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Discussões sobre a aplicação das bases legais para crianças e adolescentes

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Por normalizarmos a utilização de cada vez mais dados em várias atividades esquecemos que, nesse processo, são impactadas crianças e adolescentes. Seja na coleta de dados para utilizar redes sociais, atendimentos médicos online, cadastro em escolas por meio de plataformas, entre tantas outras atividades, informações das mais variadas são cedidas para utilizar esses serviços.

Para um tratamento correto de dados os agentes de tratamento devem respeitar tanto os princípios do art.6º como as bases legais previstas nos arts. 7º e 11. Elas funcionam como autorização para o tratamento, demonstrando aos titulares a razão deste. Assim, caso seja identificado que o dado em si se encaixa na definição de dados sensíveis do art.5º, II da LGPD, serão utilizadas as bases do art.11. Do contrário será remetido ao art.7º.

Ocorre que em nossa legislação a proteção da criança e do adolescente também é contemplada na LGPD, especificamente no art.14º e seus parágrafos. Justamente nela não há indicação expressa, além do consentimento para crianças, quais bases devem ser utilizadas. A disposição interpretativa que pode nos auxiliar está na doutrina do melhor interesse, disposta no caput do art.14.

Justamente pela falta de delimitação normativa e pelo risco de divergência entre agentes de tratamento, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados abriu Tomada de Subsídios em 2022 sobre esse tema1. Não só permitiu essa possibilidade, mas também elaborou um estudo preliminar para discussão do tema2. Nele são elencadas três possibilidades para o tema: i) utilizar apenas o consentimento previsto no art.14; ii) utilizar as bases legais do art.11; iii) utilizar as bases legais do art.7º.

Pela construção dos argumentos parece que a autoridade dá menos importância à primeira hipótese, vê pontos positivos na segunda, mas elege como a melhor interpretação a terceira, referente às bases do art.7º. No final do documento é proposto um enunciado, segundo o qual

O tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes poderá ser realizado com base nas hipóteses legais previstas no art. 7º ou, no caso de dados sensíveis, no art. 11 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), desde que observado o seu melhor interesse, a ser avaliado no caso concreto, nos termos do caput do art. 14 da Lei.

Essa interpretação não é unânime, resultando na manifestação de alguns atores sociais e institutos sobre o tema.

O InternetLab apresenta posicionamento pela aplicação das bases do art.11. Em seu entendimento há bases no art.7º flexíveis demais para serem aplicadas a uma faixa etária que necessidade de proteção diferenciada, especialmente por estar em fase de desenvolvimento. Para tanto trazem ao debate o caso da proteção ao crédito e do legítimo interesse, as quais “ficariam submetidas à discricionariedade interpretativa dos agentes de tratamento, o que se colocaria em oposição às exigências do melhor interesse da criança, que deve ser colocado prioritariamente em relação aos interesses de controladores e operadores de dados pessoais”3.

Nesse sentido também é o posicionamento da Associação Data Privacy Brasil. Em sua contribuição para a tomada de subsídios, reforçam também que o legítimo interesse é uma base que privilegia os interesses do controlador em detrimento do titular e enfatiza que a proteção de crianças e adolescentes “deve ser tomada de forma precaucionaria e preventiva a violações de direitos desses sujeitos, e nunca posteriormente à ocorrência de danos, de forma reparativa”4. Nesse ponto relembram o caso de 2022 em que o Meta foi multado em vultuosa multa pelo EDPB por se utilizar do legítimo interesse indevidamente5.

Ainda destaca que pela forte ligação dos dados pessoais sensíveis com a proteção contra discriminação, poderia se alcançar a uma proteção satisfatória dos dados de crianças e adolescentes, pois o objetivo seria a proteção de sujeitos vulneráveis6.

De fato, tanto a categoria de dados sensíveis e os dados de crianças e adolescentes demandam proteção diferenciada, as quais não passaram despercebidas pelo legislador. Contudo deve se levar em conta que poderemos estar colocando como equivalentes proteções a situações distintas.

