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Direito é Ciência?

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A pergunta se o Direito é ou não uma ciência me veio como tema, em razão do burburinho gerado após a divulgação do livro Que bobagem – pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério, de autoria da microbiologista Natalia Pasternak e do jornalista e escritor Carlos Orsi.

Confesso que ainda não tive a oportunidade de fazer a leitura, mas a questão lançada já no título, além de ser provocante, acende um alerta acerca do que permite-se compreender como ciência no ambiente acadêmico e especialmente no cenário macrossocial, onde o saber científico moderno, por vezes é esvaziado por vieses e crenças, por vezes é utilizado como selo de autoridade e credibilidade.

Sem querer percorrer a discussão acalorada que referida obra vem causando, sobretudo no que concerne a psicanálise e a acupuntura, percebe-se, ao menos a título de provocação, que trazer esse debate interrogativo ao Direito é mais do que necessário. Numa sociedade como a nossa, em que os títulos ainda valem mais do que o conhecimento apreendido pelos livros, pelas teorias e pelas experiências, falar em ciência é remeter a um discurso rebuscado, muito distantes do cotidiano, reservado aos círculos acadêmicos.

Em que pese com a pandemia, isso ter mudado, em certa medida, haja vista que a palavra de ordem se tornou a ciência, sendo o apelo a ela uma maneira de combater o infeliz e ignorante negacionismo, vê-se hoje um conceito esvaziado, algo que ainda só diz respeito aos cientistas. Basta sair à rua e permitir-se enxergar na ordinariedade da vida que o saber cientifico, a ciência em si mesma, participante das nossas vidas, passa despercebida.

A ciência e o deslumbramento pelo mundo há muito tomaram caminhos opostos. De um lado a ciência se enclausurou nas faculdades e nos grandes laboratórios, e o de outro, o deslumbramento acerca do mundo, acerca da física, da química, da biologia, e mesmo sobre a linguagem matemática, se empobreceu, e por consequência deu cada vez mais espaço ao obscurantismo, à crenças fundamentalistas, aos demônios que Sagan um dia quis nos alertar.

A ciência se recrudesceu e foi se tornando compacta a ponto de nem cogitar como hipótese o que está além, o que não necessariamente, para constituir-se enquanto conhecimento, implica em evidência suscetível à testificação, à falseabilidade popperiana.

A influência de Karl Popper, filósofo do século XX, é notória, tendo ele demarcado um caminho para a ciência, conferindo a ela um rigor metodológico dirigido a objetividade, ou ao menos a evidência mais forte, mais adequada, a evidência que melhor se sustenta quando confrontada com argumentos e conjeturas adversárias. Sob essa premissa a ciência, ao que parece, passou a recusar aquilo que não é passível de ser aferido por critérios objetivos, a não ser quando se trata da ciências da natureza, o que é sem dúvida coerente.

Todavia, legar a ciência a uma noção restritiva, pautada tão somente no que pode ser posto à prova, ao teste laboratorial, é desconsiderar todo um percurso de aprendizado humano, é desfazer-se da episteme, ideia primitiva e mais englobante quanto se fala em conhecimento. Só através de tal noção é que se permite figurar o Direito como ciência, uma ciência social aplicada, que se situa e se formula na constância das relações humanas.

Não obstante, falar em conhecimento, e mais modernamente em ciência nessa acepção, não é o mesmo que assentir com a arbitrariedade, com a falta de uma mínima objetividade. Muito pelo contrário, desde os gregos, o processo de concatenação de ideias e por conseguinte de externar conceitos, para se fazer valer, ao menos de forma democrática, deve atender a uma generalidade, de maneira robusta e coerente.

Tendo isso em vista, quando se volta para o estudo do Direito na contemporaneidade, verifica-se que tal ciência deve cada vez mais perseguir a racionalização de conceitos e a demarcação do movimento hermenêutico.

Mais precisamente, em se tratando de um Direito postulado no Estado Democrático, como é o caso brasileiro, não pode se deixar subtrair por conceitos abertos, vontades sociais, ou mesmo por um ideal de melhor interesse do povo, externado por uma autoridade judicial ou política.

Rosemiro Pereira Leal, em sua teoria neoinstitucionalista, é um dos poucos que defendem perspectiva alinha a essa posição, em que se pensa o Direito, não como instrumento de “operadores” alienados, mas como processo de construção democrática do sentido jurídico.

É nesse rumo que o Direito deve percorrer a linha de um cientificismo mais rigoroso, mas pormenorizado, suscetível ao contraditório. O pôr a prova, ganha um realce mais abrangente, mais adequado ao confronto de ideias e teses, e não propriamente de resultados obtidos em laminas de laboratório.

Ainda que influenciado em certa media pelo o que Popper um dia concebeu como científico, há outras questões em jogo, que fogem do ambiente da pura evidência, não podendo o Direito ser confundido com ela. Além de assentar-se em bases lógicas dirigidas ao discurso, o Direito imprescinde da adesão de seus destinatários, dos profissionais que lhe utilizam no dia a dia , quais sejam, advogados e juízes, assim como daqueles que o produzem.

Não trata-se de um simples assentimento, mais de um conhecimento isonômico, que ao mesmo tempo o viabiliza, posto que é admitido como válido e por consequência eficaz. Diferentemente da lei da gravidade, a qual é atestada pelo método científico da evidência, o Direito é antes de tudo um processo assegurado pela horizontalidade com a qual é estabelecido e assimilado.

Respondendo então a pergunta que abriu o texto de hoje, o Direito sim, é ciência, é ilustração, é conhecimento, em que pese tal concepção não ser a tópica jurídica brasileira. É preciso ilustração, esclarecimento e deslumbramento cientifico, para que se possa perceber o Direito para além de um amontoado de regras limitantes, de princípios e valores indeterminados. É preciso atenção a técnica, ao método, e principalmente a uma hermenêutica democrática, transparente, que rejeite as teses obscuras e rebuscadas, e acolha as teses mais resistes frente as hipótese, as interpretações e as situações cotidianas.

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