Direitos humanos e empresas: o papel do setor privado na defesa da democracia

Direitos humanos e empresas: o papel do setor privado na defesa da democracia

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A contemporaneidade vem mostrando que o sistema democrático experimenta disfunções imprevistas pelo pensamento do constitucionalismo liberal clássico. A essa altura da história, resta evidente que o pensamento político errou quando imaginou que as democracias constitucionais não poderiam implodir, convertendo-se “democraticamente” em autocracias.1

Nesse cenário, líderes populistas e autoritários, que se apresentam como messias aptos a resolver “tudo isso que está aí”, ou a fazer seus países voltarem a ser “great again”, mobilizam afetos e se colocam como agentes autoritários que desconhecem limites constitucionais à sua própria atuação. Invocam o sistema eleitoral e o amplo apoio popular para “legitimar” suas ingerências desmedidas, mas a verdade é que esse grande apoio das massas é construído através de estratégias problemáticas, como a disseminação de mentiras através de mecanismos que se valem dos algoritmos e das redes sociais para espalhar o ódio.

Assim, surge a necessidade de conter a difusão do discurso. A organização do debate público é uma demanda urgente, posto que passa a ser relativamente comum que líderes populistas mobilizem afetos se valendo de fake news, manipulando a opinião pública e criando a ambiência para sua posterior autocracia.

Essa situação convoca setores do universo privado à missão de regular o debate ambientado em setores da sociedade civil. Nesse sentido, é interessante analisar o caso da rede social Facebook, que tem operado procedimentos e medidas para combater a disseminação de mentiras nas postagens da plataforma. Anderson Schreiber comentou, em ensaio, o caso em que a rede social excluiu 196 páginas e 87 perfis falsos ligados ao Movimento Brasil Livre (MBL), em 2018, por disseminação de inverdades, com possível intuito de influenciar a disputa eleitoral daquele ano.2

O Facebook justificou sua medida, argumentando que a autenticidade é importante no ambiente virtual, e que a identificação dos autores dos conteúdos divulgados na rede protege a todos os usuários, além de permitir a responsabilização pelas informações divulgadas. Ou seja, não há falar em conteúdo apócrifo nas redes sociais. Contas fake não podem clamar por liberdade de expressão, pois o conteúdo anônimo não goza de proteção, violando as diretrizes da empresa.

Essa é uma situação interessante, que ilustra o papel que o setor privado deve exercer em defesa da democracia. Afinal, na chamada era da pós-verdade, em que “os fatos influenciam menos a opinião pública do que apelos à emoção ou às crenças pessoais”,3 é preciso que se tenha controle sobre o que é veiculado nas redes sociais, para se coibir a desinformação desenfreada e a massificação da mentira, que tanto prejudicam a saúde das democracias nos tempos atuais.

Evidentemente, esse controle não deve descuidar das garantias fundamentais dos usuários: os agentes que têm sua atividade restrita nas redes devem gozar de alguma forma de defesa e contraditório, garantias constitucionais inafastáveis – inclusive em procedimentos privados.

Em todo caso, o fato é que setor privado deve ter destaque nessa missão de combater fake news e outras estratégias de manipulação da opinião popular, devendo inclusive esforçar-se na elaboração de diretrizes que reforcem o seu comprometimento com a afirmação dos direitos humanos.4

Assim, não resta dúvidas: o setor privado precisa ser convocado à missão de controlar o que é lançado nas redes sociais. O binômio “direitos humanos e empresas”, que vem ganhando espaço no debate acadêmico, não deve se limitar à defesa do incremento do terceiro setor. Deve ser um vetor de fortalecimento da responsabilidade social das empresas, inclusive no que diz respeito à pauta democrática.

Especificamente sobre as empresas que articulam as redes sociais, o “engajamento” inerente a essas redes deve ser colocado em outra perspectiva, para que as próprias empresas articuladoras das plataformas atentem para o dever de se “engajarem”, elas mesmas, no combate à desinformação e às fake news.

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Hermano Victor Faustino Câmara

 

Referências

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1. SCHEPPELE, Kim Lane. The opportunism of populists and the defense of constitutional liberalism. German Law Journal, 20(3), 314-331. doi:10.1017/glj.2019.25, 2019.

2. SCHREIBER, Anderson. Redes Sociais, Perfis Falsos e Liberdade de Expressão. In: Jornal Carta Forense, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3DyMlH4. Acesso em: 12 jan. 2021.

3. SIEBERT, Silvânia; PEREIRA, Israel Vieira. A pós-verdade como acontecimento discursivo. In: Linguagem em (dis)curso. vol. 20 n. 2. Mai/Ago 2020,  Epub/Scielo.

4. SANTANA, Anna Luisa Walter de; PAMPLONA, Danielle Anne; SANTARELLI, Nicolás Carrilo. Empresas e derechos humanos: las contribuiciones del Sistema Interamericano de derechos humanos para la proteccióna libertad de expressión en internet. In: PAMPLONA, Danielle Anne; FACHIN, Melina Girardi (coord.); BOLZANI, Giulia Fontana. Direitos Humanos e Empresas. Curitiba: Editora Íthala, 2009, p. 115.

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