Meu primeiro artigo na importante coluna “Instituto von Bülow”, publicada pelo Portal Jurídico Magis. Não foi-me imposto discorrer sobre nenhum tema pré-determinado, ficando, assim, o espaço livre para a promoção democrática do debate, em especial na área do Direito Processual Civil. Bola no centro de campo. Ao jogo, pois!
Se um dos objetivos da presente coluna é a de “entregar, unindo teoria e prática, amplo conhecimento ao leitor […]”, conforme afirmado pelo seu coordenador, o jurista Guilherme Christen Möller,1 pensando em alguma temática do processo civil capaz de fomentar saudável discussão, recordo-me de que, muito recentemente, no exercício de minha atividade advocatícia, deparei-me, no manejo de um caso prático, com extraordinária reflexão teórica – ao menos para os apaixonados, assim como eu, pela Teoria Geral do Processo. Explico.
Nos autos da Ação Monitória, processo nº 5003326-59.2017.8.21.0022, em trâmite perante o 2º Juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Pelotas/RS, transitada em julgado em dezembro de 2021, mormente com a conversão do mandado inicial em executivo, em decorrência da ausência de oposição de embargos à monitória, as partes, em maio de 2022, protocolaram acordo nos autos, realizado sem qualquer vício de consentimento, no que se refere ao pagamento do débito objeto do feito. O objetivo do protocolo: pedido de homologação da transação realizada entre autor e réu. Acontece que, em seguida, foi proferida decisão interlocutória em que o juiz deixou de homologar o avençado entre as partes sob a justificativa de “[…] esgotada a prestação jurisdicional”.
Bem, sabe-se que a literatura sempre corre à frente do Direito. A pergunta “O que é isto?”, da personagem Mildred, ao exibir o livro escondido, dentro de um travesseiro pelo seu esposo, Guy Montag, bombeiro que atravessa séria crise ideológica no clássico da distopia mundial, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury,2 aparece formidavelmente para desnudar a questão. Afinal, o que é isto – a prestação jurisdicional?
O jurista Guilherme Christen Möller, numa de suas recentes publicações,3 brinda-nos com uma excelente exposição acerca da “clássica” definição de jurisdição nacional, abordando desde a formação da jurisdição no Estado Moderno, passando pela importação de concepções estrangeiras, em especial, a doutrina italiana, e a consolidação, no direito brasileiro, da ideia da jurisdição como instituição do Estado destinada à resolução de conflitos (poder-função-atividade). Vale a leitura porque, a partir das formulações teóricas contidas no texto (golaço da teoria!), é possível seriamente indagar se, nos autos da Ação Monitória mencionada anteriormente, de fato, encontra-se “[…] esgotada a prestação jurisdicional”, a ponto do acordo realizado entre as partes não poder ser homologado pelo juízo.
Nesse contexto, penso ser oportuno destacar que é perfeitamente válida e eficaz a transação levada a efeito pelo demandante e demandado no caso paradigma, já que ambos participaram de forma equânime das negociações, a fim de regular a execução do julgado. Aliás, o trânsito em julgado da decisão judicial não obstaculiza as partes de formularem acordo sobre a solução do litígio, pois a composição visa ao cumprimento da decisão conhecida por elas.
Portanto, a contrário sensu do estabelecido na decisão interlocutória proferida, é juridicamente possível a transação efetivada entre o requerente e o requerido até mesmo após a decisão que soluciona o litígio, no intuito de possibilitar a conversão do mandado inicial em título executivo judicial líquido, certo e exigível, sob pena da recusa do juízo importar na negativa de prestação jurisdicional por parte do Estado, e não o seu esgotamento.
De acordo com o grande professor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias,4 um dos expoentes da escola processual mineira, caracterizada pela sua fundação no Estado Democrático de Direito e seu giro em torno das garantias constitucionais-processuais fundamentais:
[…] a função jurisdicional do Estado é serviço público dependente de provocação dos interessados, consiste em cumprir e fazer cumprir as normas do Direito Positivo, realizando o ordenamento jurídico, atividade estatal monopolizada somente exercida pela garantia do processo constitucionalizado, por meio de um procedimento legalmente estruturado e informado pelos princípios do contraditório e da ampla defesa.
Ainda, em seu magistério –
[…] a função jurisdicional, no Estado Democrático de Direito, não é atividade beneficente, obsequiosa ou caritativa, mas poder-dever do Estado, razão pela qual, em contrapartida, é direito fundamental de qualquer um do povo (governantes e governados) e também dos próprios órgãos estatais obtê-la, a tempo e modo, vale dizer, de forma adequada e eficiente, pela garantia do devido processo constitucional.
Por conseguinte, foram opostos Embargos de Declaração por uma das partes nos autos da Ação Monitória antes referida para, ao fim e ao cabo, seja analisado o acordo entabulado entre o autor e o réu, sendo o mesmo homologado, haja vista que inexiste, no caso concreto, esgotamento de prestação jurisdicional, pacificando a relação jurídica mantida entre aqueles mediante a composição voluntária – aliás, forma adequada, que melhor atende aos anseios dos jurisdicionados e da sociedade.
No presente momento em que finalizada a escrita desse texto (11/07), o processo encontra-se concluso para decisão após submetidos os Embargos de Declaração. Caso haja o provimento dos aclaratórios, com a consequente modificação da decisão interlocutória que deixou de homologar o acordo realizado entre as partes, a prática terá se unido à teoria, desempenhando ótima jogada em prol da cotidianidade da práxis jurídica a partir de temas academicamente relevantes, o propósito da presente coluna.
Até a próxima!
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*Mestre em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Especializando em Direito Processual Civil pela PUC-Minas. Bacharel em Direito pela FURG com período sanduíche na Universidade de Coimbra/Portugal. Advogado. E-mail: jeanlucca.adv@gmail.com.
Referências
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BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. Tradução Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2020, págs. 78-79.
DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pág. 93.
MÖLLER, Guilherme Christen. Algumas notas sobre o modelo de resolução de disputas e o modelo da structural litigation (medidas estruturantes e processos estruturais). In: RIBEIRO, Darci Guimarães. MÖLLER, Guilherme Christen. FRÖHLICH, Afonso Vinício Kirschner. Teoria crítica do processo. Belém: RFB, 2022, págs. 143-152.
1. “Instituto Von Bülow – A nova Coluna do Portal Jurídico Magis”. Disponível em: https://bit.ly/3ADQfjV. Acesso em 03/07/2022.
2. BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451: a temperatura na qual o papel do livro pega fogo e queima. Tradução Cid Knipel. São Paulo: Globo, 2020, págs. 78-79.
3. MÖLLER, Guilherme Christen. Algumas notas sobre o modelo de resolução de disputas e o modelo da structural litigation (medidas estruturantes e processos estruturais). In: RIBEIRO, Darci Guimarães. MÖLLER, Guilherme Christen. FRÖHLICH, Afonso Vinício Kirschner. Teoria crítica do processo. Belém: RFB, 2022, págs. 143-152.
4. DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, pág. 93.