PROLEGÔMENOS
Continuando a matéria do mês passado, neste mês, vamos passar para a segunda parte dos meus breves comentários sobre o – esquecido por (quase) todos, vale reforçar – procedimento especial “dos bens dos ausentes”.
Aos que não leram a primeira parte do ensaio, recomendo a leitura, visto que abordamos alguns pontos pertinentes para a compreensão do conteúdo da matéria deste mês, como: (1) o objeto (imediato e mediato) do procedimento, (2) a etimologia jurídica da ausência, pressupostos para a declaração de ausente e a diferença entre a ausência (declaração de ausência) da morte presumida (justificação judicial de morte) e (3) os pressupostos do procedimento e a desnecessidade de existência de bens de propriedade/posse do ausente para a proposição da medida.
CURADOR, ORDEM PARA O EXERCÍCIO DO CARGO, PODERES E DEVERES E DEPOSITÁRIO
O termo “curador” deriva do latim curator, de curare. Na etimologia jurídica, trata-se de pessoa que zela por outra ou de seus bens. É figura fundamental para o procedimento de arrecadação de bens do ausente.
Normativas acerca do curador dos bens do ausente estão dispostas entre os arts. 22 a 25 do Código Civil, aplicando-se, também, as disposições sobre o procedimento da herança jacente.
Via de regra, tratando-se de ausente que seja casado, não estando separado judicialmente ou de fato por mais de dois anos antes da declaração de ausência, o legítimo curador será o seu cônjuge. Caso o ausente for solteiro ou viúvo, o legítimo curador dos bens do ausente serão os seus pais ou os seus descendentes, nessa ordem, observando a inexistência de impedimento para o exercício do cargo.
Na hipótese de a curadoria ser exercida por descendente, será observado o grau do parentesco em relação ao ausente, precedendo, os mais próximos, aos mais remotos. Inexistindo cônjuge, ascendente e descendente, o cargo de curador será exercido por pessoa escolhida pelo juiz.
A inexistência de indicação e designação de curador não obsta o trâmite do processo, vez que, nessa hipótese, será designado depositário e, após compromissado, lhe entregue os bens arrecadados, mediante simples termo nos autos (art. 740, § 2º, do CPC).
O curador possuí poderes e deveres (aplicando-se, igualmente, ao depositário compromissado).
Os seus deveres estão dispostos no art. 739 do Código de Processo Civil, sendo eles (1) representação dos bens do ausente em juízo ou fora dele, (2) ter em boa guarda e conservação os bens arrecadados e promover a arrecadação de outros porventura existentes, (3) executar as medidas conservatórias dos bens, sendo ressarcido posteriormente, (4) apresentar mensalmente ao juiz balancete da receita e da despesa, e (5) prestar contas ao final da sua gestão.
O exercício do cargo de curador percebe remuneração fixada, pelo juiz, de acordo com a situação dos bens, o tempo de serviço e as dificuldades para a sua execução (art. 160 do CPC).
Em contrapartida, havendo causado prejuízo (por dolo ou culpa) aos bens sob sua responsabilidade, responderá por eles e perderá a sua remuneração, entrementes, sem prejuízo ao ressarcimento do despendido no exercício do encargo (art. 161 do CPC).
Pode, ainda, o curador, ser responsabilizado na esfera penal pelo prejuízo causado e, inclusive, lhe imputado sanção por ato atentatório à dignidade da justiça (art. 161, parágrafo único, do CPC).
ASPECTOS PROCEDIMENTAIS E PRIMEIRA ETAPA DA ARRECADAÇÃO DOS BENS DO AUSENTE
O procedimento de arrecadação dos bens do ausente possui três fases (ou estágios), sucedidos cronologicamente.
A sua primeira fase consiste na arrecadação dos bens do ausente e na constituição de curador.
