Reconhecer as assimetrias na sociedade se tornou um importante passo do direito para uma abordagem mais precisa da realidade. A igualdade formal, ao colocar todos em situação isonômica perante a lei, mostrou-se insuficiente para tratar os diferentes sujeitos, instrumentalizando o ordenamento para perpetuação de privilégios. É então adicionada a igualdade material ou substancial, prevendo a “necessidade de tratar pessoas, quando desiguais, em conformidade com a sua desigualdade”.1 Reconheceu-se, assim, que não atentar às diferenças e não direcionar meios de proteção e maior protagonismo a determinados grupos estigmatizados poderia causar discriminações ilegítimas, consubstanciando danos aos membros segregados.2
De forma semelhante entendeu o legislador, quando da edição da Lei Geral de Proteção de Dados, existirem determinada categorias de dados, chamados sensíveis, que, caso não fossem submetidos a um maior rigor protetivo, quando comparado aos demais, poderiam gerar situações discriminatórias.3 Sob essa égide se destaca o art.5º, II da LGPD, o qual conceitua o dado pessoal sensível como aquele vinculado a pessoa natural que se refira a “origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico”.
Essa categoria de dados não somente foi dotada de uma qualificação, mas também a ela são direcionados requisitos específicos, alguns não aplicáveis aos considerados “gerais”. Dentre eles, cite-se o consentimento específico e destacado, conforme art.11, I, de forma que a manifestação de vontade deve conhecer dos fins determinados e deve ser registrada em destaque nos instrumentos de declaração autorizativos do tratamento de dados.4
Apesar das disposições sobre as hipóteses exclusivas a essa categoria, ainda restam pontos em aberto que podem gerar controvérsias. Dentre eles, a definição do que seria considerado sensível ou não.
É perceptível a inserção de dados referentes a etnia como sensíveis devido ao risco da xenofobia a grupos imigrantes em determinados locais, ou dos relativos à raça quando observada a questão do racismo estrutural, bem como a opinião política, a fim de evitar perseguição por adversários. Mas ater-se somente ao que é disposto no texto pode simplificar a análise dos casos mais nebulosos, pois “dados não considerados sensíveis podem ser tratados com finalidade ou com um resultado discriminatório, bem como dados sensíveis podem ser tratados e não gerarem um efeito discriminatório, mas que, ao contrário, atenda a um propósito legítimo”.5
Um dado que informa uma mulher como mãe ou gestante, a um primeiro momento pode parecer apenas um dado pessoal, mas ao considerar esse mesmo dado, em um processo seletivo, pode resultar em não admissão no emprego, pois podem colocar em “dúvida” se a mulher possui capacidade de se dedicar ao emprego e a maternidade, ao mesmo tempo que empregadores temem prejuízos com o pagamento da licença-maternidade.6 Ou a idade de uma pessoa, à primeira vista dado não sensível, poderia ser utilizada para segregar e impedir que uma pessoa idosa se candidate a uma vaga em uma empresa, cujos empregadores entendem que ela não conseguem lidar bem com tecnologia, em verdadeiro caso de ageísmo.7 Sérgio Negri e Maria Regina Korkmaz lembram que as condenações criminais não estão elencadas no rol de dados sensíveis na LGPD, os quais podem “cristalizar o indivíduo na condição de condenado, impedindo que reiniciasse sua vida na concretização da sua dignidade e do exercício de sua autonomia”.8
É certo que a técnica legislativa utilizada para os dados sensíveis é de caráter mais restritivo, de forma que a essa categoria são direcionadas normais mais rígidas e mais deveres de cuidado, assim, elastecer o conceito de dado pessoal sensível para além do prescrito em lei poderia contrariar a proposta legislativa9 , trazendo dificuldades em diferenciar dados pessoais de dados sensíveis. Por outro lado, direcionar o tratamento diferenciado apenas às hipóteses previstas no rol do art.5º, II poderia prejudicar a defesa de outros dados não considerados.
