença passada em julgado da imutabilidade e indiscutibilidade? Para o grande processualista [Liebman], as qualidades que cercam os efeitos da sentença, configurando a coisa julgada, revelam a inegável necessidade social, reconhecida pelo Estado, de evitar a perpetuação dos litígios, em prol da segurança que os negócios jurídicos reclamam da ordem jurídica.
É, em última análise, a própria lei que quer que haja um fim à controvérsia da parte. A paz social o exige. Por isso também é a lei que confere à sentença a autoridade de coisa julgada, reconhecendo-lhe, igualmente, a força de lei para as partes do processo.
Tão grande é o apreço da ordem jurídica pela coisa julgada, que sua imutabilidade não é atingível sequer pela lei ordinária garantida que se acha a sua intangibilidade por preceito da Constituição Federal (art. 5º, XXXVI).
Há quem defenda o fundamento da coisa julgada com argumento na tese de que a sentença encerra uma presunção de verdade ou de justiça em torno da solução dada ao litígio (res iudicata pro veritate habetur).
Na realidade, porém, ao instituir a coisa julgada, o legislador não tem nenhuma preocupação de valorar a sentença diante dos fatos (verdade) ou dos direitos (justiça). Impele-o tão somente uma exigência de ordem prática, quase banal, mas imperiosa, de não mais permitir que se volte a discutir acerca das questões já soberanamente decididas pelo Poder Judiciário. Apenas a preocupação de segurança nas relações jurídicas e de paz na convivência social é que explicam a res iudicata.3
Em resumo: a coisa julgada é uma das manifestações mais cristalinas da segurança jurídica, valor que fundamenta qualquer pretensão a um Estado de Direito.
Estabelecidas as considerações acima, é importante delimitar o objeto de estudo do presente trabalho, devida a complexidade do julgamento, que apresentou diversas nuances. Não se pretende aprofundar acerca do acerto ou erro da decisão quanto à limitação temporal da coisa julgada de trato sucessivo. Menos ainda, sobre a adequação, ao atual sistema jurídico-processual, da não exigência de ação rescisória ou revisional para a interrupção dos efeitos da coisa julgada contrária a precedente firmado no âmbito da jurisdição constitucional. Busca-se tão somente analisar a necessidade de atribuição de efeitos prospectivos ao precedente que agora se forma na Corte, por quebra da confiança depositada pelo contribuinte em precedente anterior do STJ.
A título de esclarecimento, adota-se a nomenclatura “superação para frente de precedente”, conhecida amplamente como prospective overruling, à atribuição de efeitos prospectivos cujo cabimento e necessidade ora se estuda. Nessa toada, o presente estudo se alinha à perspectiva teórica defendida pelo professor DANIEL MITIDIERO em obra que distingue os institutos da modulação de efeitos e da superação para frente de precedente. Apesar de o direito brasileiro costumar se referir a ambas as situações como “modulação”, “os conceitos são distintos, servem para coisas diferentes e opera mediante requisitos diversos”.4 Essencialmente, a modulação de efeitos se aplica à decisão que declara a inconstitucionalidade de determinado dispositivo jurídico ou lei, em controle concentrado de constitucionalidade. A superação para frente, por outro lado, se aplica ao precedente que supera precedente anterior, trazendo ao ordenamento jurídico solução distinta para determinada questão devidamente contextualizada do ponto de vista fático-jurídico. Ambos, todavia, se manifestam como a atribuição de efeitos prospectivos a determinada decisão ou precedente, para proteger valores constitucional e legislativamente eleitos, daí a referência a ambos como “modulação de efeitos”.
Considerando que o julgamento da matéria controvertida a respeito da coisa julgada tributária em relações jurídicas de trato continuado foi decidido em sede de Repercussão Geral, no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, entende-se que, a partir das razões adotadas para a solução jurídica, forma-se um precedente. Sendo assim, é preciso analisar a possibilidade de aplicação do previsto no art. 927, §3º, do CPC, que assim dispõe:
3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
Segundo MITIDIERO, para a aplicação da superação para frente, do ponto de vista material, é necessário observar três requisitos.5 Primeiro, é preciso apurar a existência de duas soluções diacronicamente distintas para determinada questão jurídica. Segundo, a superação do precedente deve ter vocação retroativa e mais gravosa ao jurisdicionado. Terceiro, a superação deve ser surpreendente, quebrando a confiança depositada no precedente superado. Já do ponto de vista processual, a superação para frente deve ser objeto de fundamentação específica e contraditório.6
Observa-se, ainda, que a superação de precedente opera efeitos retroativos em regra, o que se constata, inclusive, pelo §3º do art. 927 do CPC, que estabelece requisitos excepcionais para a atribuição de efeitos prospectivos ao novo precedente. No entanto, deve-se compreender que, uma vez constatado o cumprimento dos requisitos acima delineados, a superação não pode ser entendida como mera faculdade das Cortes, devendo ser aplicada para proteger a confiança no precedente e para proteger a segurança jurídica.7
Além disso, apesar da possível obviedade, deve-se ter em mente que a superação para frente de precedente só pode ser aplicada quando há, de fato, a superação de um precedente, ou seja, a formação superveniente de um precedente que dá solução jurídica distinta a precedente anterior, que é superado, não mais sendo capaz de gerar expectativas legitimas por parte dos cidadãos.