Trata-se de procedimento que necessita de impulso oficial por parte interessada, mediante petição endereçada ao último domicílio conhecido do ausente (art. 738 do CPC) ou, na carência dessa informação, subsidiariamente, no foro em que estejam os seus bens (art. 48, I, do CPC), a fim de comunicar a ausência (arts. 22 e 23 do CC).
Diante da matéria do procedimento, será competente, geralmente, a unidade jurisdicional responsável pelo processamento de feitos familiares. Na petição, deverão ser arrolados os bens (quando existirem), os quais poderão ser aditados a fim de ampliar o rol de bens do ausente no caso de descobrimento de algum bem abandonado que não se tinha conhecimento quando proposta a inicial (inexiste preclusão; apenas haverá a retificação do valor da causa para inclusão do valor estipulado desse bem), requerendo a arrecadação e a designação de curador para administrá-los.
Recebendo a petição inicial, considerando a afirmação de ausência feita pelo interessado-proponente, será nomeado curador e determinada a arrecadação dos bens arrolados.
Feita a arrecadação, lavrado auto, será observado o comando de publicações de editais (igual ao da herança jacente) que dispõem o caput do artigo analisado, ou seja, determina-se a publicação de editais na rede mundial de computadores, no sítio do tribunal a que estiver vinculado e na plataforma de editais do Conselho Nacional de Justiça, ou, não havendo sítio, no órgão oficial e na imprensa da comarca, anunciando a arrecadação e chamando o ausente a entrar na posse de seus bens. Os editais serão publicados durante um ano, reproduzidos a cada dois meses.
A partir daqui, existem três possibilidades: (1) comparecer o ausente, cessando-se a curadoria e extinguindo o processo (a regra contida no § 4º, do art. 745, do CPC, apenas será aplicada após a primeira etapa); (2) sobrevier comprovação da sua morte, cessando-se a curadoria e terá início o procedimento de inventário e partilha; ou, por fim, (3) não ocorrer as hipóteses anteriores, podendo-se, qualquer interessado, após esse prazo de um ano, requerer a abertura da sucessão provisória (§ 1º, do art. 745, do CPC). Cá, adentra-se nas etapas subsequentes, a (2) declaração da ausência e abertura da sucessão provisória dos seus bens; e, a (3) declaração de morte presumida do ausente, convertendo-se a sucessão provisória em definitiva.
SEGUNDA ETAPA DO PROCEDIMENTO: SUCESSÃO PROVISÓRIA
Transcorrido o prazo do edital, sem que se saiba da pessoa, sem a constituição de procurador ou representante ou, uma outra hipótese, mesmo deixando representante ou procurador (nesse caso serão três anos, conforme art. 26 do CC), será pedida a declaração de sua da ausência (e a sentença deverá ser averbada, art. 94 da Lei n. 6.015/73 e art. 9º, IV, do CC), podendo-se, assim, requerer a abertura da segunda etapa desse procedimento: a sucessão provisória.
Mesmo que siga as regras da sucessão mortis causa, ela poderá ser extinta a qualquer momento mediante o retorno do ausente.
Nos termos do art. 27 do Código Civil, consideram-se legitimados para requerer a abertura da sucessão provisória: (1) o cônjuge não separado judicialmente; (2) os herdeiros presumidos, legitimados e os testamentários; (3) os que tiverem sobre os bens do ausente direito subordinado à condição de morte; (4) os credores de obrigações vencidas e não pagas – existe, também, a previsão do requerimento poder ser formulado pelo Ministério Público (art. 28, § 1º, do CC) quando não o fizerem os interessados.
Na petição de abertura da sucessão provisória dos bens do ausente, será requerida a citação pessoal dos herdeiros presentes (residentes na comarca) e do curador, e, por edital, dos ausentes (incertos, que se acham em lugar incerto e não sabido ou que residam em outra comarca), a fim de habilitarem-se.