A lógica interpretativa dos dados sensíveis é primordialmente uma postura antidiscriminatória e, nesse ponto, Stefano Rodotà alertava que para essa categoria a questão não é a esfera privada, mas a esfera pública, referente a posição do indivíduo na organização social, política e econômica. Portanto, “mais que de tutela da privacidade, nestes casos deve falar de defesa do princípio da igualdade”7. Assim há um reconhecimento de assimetrias na sociedade que pode não só ser evitada, mas combatida mediante um tratamento adequado de dados sensíveis.

Por outro lado a situação de vulnerabilidade de crianças e adolescentes se deve pelo seu estágio de desenvolvimento, limitando-a a exercer alguns atos da vida civil por não possuírem completo discernimento. Essa proteção as coloca em posição preferencial em vários aspectos e impele vários agentes sociais, privados e públicos, a agirem com fim de protegerem essa faixa etária.

O risco nessa equiparação é não proteger tão fortemente os dados sensíveis de crianças e adolescentes, pois ao invés de obter um regime duplo de proteção, caracterizado pelo melhor interesse, proteção integral e prioridade absoluta8 dessa faixa etária somado o art.11 da LGPD, teríamos ao final disposta essas bases legais. Nesse sentido Elora Fernandes e Filipe Medon enfatizam que se perde a oportunidade de criar uma camada extra de proteção nessas situações hipersensíveis9, pois discriminações envolvendo dados de religião e biometria, por exemplo, podem causar mais danos às crianças e adolescentes quando comparado aos adultos.

Sob esse aspecto, ainda que sejam pertinentes os argumentos quanto a algumas bases do art.7º, especialmente o legítimo interesse por se tratar de uma base flexível e mais favorável aos agentes de tratamento, uma equiparação entre dados sensíveis e de crianças e adolescentes pode não ser tão satisfatório à sua proteção.

 

Referências

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1. ANPD. Aberta Tomada de Subsídios sobre Tratamento de Dados Pessoais de Crianças e Adolescentes. 08 set. 2022. Disponível em: https://bit.ly/40k7KzM.  Acesso em: 25 mar. 2023.

2. ANPD. Estudo Preliminar: Hipóteses legais aplicáveis ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. 2022. Disponível em: https://bit.ly/42IyEmt. Acesso em: 22 mar. 2023.

3. INTERNETLAB. Contribuição à Tomada de Subsídios da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD): Tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes. 2022. Disponível em: https://bit.ly/42EYdF8. Acesso em: 25 mar. 2023.

4. DATA PRIVACY BRASIL. Contribuição à tomada de subsídios sobre o tratamento de dados de crianças e adolescentes da autoridade nacional de proteção de dados. 2022. p. 14.

5. Record fine for Instagram following EDPB intervetion. EDPB.  15 set. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3RdzPDH. Acesso em: 25 mar. 2023.

6. DATA PRIVACY BRASIL. Contribuição à tomada de subsídios sobre o tratamento de dados de crianças e adolescentes da autoridade nacional de proteção de dados. 2022. p. 17

7. RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância: a privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Renovar, Rio de Janeiro, 2008. p.78-79.

8. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RETTORE, Ana Cristina de Carvalho. O princípio do melhor interesse no ambiente digital. In: LATERÇA, Priscilla Silva; FERNANDES, Elora; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; BRANCO, Sérgio (Coords.). Privacidade e Proteção de Dados de Crianças e Adolescentes. Rio de Janeiro: Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro; Obliq, 2021. E-book.

9. FERNANDES, E.; MEDON, F. Proteção de crianças e adolescentes na LGPD: desafios interpretativos. REVISTA ELETRÔNICA DA PGE-RJ, [S. l.], v. 4, n. 2, 2021. DOI: 10.46818/pge.v4i2.232. Disponível em: https://bit.ly/42IyJXj. Acesso em: 25 mar. 2023

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