A Lei Federal 12.846/20131 fez seu aniversário de 12 anos no último dia primeiro de agosto. A Lei nasceu de um impulso em favor da transparência nas relações entre o Poder Público e empresas privadas, bem como decorrente de sucessivos escândalos de corrupção, que marcaram o Brasil ao na década de 90 e anos 2000, destacando-se o caso “Mensalão”.
Porém, a legislação realmente ganhou força com a “Operação Lava Jato”, que pôs em xeque muitas práticas corruptivas e controversas que marcavam a relação entre a Petrobrás e empresas gigantes do setor da construção civil e óleo e gás no Brasil e no mundo. Foi na onda da “Lava Jato”, que a Presidenta Dilma, já pressionada pela possibilidade do impeachment, aprovou o seu primeiro Decreto regulamentador, o n. 8.420/2015, que veio a ser substituído pelo Decreto n. 11.129/2022,2 vigente até hoje.3
A Lei Anticorrupção é uma legislação que ainda não conseguiu sua plena vigência, muitas lacunas demoraram para ser preenchidas pelo Decreto, que levou quase dois anos para ser publicado, bem como é uma legislação que incomoda uma classe política dominante e uma elite empresarial, que ostenta muita influência no governo, e acabam sabotando sua plena aplicabilidade. Nesses doze anos de vigência, ou seja, a lei está entrando na adolescência, muitos debates foram travados, mas não se vê a legislação tendo sua plena eficiência, ainda.
O Superior Tribunal de Justiça, recentemente, julgou um caso interessante sobre a compatibilidade das sanções da Lei Anticorrupção e da Lei de Improbidade Administrativa,4 no julgamento do Resp n. 2.107.398/RJ:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INEXISTÊNCIA. LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E LEI ANTICORRUPÇÃO. UTILIZAÇÃO CONJUNTA. POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DO NON BIS IN IDEM. VIOLAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. 1. Não há violação ao art. 1.022 do CPC quando o órgão julgador, de forma clara e coerente, fundamenta adequadamente sua decisão, enfrentando as questões essenciais ao deslinde da causa, sendo certo que o mero descontentamento da parte com o julgamento desfavorável não caracteriza ausência de prestação jurisdicional. 2. A utilização conjunta das Leis n. 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) e n. 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) para fundamentar uma mesma ação civil não configura, por si só, violação ao princípio do non bis in idem. 3. É possível que as duas legislações sejam empregadas concomitantemente para fundamentar uma mesma ação ou diferentes processos, pois o que não é admissível é a imposição de sanções idênticas com base no mesmo fundamento e pelos mesmos fatos. Caso, ao final da demanda, sejam aplicadas as penalidades previstas na Lei Anticorrupção, aí, sim, é que deverá ficar prejudicada a imposição de sanções idênticas estabelecidas na Lei de Improbidade relativas ao mesmo ilícito. 4. A preocupação com a não sobreposição de penalidades deve ser devidamente examinada no momento da sentença, quando se analisará o mérito e a natureza das infrações, e não na fase preliminar da ação. 5. O art. 30, inciso I, da Lei n. 12.846/2013 reforça a compatibilidade entre os diplomas, determinando que as sanções da Lei Anticorrupção não excluem aquelas previstas na Lei de Improbidade. 6. Recurso Especial desprovido. (REsp n. 2.107.398/RJ, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 18/2/2025, DJEN de 24/2/2025.).
A discussão é relevante, porque analisa a possibilidade da imputação concomitante de condutas ilícitas previstas tanto na Lei de Improbidade Administrativa, quanto na Lei Anticorrupção, visto que isso pode induzir ao bis in idem. Inicialmente, é vedado pelo ordenamento jurídico a aplicação de duas penas, pelo mesmo fato, diante da redação do art. 8º, item ‘4’, do Pacto de San José da Costa Rica.
Contudo, dentro do microssistema anticorrupção no Brasil, é possível que a conduta seja ao mesmo tempo improbidade administrativa, ato contra a administração pública e crime, sendo plenamente possível punições de natureza diversa, em razão do mesmo fato. Esse entendimento, em torno da independência das esferas, é bem sedimentado na jurisprudência nacional.
A priori, o eventual conflito entre normas é resolvido pelo próprio art. 3º, §2º, da Lei de Improbidade Administrativa: “§ 2º As sanções desta Lei não se aplicarão à pessoa jurídica, caso o ato de improbidade administrativa seja também sancionado como ato lesivo à administração pública de que trata a Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013.” Mas, esse é somente no caso de aplicação de sanção, não no caso de abertura do processo.
Por outro lado, o art. 30, I, da Lei Federal n. 12.846/2013, não impede a aplicação de sanções da Lei de Improbidade Administrativa, junto com as punições previstas no na LIA: “Art. 30. A aplicação das sanções previstas nesta Lei não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de: I – ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992”.
O Superior Tribunal de Justiça deu uma solução interessante para o caso concreto, afirmando que é possível a dupla imputação (LIA e LAC), porém, a compatibilidade entre as punições deve ser analisada no âmbito da sentença, em cognição plenária. Ou seja, pode ser oferecida a ação cível tratando as duas legislações conjuntamente e, somente ao final do processo, deve ser discutida a compatibilidade de eventuais punições.