Sobre a habilitação que dispõe o § 2º, do art. 745, do Código de Processo Civil, deve-se observar a forma disposta entre os arts. 687 e 692 do CPC, ou seja, no prazo de cinco dias a contar da juntada do último mandado citatório (art. 690 do CPC) – ou do termo final do prazo do edital –, deverão, os herdeiros, provar sua qualidade e o seu direito.
Protocolada a habilitação, o juiz decidirá o requerimento imediatamente, salvo se esse for impugnado e houver necessidade de dilação probatória diversa da documental, caso em que determinará que o pedido seja autuado em apartado e disporá sobre a instrução (art. 691 do CPC).
Com o trânsito em julgado da sentença acerca da habilitação, a sucessão provisória retoma o seu rito (art. 692 do CPC).
A sucessão provisória inicia-se com a pronúncia de uma sentença que determina a sua abertura, no entanto, cujo efeito apenas surte após cento e oitenta dias depois de publicada. Vez que se transita em julgado a sentença, procede-se a abertura de testamento (se houver) e ao inventário e partilha dos bens.
No entanto, o prazo anteriormente mencionado é para fins da produção dos efeitos da sentença, não se devendo confundir com a possibilidade de arrecadação dos bens do ausente pelo procedimento de herança jacente no caso de não comparecimento de herdeiro ou interessado para requerer o inventário (§ 2º, do art. 28, do CC).
Supondo, agora, que o inventário foi requerido, os herdeiros deverão dar garantias da restituição para a imissão na posse dos bens do ausente, o que se faz mediante penhores ou hipotecas equivalentes ao valor do bem – no caso de não ser possível prestar caução, existem duas situações: (1) se o herdeiro for ascendente, descendente ou cônjuge, provada sua qualidade de herdeiro, não depende de garantias para entrar na posse dos bens (art. 30, § 2º, do CC); (2) sendo pessoa que não se enquadre em uma das condições anteriores, deverá prestar garantia, sob pena de ser excluído e de os bens que lhe caibam continuarem ao encargo do curador que foi designado para administração dos bens do ausente, salvo se decidir, o juiz, que esse bem deverá ser administrado por outro herdeiro do ausente, mediante garantia (art. 30, § 1º, do CC).
Todo aquele que for empossado nos bens do ausente, mesmo em sucessão provisória, será representante (ativo e passivo) do ausente, inclusive podendo, contra eles, correr as ações pendentes e as de futuro que forem movidas.
Por fim, reaparecendo ou provando a existência do ausente, se (1) antes do estabelecimento da posse provisória, a sucessão será extinta, ou, se (2) depois do estabelecimento da posse provisória, cessarão imediatamente as vantagens dos sucessores nela imitidos (inclusive, ficando obrigados a adotar medidas assecuratórias até a entrega dos bens ao seu proprietário).
TERCEIRA ETAPA DO PROCEDIMENTO: CONVERSÃO DA SUCESSÃO PROVISÓRIA EM DEFINITIVA
A sucessão definitiva não é tão complexa em termos procedimentais como a provisória.
Veja-se, após o prazo de dez anos (ou, conforme o art. 38 do CC, se o ausente contar com oitenta ou mais anos de idade, sem que se haja notícias por cinco anos) a contar do trânsito em julgado da sentença que determina a abertura da sucessão provisória, os interessados irão pedir a declaração da morte presumida do ausente e a sucessão definitiva, bem como o levantamento da caução prestada.
Caso, ainda, nesse lapso temporal, tanto o ausente não regressar, quanto algum ascendente ou descendente não promover a sucessão definitiva, os bens arrecadados passarão ao domínio do Município, Estado, Distrito Federal ou União, conforme a sua localização (art. 39 do CC).
RETORNO DO AUSENTE E TRANSMUTAÇÃO DA NATUREZA JURÍDICA DO PROCESSO
Pode ocorrer, também, o retorno do ausente. Anteriormente, viu-se algumas hipóteses dos vieses que o processo deveria tomar se isso ocorrer em alguma de suas etapas.