Tal constatação, embora elementar, traz consequências profundas para o tema do julgamento recente do STF sobre a coisa julgada: se for possível constatar precedente anterior em sentido contrário, de fato o precedente agora formado na Corte terá superado o precedente anterior e poderá implicar no dever de atribuição de efeitos prospectivos; porém, se não se constatar precedente anterior, o precedente ora formado terá aplicação retroativa, sem possibilidades de “modulação” de seus efeitos. Isso porque a “modulação” se justifica pelo depósito de confiança do indivíduo num precedente existente, que verdadeiramente orienta suas condutas e que, posteriormente, é superado por outro precedente que teria a vocação retroativa e mais danosa, gerando efeitos jurídicos distintos daqueles por ele projetados com base no precedente anterior. Não havendo precedente anterior, não há depósito de confiança em precedente no passado, de modo que o precedente formado – primeiro precedente sobre a matéria – se aplicará indistintamente ao passado, ao presente e ao futuro.
Portanto, o problema que se enfrenta é saber se há precedente anterior no qual o contribuinte teria depositado confiança legítima, de modo a não recolher seus tributos por possuir coisa julgada em seu favor.
É preciso ressalvar, antes de mais nada, que há grande dissonância na doutrina a respeito da conceituação de precedente e que o presente trabalho se alinha à concepção do professor DANIEL MITIDIERO. Para o autor, precedentes são as razões jurídicas necessárias e suficientes para decidir determinada questão devidamente contextualizada do ponto de vista fático, extraídas a partir de julgamento, por unanimidade ou maioria, de colegiado das Cortes Supremas competentes a dar a última palavra a respeito da interpretação da matéria.8
Precedente, no entender do professor sulista, é um conceito qualitativo, material e funcional, do qual decorre força vinculante.9 É qualitativo porque as razões que formam o precedente são apenas aquelas necessárias e suficientes à resolução da questão jurídica, comumente referenciadas como ratio decidendi. É material porque o precedente trabalha essencialmente sobre os fatos jurídicos relevantes do caso posto sob exame. Também é funcional porque só serão formados pelas Cortes Supremas competentes a dar a última palavra sobre a interpretação de determinada questão – no Brasil, se a matéria for constitucional, caberá ao STF; se for infraconstitucional, ao STJ. Por fim, os precedentes são dotados de força vinculante porque incorporam a última palavra sobre a interpretação do direito.
Os precedentes, nessa linha teórica, são entendidos como fonte primária do direito, da qual decorre força vinculante e dever de respeito por parte do Poder Judiciário e pelos demais poderes da república. Sua eficácia vinculante decorre precisamente da “força institucionalizante da interpretação jurisdicional, isto é, da força institucional da jurisdição como função básica do Estado”.10 Além disso, embora haja autores que discordam de sua vigência no ordenamento jurídico brasileiro,11 é importante mencionar a regra do stare decisis, que impõe que os precedentes, formados pelas Cortes Supremas, devem ser seguidos pelas Cortes de Justiça (stare decisis vertical) e pela própria corte (stare decisis horizontal).12
Portanto, precedentes são as razões extraídas a partir das decisões de Cortes Supremas. Somente formarão precedentes as razões suficientes e necessárias, em casos devidamente contextualizados do ponto de vista fático-jurídico e a partir de decisões da Corte Suprema competente a dar a última palavra sobre a interpretação de determinada matéria. Uma vez formado o precedente, sua aplicação é obrigatória para casos iguais ou semelhantes, dada a vigência da regra do stare decisis, em função de sua eficácia vinculante. Se só a Corte Suprema competente para dar a última palavra sobre a intepretação da matéria é que pode formar um precedente, então é preciso verificar, no caso sob análise, se havia competência do STJ para julgar a matéria em recurso repetitivo e, no final das contas, se desse julgamento formou-se um precedente, com todos os atributos acima expostos.
No julgamento pelo STF dos Temas nº 881 e 885 de Repercussão Geral, negou-se a modulação de efeitos, entendendo a Suprema Corte que os contribuintes deveriam recolher o tributo desde 2007.
