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Desdobramento do “Caso Americanas”: a ENRON tupiniquim

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No início desse ano, o mercado brasileiro foi pego de surpresa pelo anúncio que a Americanas, um dos maiores grupos de varejo do país, registrava um rombo de, pelo menos, vinte bilhões de reais, estimando-se um prejuízo na casa de quarenta bilhões reais. O caso tomou o noticiário nacional e, inclusive, foi objeto dessa coluna no mês de fevereiro.1

Na época, se apurou que existiriam inconsistências contábeis vinculadas a operações de risco sacado, que são uma espécie de triangulação entre empresa, fornecedores e alguma instituição financeira. Em suma, a empresa faz uma aquisição junto a um fornecedor, cujo débito é quitado diretamente pela instituição financeira, ficando a empresa responsável por quitar a dívida junto ao banco, que se traveste de uma espécie de empréstimo. Essa é uma forma que o mercado encontrou para que os bancos assumissem os riscos das operações com fornecedores, a fim de manter a cadeia de mercado confiável.

Então, ainda se trabalhava com o eufemismo “inconsistência contábil”, algo como um erro inocente, nos lançamentos da companhia. Contudo, em treze de junho, a Americanas lançou uma nota admitindo o que muitos já apontavam: a existência de fraude contábil nos registros financeiros da empresa.

A divulgação aconteceu, coincidentemente, no mesmo dia em que o atual Presidente do Grupo Americanas iria depor na Comissão Parlamentar de Inquérito, instaurada na Câmara dos Deputados, para investigar as práticas de mercado da empresa, que levaram ao rombo contábil.2

Além das fraudes de risco sacado, o relatório preliminar de investigação interna da empresa, descobriu a possível contratação de verba de propaganda cooperada (VPC). Esses contratos servem para cobrir custos de publicidade e propaganda, a fim de guiar estratégias para impulsionar vendas de determinados produtos e, geralmente, são firmados entre indústria e varejo. É através desse ajuste que é definido quais produtos ganharão destaques na loja, publicidade nacional, qual mídia será priorizada, etc.3

Ao que parece, esses contratos foram deliberadamente fraudados, ou seja, foram firmados de forma fictícia para o escoamento de recursos da companhia. Nesse aspecto, revela-se gravíssima a fraude, pois se extraem indícios de um dolo acentuado dos diretores do grupo, implicados no processo de decisão em torno dessas práticas.

Segundo o professor André de Moura, em entrevista concedida ao Portal UOL de Notícias,4 um conjunto de falhas e erros levou à fraude. A Americanas maquiava o seu balanço, para transformar prejuízo em lucro e enganar os acionistas, fornecedores, parceiros comerciais e o mercado como um todo.

Diante das fraudes em contratos, é inegável que todo o setor de compliance e ESG falharam. De acordo com relatos, a KPMG, antiga empresa responsável pela auditoria externa do grupo, teria apontado as falhas em registros contábeis da empresa, mas foi ignorada à época, até ser substituída pela PwC.

Considerando que os dados estavam à disposição, e que a fraude foi deliberada, pois até contratos falsos foram feitos, não se pode ignorar certa conivência do Conselho Fiscal, e dos próprios bancos fomentadores, por trás do grupo. Inobstante as instituições financeiras estejam, agora, em uma posição de vítima da fraude, pois as maiores prejudicadas, elas poderiam ter sido mais diligentes na análise da credibilidade das informações fornecidas pela Americanas, na hora da concessão de créditos e empréstimos.

Todavia, a maior vítima de toda essa fraude é a confiança do mercado. A Americanas era um grande alicerce do varejo nacional, sendo capaz de fazer frente a gigantes do ­e-commerce, como a Amazon. Porém, essa fraude mancha a economia nacional, e põe em dúvida a credibilidade do mercado brasileiro.

As instituições de controle, em especial, a Comissão de Valores Mobiliários, estão em xeque. Agora, são obrigadas a reagir com muito rigor frente à gravidade das denúncias que vieram a público, como uma forma de mostrar que o Brasil está pronto para lidar com esse tipo de denúncia, e recuperar a confiança dos investidores e dos próprios bancos.

Diante desses fatos envolvendo a Americanas, impossível não lembrar do caso da gigante estadunidense Enron, que abalou a economia dos Estados Unidos da América, no início dos anos 2000. A Enron foi a empresa do momento, no início do século XXI: uma grande corporação sediada no Texas, que começou no setor de energia elétrica e gás natural, e não parava de crescer e render lucros exorbitantes.

Contudo, em 2001 veio à tona uma série de fraudes contábeis, que fantasiavam os lucros do grupo, tornando toda a riqueza falsificada. Basicamente, no caso Enron foi utilizado de um sistema chamado “fraude controlada”, em que os executivos fraudaram lançamentos contábeis, em prejuízo de outras empresas do setor, manipulando dados financeiros internos e externos.

A fraude consistia em criar um labirinto contábil em que se disfarçava a real condição financeira da empresa. Assim, a empresa criava uma espécie de “sociedade de propósito específico”, que permitia lançar apenas o lucro projetado, sem a despesa, haja vista que o custo ficaria no registro da SPE, e o lucro viria para a matriz. Ao invés de registrar os ganhos e perdas imediatos, a Enron se limitava a trabalhar com lucros projetados, na casa dos bilhões.

Fechando a manobra, a Enron buscava remunerar seus executivos e acionistas com ações, ao contrário de dinheiro. Todos viam isso com bons olhos, como uma forma de atrair os melhores players do mercado, pois ninguém se negaria ser dono de parte da Enron, uma das empresas mais lucrativas dos anos 90. Contudo, era um “castelo de cartas”, e quando os lucros projetados em longo prazo não chegaram, a empresa desabou, levando junto consigo, quase todo o sistema financeiro dos Estados Unidos da América do Norte.5

Esse caso repercutiu muito, porque Wall Street confiava, em demasia, no potencial da Enron para a credibilidade do mercado norte-americano. O susto causado foi tão grande, que o Congresso dos Estados Unidos se viu obrigado a aprovar a Lei Sarbanes-Oxley (apelidada de SOX), de 2002, que criou complexas estruturas auditorias e governança corporativa, a fim de evitar novas fraudes desse tipo.

O caso Enron é tão curioso e emblemático que rendeu um documentário sobre o mesmo: ENRON – Os mais espertos da sala (The smartest guys in the room), disponível a plataforma de vídeos youtube.6 Interessante é o nome dado para o programa, tendo em vista que, de fato, os idealizadores da fraude da Enron se achavam mais espertos que todos os demais, diante da engenhosidade das manobras contábeis para fraudar os lucros e dividendos, e a alta remuneração dos executivos.

Esse paralelo demonstra como as medidas de ESG e compliance transcendem os limites das empresas. Quando o mercado começa a exigir boas práticas de governança, é pelo bem de toda a economia, que cada vez mais demanda transparência e seriedade desses grandes grupos econômicos. Caberá a CVM mostrar que o mercado brasileiro está preparado para coibir esse tipo de prática, servindo de exemplo para que nunca mais se repita.

 

Referências

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1. site.

2. site.

3. site.

4. site.

5. SULLIVAN, Brandon A. Corporate-financial crime scandals A comparative analysis of the collapses of Insull and Enron. In. BARAK, Gregg. The Routledge International Handbook of the Crimes of the Powerful. Oxon e New York: Routledge, 2015.

6. site.

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