No caso da primeira fase, pedido para designação de curador para que seja possível a arrecadação dos bens do ausente: se o ausente retornar ou constituir procurador ou representante, a curadoria será cessada e o processo será extinto.
Após o lapso temporal para o pedido de declaração da ausência e abertura da sucessão provisória, retornando o ausente: os seus bens serão restituídos e, caso algum deles tenha gerado rendimentos ou frutos, se ficar provado que a ausência não foi involuntária e injustificada, terá direito a sua parte (art. 33, parágrafo único, do CC).
No caso do retorno (do ausente ou de algum de seus descendentes ou ascendentes) no prazo para a conversão da sucessão provisória em definitiva: haverá os bens existentes no estado em que se acharem (os sub-rogados em seu lugar, ou o preço que os herdeiros e demais interessados houverem recebido pelos bens alienados depois daquele tempo).
Tanto na segunda (sucessão provisória), quanto na terceira etapa (sucessão definitiva), se estará diante do que se denomina por transmutação jurídica do processo: a conversão da jurisdição voluntária em jurisdição contenciosa.
Nesse caso, vide § 4º, do art. 745, do Código de Processo Civil, regressando o ausente ou algum de seus descendentes ou ascendentes, pedirá a entrega de bens, sendo citados para contestar o pedido os sucessores provisórios ou definitivos, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública e se seguirá conforme o procedimento comum (art. 318 do CPC). Por fim, cabe destacar que, de mesmo modo como ocorre quando declarada a ausência, o retorno do ausente também será averbado (art. 104 da Lei n. 6.015/73 e art. 9º, IV, do CC).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final dos meus comentários sobre o procedimento especial “dos bens dos ausentes”, feito em duas partes (maio e junho), aqui no Magis, além do conteúdo exposto em ambas matérias, devo destacar dois pontos, um ligado ao conteúdo da breve investigação e o outro um pouco generalizado sobre os procedimentos especiais do Código de Processo Civil.
O primeiro: a minha proposta foi, na medida do possível (e sabendo que existem assuntos ainda mais específicos ligados ao tema que não foram abordados), exaurir a procedimentalização (pragmaticamente falando) das etapas e nuances desse delicado e, a meu ver, maltratado – pelo legislador processual – procedimento especial; o Código de Processo Civil não se propõe a narrar com clareza a abordagem que vimos nessas matérias – tanto é que, para fins da investigação, tive que fazer uma leitura muito clara e aprofundada sobre institutos do direito civil para, aí sim, poder sistematizar o procedimento dos bens dos ausentes em consonância à complementação dada por outros procedimentos especiais (como, principalmente, a herança jacente) e o procedimento comum.
Se até para um teórico do Processo Civil é dificílimo compreender as particularidades desse procedimento, imaginem para aqueles que não se atentam às minucias aqui elucidadas. Eis, portanto, a provocação (positivamente falando) feita pelo meu amigo.
O segundo: analisando a doutrina e a legislação processual civil, historicamente falando, comparando o Código de Processo Civil de 1973 com o de 2015, temos um déficit perigoso nos procedimentos especiais (inclusive no “dos bens dos ausentes”); melhor dizendo, técnicas diferenciadas não recebem a atenção que merecem; elas existem por um propósito e, ao legislador processual, cabe zelar por ele. Epistemologicamente, o Direito Processual Civil brasileiro sofre – e o saudoso Prof. Ovídio Araújo Baptista da Silva já denunciava isso no final do milênio passado – de um reducionismo ao ordinário; técnicas diferenciadas são vistas como uma espécie de “dogma”, são aceitas e não contestadas, consequentemente, há carência de debate – do contrário ao que temos no procedimento comum –, impedindo a visibilidades das deficiências dos procedimentos especiais e proposições para melhorias. É algo que precisa ser repensado no direito brasileiro.
Deixo um abraço e aguardo vocês nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) para discorrermos um pouco mais sobre o conteúdo da matéria deste mês e sugestões para as próximas. Vejo vocês em julho.