Daniel Chierighini Barbosa, em artigo publicado no Portal de Notícias CONJUR[v], traz uma importante provocação em torno desse julgamento no STJ. Apesar de ser correto o entendimento do STJ, em relação a necessidade de resolver em sentença a compatibilidade entre as punições, as leis possuem regimes de responsabilidade diversos, que vão dificultar o desenvolvimento do processo: “Daí que o verdadeiro dilema deste caso recai sobre a diferença fundamental da configuração do regime de responsabilidade entre ambas as leis: de um lado, a responsabilidade subjetiva da LIA, de outro, a responsabilidade objetiva da LAC. Verificar ou não o dolo (elemento subjetivo), enquanto requisito dogmático para a configuração da responsabilidade, conduz a dois caminhos probatórios praticamente inconciliáveis.”.
O Superior Tribunal de Justiça abriu um caminho para uma dupla imputação alternativa. É como se o órgão acusador, Ministério Público principalmente, pudesse dispor de duas alternativas para a condenação do acusado: de um lado, tem a opção de buscar a responsabilidade subjetiva da LIA, e conduzir toda a instrução processual nesse sentido; ou, se o caso estiver muito difícil, ir atrás da responsabilização objetiva da LAC. Isso tornaria o processo em um rito de erro e acerto, em que a cada tipo de imputação, vai se tentando algo diferente.
O STJ ficou longe de solucionar a questão, em especial, sobre como compatibilizar o art. 3º, §2º, da LIA, com o art. 30, I, da LAC, que dizem coisas completamente diferentes – o ideal seria o legislador solucionar isso, ajustando os artigos de forma sistêmica.
Porém, esse pode ser um convite a um debate um pouco diferente, que pode ser travado no âmbito de uma política nacional de combate à corrupção. Uma linha comum que assemelha os grandes casos de corrupção, como o “Mensalão”, “Operação Sanguessuga”, “Operação Lava Jato” e o recente escândalo do INSS, por exemplo, é que, em primeiro lugar, eles não deveriam ter acontecido. As consequências da “Operação Lava Jato” foram nefastas para a economia e a política nacional, criando, inclusive, um cenário de corrosão da democracia. A recente fraude do INSS somente prejudicou aposentados e os cofres públicos, que pagaram a conta do valor subtraído e da devolução aos idosos que foram enganados, sem punição aos responsáveis em um horizonte próximo.
O Brasil, de certa forma, incorporou de uma maneira um tanto equivocada a Lei Anticorrupção e compliance. Esses instrumentos são focados na prevenção a ilícitos contra a Administração, pelo motivo que eles não podem acontecer. Assim sendo, ao contrário da Lei de Improbidade Administrativa e da legislação penal, a LAC deveria ter uma eficácia maior antes da ocorrência do fato corrupto, e não esse foco na “responsabilização da pessoa jurídica” e punição. Do jeito que o novo instituto ingressou no Brasil, obviamente que ele acabaria redundante em relação à Lei de Improbidade Administrativa.
Os programas de compliance devem ser estruturas internas com várias ferramentas disponíveis, para impedir que pessoas jurídicas pratiquem diretamente, ou sejam instrumento, de atos ilícitos contra a administração pública. O foco é a prevenção, não a punição. Dessa forma, o descumprimento da Lei Anticorrupção deve ser tratado como uma agravante nas punições criminais e na improbidade administrativa; ao mesmo tempo em que, um programa de compliance forte, que colabore com a apuração e prevenção dos atos ilícitos, possa servir de atenuante ou até como uma excludente de culpabilidade/tipicidade da conduta.
Por exemplo, uma grande corporação multinacional do setor de mineração passa a explorar uma jazida de minério no Brasil. É feito todo o processo de licenciamento e implantação de operação, porém, durante a exploração, descobre-se que, a fim de viabilizar a licença ambiental, foi pago um valor a título de propina a um fiscal.
Assim, tem-se dois cenários: 1) diga-se que a empresa tem um programa de compliance forte, que apurou essa situação, descobriu o verdadeiro responsável, suspendeu as operações e encaminhou um relatório aos órgãos competentes para eventual responsabilização; essa empresa deve ser premiada por essa conduta, não deve sair isenta de qualquer responsabilidade, porém é preciso dar algum benefício legal por ter adotado uma conduta transparente e honesta, de acordo com a Lei Anticorrupção; 2) o outro cenário é o qual uma empresa, desprovida de qualquer programa de compliance é descoberta no meio de um esquema de compra de licença ambiental; essa empresa deve ser punida tanto pela conduta de “comprar” o fiscal com a propina (corrupção ativa), com a agravante de não ter nenhuma estrutura anticorrupção com a finalidade de impedir e prevenir práticas dessa natureza. Nesses casos, a Lei Anticorrupção e a Lei de Improbidade Administrativa teriam espectros de incidência de diversos: a primeira puniria a falta da prevenção, do zelo pelo cumprimento da legislação; a segunda se focaria na punição pela conduta ilícita e eventual reparação dos prejuízos. Dessa forma, se ajustaria a compatibilidade entre as legislações.
Portanto, é prudente que o legislador avançasse no microssistema anticorrupção brasileiro, e criasse essas zonas limites entre a prevenção de práticas ilícitas e a punição em razão de atos praticados contra a administração pública. Dessa maneira, será possível dar uma solução melhor para o conflito, que não é somente aparente, entre a LAC e a LIA.
Referências
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