O Brasil possui diversos traços históricos e multiculturais em sua constituição. A história do nosso país, portanto, não se deu de forma pacífica, não foi concedida ou acordada, mas sabemos a origem da dolorosa miscigenação brasileira. Por dolorosa digo que a formação multicultural brasileira presente nos dias atuais iniciou no momento em que os Portugueses cruzaram com nossa terra a caminho das Índias. De tanto procurar uma forma que os fizessem chegar as riquezas da Índia, descobriram com marinheiros que havia, sim, uma passagem ligando o oceano Índico ao Atlântico,1 que culminou na descoberta de terras habitadas até então pelos povos indígenas e a chegada dos Portugueses ao atual Brasil.
Por muito tempo permanece uma narrativa, possivelmente inconsciente, sobre a formação histórico-cultural brasileira possuir origens exclusivamente europeias e brancas. Narrativa que nos leva a perceber que o racismo “á brasileira” se volta contra aqueles que são testemunhas da construção do país e da sua importante e forçada participação desde os primórdios, que eleva a ideologia da democracia racial,2–3 os corpos colonizados negros e indígenas. É comum a denúncia dessa ideologia como mistificação e mascaramento de uma realidade de racismo e discriminação.4
A importância de ressaltar a participação forçada neste processo histórico brasileiro dos corpos e indivíduos africanos, trazidos pelos portugueses em navios negreiros, e indígenas sul-americanos, primeiros habitantes desta terra, se reflete diretamente nos dias atuais. Uma vez que a sociedade brasileira se construiu segregando as ditas minorias, se fazendo necessário retratar o conceito de decolonialidade,5 que ainda hoje subalternam socialmente estes corpos em razão de sua libertação contraditória aos olhos dos colonizadores e tensionam a modernidade.
A negação do racismo nos dias atuais faz parte das narrativas de parcela da população e de autoridades que se recusam a admitir o problema social. Silvio de Almeida, 2018, destaca ainda que
No Brasil, a negação do racismo e a ideologia da democracia racial sustentam-se pelo discurso da meritocracia. Se não há racismo, a culpa pela própria condição é das pessoas negras que, eventualmente, não fizeram tudo que estava a seu alcance. Em um país desigual como o Brasil, a meritocracia avaliza a desigualdade, a miséria e a violência, pois dificulta a tomada de posições políticas efetivas contra a discriminação racial, especialmente por parte do poder estatal. No contexto brasileiro, o discurso da meritocracia é altamente racista, uma vez que promove a conformação ideológica dos indivíduos à desigualdade racial.6
Negar o racismo é negar a existência da multipluralidade, é ignorar que o direito das pessoas pretas e indígenas não é atingido pelos efeitos da colonização. Devemos ainda prosseguir com luta pela participação multicultural das pessoas em todos os setores da sociedade civil onde concentram-se os poderes nas mãos da elite e corpos não-pretos.
É preciso desconstruir os resquícios da colonização presente na modernidade, decolonizar o direito, pensar a decolonialidade enquanto um projeto constantemente inacabado.7 É através de uma necessidade social de regular as relações entre os cidadãos entre si, entre os cidadãos e o Estado e as relações de poder, que os direitos se constituem. Neste sentido, a decolonialidade é a tentativa de desfazer as desigualdades através da ferramenta do direito, a impedir que o passado se repita.
Em uma perspectiva geral para que possamos compreender o direito, é preciso pensar como um corpo negro ou um corpo indígena para comunicar-se com uma justiça integrativa que compreende os capítulos da história que a formularam. Podermos propor a reconstrução do sentido da norma jurídica que se autoexpressa no exercício democrático do poder constituinte como poder comunicativo e que se desdobra ao longo do tempo por meio de um processo de aprendizado histórico, não linear e sujeito a tropeços,8 para promover a justiça e quebrar os parâmetros segregatícios.
____________________
Referências
________________________________________
1. COSTA, Marcos. A história do Brasil para quem tem pressa. 1º ed. – Rio de Janeiro: Valentina, 2016, p. 19.
2. Por mito da democracia racial é possível, Silvio De Almeida, 2018, destaca que no Brasil instituiu-se a ideologia da democracia racial, que consiste em afirmar a miscigenação como uma das características básicas da identidade nacional, como algo moralmente aceito em todos os níveis da sociedade, inclusive pela classe dominante. Deste modo, a lógica contraditória é de que ao contrário de países como os Estados Unidos, nunca se instalara no Brasil uma dinâmica de conflitos baseados na raça. (ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 179).
3. GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69.
4. REIS, Fábio Wanderley. Mercado e Utopia. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2009, p. 448. Disponível em: https://bit.ly/3hAEZdM. Acesso em: 14set. 2021.
5. A decolonialidade aparece como o “terceiro elemento da modernidade/colonialidade” que resiste aos quatro da colonialidade do poder na modernidade: liberalismo, cristianismo, conservadorismo e colonialismo (MIGNOLO apud BALLESTRIN, 2017a). Não obstante, os aspectos da dupla consciência e do colonialismo interno se tornam a primeira barreira a ser quebrada no processo de decolonização e libertação (FONSECA, 2021, p. 54).
6. ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 51).
7. GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Cap 13. In. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.) Epistemologias do Sul, 2010. apud FONSECA, Fernanda Cardoso. Nossa Améfrica Ladina: o pensamento (decolonial) de Lélia Gonzalez. 2021. 183 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, p. 15. Disponível em: https://bit.ly/3hwgmyW. Acesso em: 13 set. 2021.
8. CATTONI DE OLIVEIRA, M. A. Democracia sem espera e processo de constitucionalização: uma crítica aos discursos oficiais sobre a chamada “transição política brasileira”. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, v. 3, p. 1, 2010.