Sob essa perspectiva, há autores que defendem a aplicação de uma possível cláusula geral aos dados pessoais sensíveis, oxigenando o ordenamento jurídico “mediante princípios valorativos e elementos extrajurídicos, permitindo a adaptação do direito à dinâmica social”.10
É certo que seja o rol do art.5º, II da LGPD taxativo ou exemplificativo, tanto o dado pessoal como o dado pessoal sensível estão submetidos ao princípio da não discriminação, previsto no art.6º, IX, prevendo a “impossibilidade de realização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos”.
Se entendido como exemplificativo, caberá à doutrina, bem como à própria Autoridade Nacional de Proteção de Dados, delimitar quais casos caracterizam dados pessoais e quais são dados pessoais sensíveis. Se a posição for pela taxatividade, algumas situações ficarão fora do regime específico destinado aos dados pessoais sensíveis, impactando na forma de armazenamento e na modulação dos instrumentos de segurança e sigilo.11
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Referências
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1. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 2009, p. 86.
2. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana: uma leitura civil constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 2009, p. 90.
3. Segundo Konder alguns dados são “especialmente idôneos a facilitar processos sociais de exclusão e segregação, razão pela qual seu controle deve ser ainda mais rigoroso. Essa é chave de leitura adequada para compreender a qualificação de dados pessoais sensíveis.” KONDER, Carlos Nelson. O tratamento de dados sensíveis à luz da Lei 13.709/2018. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato. Lei Geral de Proteção de Dados e suas repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 451
4. MULHOLLAND, Caitlin. O tratamento de dados pessoais sensíveis. In: MULHOLLAND, Caitlin (Org.). A LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago, p. 135.
5. KORKMAZ, Maria Regina Detoni Cavalcanti Rigolon, 2019. Dados Sensíveis na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: mecanismos de tutela para o livre desenvolvimento da personalidade. 2019. 119 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. p. 49. Disponível em: https://bit.ly/3kHzLxS. Acesso em: 30 ago. 2021.
6. MARTINS, Thays. Mercado de trabalho fecha portas para grávidas e mães com filhos pequenos. Correio Braziliense. 04 mar. 2018. Disponível em: https://bit.ly/2WI9bw2. Acesso em: 29 ago. 2021.
7. PRECONCEITO etário traz falsas ideias sobre idosos no mercado de trabalho. Instituto de Longevidade MAG. 01 maio 2021 Disponível em: https://bit.ly/3kOR545. Acesso em: 29 ago. 2021.
8. NEGRI, Sérgio Marcos Carvalho de Ávila; KORKMAZ, Maria Regina Detoni Cavalcanti Rigolon. A normatividade dos dados sensíveis na Lei Geral de Proteção de dados: ampliação conceitual e proteção da pessoa humana. Rev. de Direito, Governança e Novas Tecnologias, v. 5 n. 1, p. 63-85. Goiânia, Jan/Jun. 2019. p. 78
9. CASTRO, Dayane Marciano de Oliveira Castro; MANO, Janini Nogueira D’Alessandro; BARONOVSKY, Thainá. Dados pessoais bancários e financeiros são considerados dados sensíveis para a LGPD? Portal Migalhas. 18 ago. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3t5ZNhW. Acesso em: 30 ago. 2021
10. NEGRI, Sérgio Marcos Carvalho de Ávila; KORKMAZ, Maria Regina Detoni Cavalcanti Rigolon. A normatividade dos dados sensíveis na Lei Geral de Proteção de dados: ampliação conceitual e proteção da pessoa humana. Rev. de Direito, Governança e Novas Tecnologias, v. 5 n. 1, p. 63-85. Goiânia, Jan/Jun. 2019. p. 79.
11. Sobre o regime específico e os mecanismos de tutela dos dados pessoais sensíveis confira-se KORKMAZ, Maria Regina Detoni Cavalcanti Rigolon, 2019. Dados Sensíveis na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: mecanismos de tutela para o livre desenvolvimento da personalidade. 2019. 119 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. Disponível em: https://bit.ly/3kHzLxS. Acesso em: 30 ago. 2021.