Dando continuidade ao texto anterior, parte 1, o qual se prestou a trazer não só a característica da universalidade dos direitos humanos, mas também uma análise filosófica da abrangência de tais direitos, me dirijo hoje a trabalhar ainda a referida qualidade, contudo para além do escopo humano.
Pode soar contraditório, falar de direitos humanos fora da noção do especismo, porém parece ser uma tendência, sobretudo quando se coloca em pauta as questões climáticas e as que envolvem a natureza como um todo, ampliar o conceito desses direitos.
Não é de hoje, que questões envolvendo o planeta Terra, e todos os seres vivos que nela vivem, são debatidas em âmbito nacional e internacional. Desde o pós segunda Guerra Mundial, mas principalmente, pós Conferência de Estocolmo, muitos são os países que passaram a se preocupar com a natureza, os ecossistemas, e a fauna e flora que compõe os mais variados biomas do planeta.
Falar então em Direitos Humanos, na contemporaneidade, é também falar de direitos que ultrapassam a qualidade de humano. Como bem delineado na parte 1, deixei bem claro que é preciso ter cautela quando se remete como pressuposto para ser sujeito de direitos, o reducionismo anatômico e biológico. Ao trabalhar a perspectiva de Arendt, foi possível suscitar que o “ser” humano, não é pura e simplesmente um dado natural, objetivo, uma vez que também é conceito.
Sendo conceito, não é forçoso ampliar a noção de Direitos Humanos, para uma perspectiva conservacionista, sobre tudo em se tratando de dignidade, bem-estar, vida e existência. Apoiado no que discorre Hans Jonas, em sua obra “O princípio responsabilidade – Ensaio para uma ética para a civilização tecnológica” permite-se desenvolver essa noção ainda mais universalista dos Direitos Humanos, perpassando a natureza, enquanto essência e enquanto existência física.
Nesta obra, Jonas inicia apontando que desde a antiguidade, especialmente em se tratando da cultura ocidental, o homem cindiu-se da natureza. Com o advento, ou melhor, com a criação da cidade, dois mundo surgiram, o da pólis, e o da natureza. A natureza ainda nessa época concebida como deidade, que tudo provê, que é auto sustentável, possuidora de recursos infindáveis, promoveu sobre o cidadão grego, a ideia de essa não carecia de sua atenção em matéria de cuidado e preservação. A ética então, elaborada e estabelecida no microcosmo humano, restringiu-se ao homem e à relação e interação com seus iguais.
Desde esse marco histórico, até Kant, a ética se manteve alheia a relação homem-natureza, uma vez que, o desenvolvimento civilizatório perpetuou-se sob a lógica de recursos ilimitados da natureza. A reviravolta paradigmática quando a essa perspectiva se deu já quase no final século XX, anos 70 em diante, na proporção da dinâmica globalizante que foi se sedimentando. Na tendência de aproximação das várias das muitas tribos e sociedades do globo, passou a dar importância a questões de repercussão não só a nível nacional, mas internacional, como por exemplo o aquecimento global. Em que pese Jonas, não foque nesse problema, o qual é um dos mais alarmantes e de grande preocupação mundial, seu pensamento convergente para a temática enquanto proposta de solução.
Ao pensar uma nova ética, a qual alarga o antropocentrismo, e ao mesmo tempo alcança a acepção biocêntrica, Jonas traz à discussão aqui levantada, a necessidade de ampliação da dimensão e do alcance dos direitos humanos, podendo serem estes, mediante um exercício hermenêutico, lançados a outros seres, sejam eles animados ou inanimados. Ainda que possa parecer inadequado colocar em uma mesma frase seres e inanimados, proponho, a partir de Jonas, também construir aqui uma ideia de direitos ou ao menos de atribuição de direitos, a determinadas coisas, pelo simples fato de existirem e cumprirem um papel na teia da vida.
Isso faz sentido em se tratando da ética proposta por referido filósofo, pois, ao ultrapassar a noção exposta e firmada por Kant, quando esse fala de imperativo categórico, acaba por sair do logos humano, e apreende a ideia de casa comum, de (eco) sistema, de interdependência entre a vida e a natureza.
Daí, coerente se falar em direitos da natureza, até mesmo a nível constitucional, como foi o caso da Constituição da Bolívia, fundada no ideal de “Pacha Mama” e principalmente a Constituição do Equador, promulgada em 2009, a qual estabeleceu a natureza enquanto sujeito de direitos.
Muitos são os críticos dessa linha jurídica, e porque não, também filosófica, que rompe o paradigma antropocentrista. Confesso que eu mesmo tenho dificuldade de compreender um rio, uma árvore, e até mesmo animais não-humanos enquanto sujeito de direitos. Todavia, vale a reflexão quanto esse nova apreensão ética e do próprio Direito, à medida que a convergência entre Sapiens e physis, é, até o presente momento, o caminho mais viável, senão o único para a sobrevivência não só de nós, mas também das demais espécies e do meio-ambiente tal qual o conhecemos.
Tal ponto, faz rememorar o princípio da solidariedade intergeracional, presente na obra de Jonas, visto que provoca nas gerações futuras o despertar de um responsabilidade implicada no agora, voltada a mantença de boas condições de vida, a nível biológico, fisiológico e psicológico, não só no que diz respeito a humanidade, mas a todos os entes que cobrem de vida o planeta Terra.
É de suma importância, pensar no agora, a possibilidade de ampliação dos direitos humanos, no sentido de coadunar com a noção de meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem preceitua a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 225, caput.
Logo não é nenhum absurdo falar em direito à vida, à liberdade, e principalmente à dignidade de outros seres. Muito se percebe movimento nesse sentido, quando se fala em Direitos dos Animais, em especial os animais domésticos.
Está se tornando cada vez mais corriqueiro o ajuizamento de ações que pleiteiam a guarda de animais, pensão alimentícia para esses, e até mesmo ações requerendo indenização à título de danos morais. Além da grande repercussão de tais causas, essas reverberam intensamente no mundo jurídico, seja nos aspecto material, seja no aspecto formal.
Quanto a isso, é preciso tomar cuidado, sob pena de levar o debate para uma questão de pura conveniência, tratando com indiferença todo uma biodiversidade, seja por desconhecimento, seja pelo não reconhecimento da interdependência entre espécies e os meios que habitam.
Mas voltando ao cerne da questão aqui abordada, a qual toca a universalidade dos Direitos humanos, e também já finalizando, não deixa de ser razoável, considerando a atual conjuntura ambiental do Planeta, pensar tais direito como extensíveis a outros seres não-humanos, sejam eles animados ou inanimados, uma vez que faz-se necessário e urgente, a retomada do ethos enquanto sinônimo de casa comum, onde o particular e o todo mantem o mutualismo e o equilíbrio propícios a coexistência e a existência.
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Referências
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ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 300-336
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver – uma oportunidade para imaginar outros mundos. elefante editora [e-book]