Ora, como descrito acima, conforme a obra da MITIDIERO, para aplicação da superação para frente de um precedente, é necessário demonstrar a configuração de três requisitos.13
Em primeiro lugar, a existência de duas soluções diacronicamente distintas para o mesmo tipo de caso. No caso em tela, paralelamente à negativa de competência do STF para decidir sobre a matéria, que era entendida como infraconstitucional, o STJ julgou o Tema Repetitivo nº 340, de forma que é possível afirmar que houve a formação de um verdadeiro precedente, visto que o STJ seria a Corte competente, ao menos à época, para decidir sobre a matéria, conferindo a última palavra sobre a sua interpretação. Agora, o STF alterou seu entendimento e passou a compreender-se competente para julgar a matéria – na sequência julgando de modo contrário ao decidido pelo STJ. Portanto, resta configurado o primeiro requisito.
Em segundo lugar, a superação do precedente deverá operar efeitos retroativos e gerar efeitos mais gravosos ao jurisdicionado, atingindo fatos passados realizados com base no precedente superado. No caso em tela, é precisamente o que ocorre, pois aquele contribuinte que possuía coisa julgada em seu favor deixou de recolher o tributo, tendo sua expectativa confirmada pelo STJ no Tema Repetitivo nº 340, e agora passará a ter de recolher o tributo – a princípio, de forma retroativa. Configurado, igualmente, o segundo requisito.
Em terceiro lugar, a alteração deve ser surpreendente, de modo a frustrar a confiança depositada pelo contribuinte no precedente superado. No caso em tela, também é o que se verifica, posto que o contribuinte confiava na sua coisa julgada e no precedente do STJ, legitimado pela negativa de competência do STF para decidir a matéria, e deixou de recolher o tributo por mais de 30 anos. Agora, com o novo precedente do STF, foi surpreendido com posição interpretativa nova em matéria tributária, segundo a qual a coisa julgada em relações de trato sucessivo poderá ter seus efeitos cessados se contrariar decisão em controle concentrado ou precedente em controle difuso, da Suprema Corte. Finalmente, configurado o terceiro requisito.
Não obstante as razões teóricas acima aduzidas, a literalidade do art. 927, §3º do CPC exige que os contribuintes passem a recolher a CSLL apenas a partir do atual julgamento da Corte, na medida em que reza que a modulação dos efeitos (superação para frente de precedente) se ancora “no interesse social e no da segurança jurídica”.
Em análise das expressões acima, um dos autores do presente texto, na companhia autorizada e renomada de VALTER LOBATO, assim se manifestou:
Pois bem. Na decisão que modifica a jurisprudência em desfavor dos contribuintes, não se pode aplicar a regra da retroação. Isso porque, estabelecida a jurisprudência, os contribuintes pautam suas condutas e planejam economicamente suas vidas a partir daquilo que anteriormente se decidiu. Nesse sentido, o Judiciário, ao adotar um entendimento anteriormente excluído pela decisão primeva, cria nova norma, que somente poderá ter vigência para o futuro, ou seja, efeitos prospectivos (ex nunc).
É justamente este o âmbito de aplicação dos princípios da proteção da confiança, da boa-fé e da irretroatividade, verdadeiro fundamento da modulação dos efeitos das decisões modificadoras da jurisprudência. Com efeito, a irretroatividade, enquanto projeção da segurança jurídica, mostra-se como “decorrência normal, da natureza das leis, advém da lógica das coisas, da razão e da moral e está na base do princípio da separação dos poderes”. Seu conteúdo, portanto, é o de preconizar que a lei introduzida no sistema jurídico, via de regra, somente deve alcançar os fatos a ela futuros. (…)
Questão mais imbrincada reside no requisito do interesse social. Diante da indeterminação conceitual de que se reveste, tal conceito não pode ser confundido com outros conceitos, tais quais os de interesse público e de interesse estatal. (…)
É de se ver que a expressão interesse social não pode ser concebida como interesse público, se compreendida esta última como o atendimento de necessidades coletivas (o interesse público primário, propriamente dito). Com efeito, interesse público há no poder de polícia, na prática de tombamento de determinado imóvel urbano e na própria instituição dos tributos: nesse último caso, o tributo é meio pelo qual as necessidades coletivas serão custeadas. Vê-se, portanto, que interesse social, como requisito a impedir a aplicação natural de efeitos retroativos às decisões que modificam a jurisprudência ou em sede de controle de constitucionalidade, não pode ser compreendido de tal modo. O interesse público, este sim, é dirigido ao legislador, quando da elaboração da lei que dará fundamento à atuação administrativa (Poder Executivo) e a esta última. Em suma, interesse social, no contexto do presente trabalho, não é interesse público.
