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Desbiologização da filiação e a importância do reconhecimento da parentalidade socioafetiva

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O tema da socioafetividade vem ganhando cada vez mais espaço no debate familiarista contemporâneo. A tese de repercussão geral 622 do STF, contextualizada no julgado do Recurso Extraordinário 898.060, bem como o Provimento 63/2017-CNJ, ambientam os entendimentos paradigmáticos que solidificam o reconhecimento da filiação socioafetiva no ordenamento jurídico brasileiro, sem qualquer distinção relativamente aos vínculos consanguíneos e jurídicos de parentalidade. Mas a sociedade ainda parece oferecer resistência a esse debate, notadamente quando a socioafetividade faz surgir vínculos plurais de paternidade ou maternidade, caracterizando a chamada multiparentalidade.

Em primeiro lugar, é preciso entender-se que as remodulações familiares, que dão origem a verdadeiros vínculos de filiação socioafetiva, devem ser protegidas. Boa parte das famílias que buscam reconhecimento do vínculo socioafetivo se enquadram no conceito de famílias recompostas, em que os cônjuges vêm de outras relações, trazendo suas histórias e os filhos havidos em uniões anteriores.

No novo âmbito familiar, os filhos passam a conviver com padrastos e madrastas e não raro passam a ver nestes uma figura parental, e o registro desse vínculo passa a ser importante. Não se requer desfazimento da parentalidade anterior, sendo plenamente possível o simples acréscimo do novo pai ou da nova mãe. Se a pessoa que receberá a nova filiação for maior de 12 anos e se não houver controvérsia em torno do registro, esse reconhecimento dispensa homologação judicial, podendo se dar perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais, nos termos do Provimento nº 63/2017-CNJ.

Mas há uma série de outras situações que devem ensejar o reconhecimento do vínculo socioafetivo, menos triviais e mais rechaçados pela sociedade. A desbiologização do vínculo parental é um tema muito pouco aceito na cultura brasileira. Clóvis Beviláqua definia a adoção como o ato pelo qual alguém aceitaria um estranho como filho,1 numa visão que até reconhecia os efeitos civis desse instituto, mas não desapegava da limitada compreensão da parentalidade como um fenômeno essencialmente biológico.

E essa visão, em que pese absolutamente superada pela doutrina civilista atual, não raro aparece nas discussões corriqueiras sobre o assunto. Para muitos, os genitores biológicos é que são a verdadeira família da pessoa. Esse sentimento é, contudo, minoritário na sociedade. Hoje a adoção é vista como efetivo mecanismo de criação de vínculo jurídico de filiação, em tudo igual ao vínculo biológico, tendo uma aceitação social significativa. O mesmo não se pode dizer quanto à filiação socioafetiva, que ainda carece de certo reconhecimento social.

Em todo caso, percebe-se que o critério biológico não desapareceu por completo do imaginário social relativo aos vínculos de filiação.

Em obra referência sobre o assunto,2 a Profa. Daniela Braga Paiano comenta as situações de multipaternidades e multimaternidades já levados a apreciação judicial no Brasil, abordando situações que ultrapassam as hipóteses de recomposição familiar. Imaginemos por exemplo a seguinte situação de multimaternidade, no caso de pessoa que tem três mães: um casal homoafetivo feminino que realizou adoção, sendo que a criança adotada tinha irmãos biológicos com quem tinha forte vínculo de afeto. Para resguardar esse vínculo, foi restaurada a filiação materna biológica, e mantida a dupla filiação materna jurídica por vínculo de adoção. Nesse caso, não foi a socioafetividade que deu origem à multiparentalidade, mas sim o vínculo biológico materno. Já havia duas mães (por adoção), e reconheceu-se o vínculo com a terceira, com base na consaguinidade.

Essa situação demonstra que o vínculo biológico pode, em certas hipóteses, ser reconhecido posteriormente ao vínculo adocional ou socioafetivo, evidenciando que de fato não há hierarquia entre a consanguinidade e as outras formas de filiação. A desbiologização da parentalidade é uma realidade inconteste, mas sabe-se que esse não é um fato que passa incólume à crítica social. Além do preconceito que famílias com composições atípicas enfrentam, existe uma cultura que dificulta a aceitabilidade social desses vínculos parentais.

Juridicamente, contudo, o vínculo familiar socioafetivo é real, produzindo todos os efeitos, sem qualquer demérito. Se o contexto demandar reconhecimento de multiparentalidade, isso não representará óbice para o reconhecimento da filiação.

Esse entendimento costuma ser criticado por abrir caminho para as chamadas “múltiplas heranças”. Aquele que busca o reconhecimento de filiação socioafetiva com um pai ou uma mãe que deixa bens costuma ser taxado, sendo comum que pessoas deixem de buscar o reconhecimento desse vínculo com receio de serem vistas como “interesseiras”.

Esse é um entendimento limitado e enviesado. A multiparentalidade não é um caminho para as múltiplas heranças, mas sim para o registro do afeto, que cria um vínculo parental.

A patrimonialização da filiação não condiz com a perspectiva de constitucionalização e personalização das relações privadas que está na pauta da civilística contemporânea. Há um importante conteúdo extrapatrimonial na filiação, e as demandas de registro de multiparentalidade podem sim buscar dar segurança jurídica a essas verdades, sem interesse patrimonial predominante – e o interesse patrimonial, caso exista, não deve ser objeto de estigma, posto que a dimensão patrimonial também é uma importante esfera de concretização e afirmação da pessoa.

O tema suscita debates e polêmicas, mas olhado de perto, não há o que se questionar. Não há mais espaço para o preconceito e para o não reconhecimento da parentalidade socioafetiva, seja qual for o arranjo familiar.

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Hermano Victor Faustino Câmara

 

Referências

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1. BEVILÁQUA, Clóvis. Direito de Família. 8. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1956.

2. PAIANO, Daniela Braga. A Família Atual e as Espécies de Filiação – da possibilidade jurídica da multiparentalidade. Belo Horizonte: Lumen Juris, 2017.

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