Tampouco como interesse estatal (interesse público secundário, para Celso Antônio Bandeira de Mello) poderá ser compreendida a expressão interesse social.
As razões trazidas por Scaff calham perfeitamente aqui.
Com efeito, em matéria tributária interesse estatal é o interesse arrecadatório, o interesse do Estado, enquanto pessoa jurídica de direito público, parte processual e sujeito ativo de obrigações tributárias. Em se tratando de modulação de efeitos, via de regra esse interesse estatal se manifesta em pedidos os quais o Fisco alega que a ausência da atribuição de efeitos prospectivos à decisão que lhe é desfavorável causará rombos financeiro-orçamentários, além de, indiretamente, comprometer a própria satisfação e o custeio de serviços públicos, custeio de pessoal etc. (…)
Nesse sentido, nos parece que interesse social é o interesse da sociedade na manutenção de um sistema jurídico íntegro, estável e, sobretudo, confiável. É dizer: a expressão “interesse social”, conjugada ao valor segurança jurídica, pressupõe a própria compreensão do sistema jurídico como operacionalmente fechado, isto é, para que opere segundo a sua própria lógica, seu próprio método. Daí dizer-se que o sistema jurídico é funcional e autopoiético: o Direito se produz a partir de si próprio.
Ora, se o sistema jurídico é fechado operacionalmente, e se segurança jurídica é previsibilidade, estabilidade e certeza, é certo que os cidadãos somente se comportarão de acordo com as normas existentes e válidas no ordenamento, se o sistema for concebido como algo previsível.14
Ora, as razões relativas à superação para frente já restaram demonstradas aos borbotões no presente caso.
Contudo, a necessidade de atribuição de efeitos prospectivos, por razões de interesse social, também é candente. Há uma série de contribuintes que detinham a seu favor decisão judicial que determinava a inconstitucionalidade de determinado tributo. Em sua grande maioria, essas decisões haviam sido proferidas ainda nos anos 90! Some-se ao fato o precedente do Tema Repetitivo nº 340 e a vasta jurisprudência do STJ, reforçando a autoridade da coisa julgada. A decisão do STF determinando o recolhimento desde 2007 atinge a própria confiança no sistema, de modo que, ao menos, esses contribuintes deveriam recolher a CSLL a partir desta decisão recente do STF.
Portanto, ao contrário do que até o momento da escrita deste texto foi decidido pelo STF, deve-se atribuir efeitos prospectivos ao novo precedente, formado no julgamento conjunto dos Temas nº 881 e 885 de repercussão geral, porque frustra a confiança do contribuinte que possuía, em seu favor, coisa julgada no sentido de inexistir relação jurídica que o obrigue a recolher determinado tributo.
Referências
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1. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. – 37. ed. – São Paulo: Malheiros, 2014, p.439.
2. SILVA, Virgílio Afonso da. Direito Constitucional Brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2021, p.240.
3. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum, vol. I – 56. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2015, p.1099-1100.
4. MITIDIERO, Daniel. Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 80.
5. MITIDIERO, Daniel. Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 66-67.
6. MITIDIERO, Daniel. Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 67.
7. LOBATO, Valter de Souza; TEIXEIRA, Tiago Conde. O julgamento pelo STF do RE n. 1.072.485/PR e a necessidade de modulação de seus efeitos. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, n. 46, p. 534-566, 2º semestre 2020, p. 563.
8. Este conceito pode ser encontrado em diversas obras do autor, como em MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3. ed. rev. atual. e aum. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017 e MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
9. MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3. ed. rev. atual. e aum. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 88.
10. MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 84-86.
11. Como se observa já brilhante obra da professora Misabel Derzi “DERZI, Misabel de Abreu Machado. Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário: Proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao Poder Judicial de Tributar. 1. ed. Noeses: São Paulo, 2009.”
12. MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 82-83.
13. MITIDIERO, Daniel. Superação para frente e modulação de efeitos: precedente e controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 1. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 66-67.
14. LOBATO, Valter de Souza; MARINHO NETO, José Antonino. Alteração Jurisprudencial, Precedentalismo e Modulação em Matéria Tributária: o Sentido da Expressão “Interesse Social” para Fins de Modulação dos Efeitos. In: Ricardo Mariz de Oliveira;Rodrigo Maito da Silveira. (Org.). 7º Congresso Brasileiro de Direito Tributário Atual: Consistência Decisória em Matéria Tributária nos Tribunais Superiores: Aspectos Materiais e Processuais. São Paulo: IBDT, 2021, p. 392-418.