O Código de Processo Civil de 2015 inovou em diversos de seus artigos, trazendo como normas fundamentais a cooperação, consensualidade e o contraditório, ambos pautados no incentivo do diálogo entre as partes. Entende-se que “enquanto norma fundamental, estes princípios são a base que “estrutura o modelo do processo civil brasileiro e servem de norte para a compreensão de todas as demais normas jurídicas processuais civis” como afirma Freddie Didier Júnior.1
Sendo assim, a construção normativa dos primeiros artigos do mais recente Código Processual se espalha nos demais conteúdos e capítulos desta legislação, demonstrando sua importância e a preocupação do legislador em alterar o paradigma de adversariedade presente no Código de 1973.2 Quando se fala em consensualidade na nova legislação processual, o principal fundamento encontra-se no artigo 3º e parágrafos do código atual.3
É perceptível a tentativa de proximidade do Poder Judiciário com o jurisdicionado, uma delas é a aplicação de métodos alternativos de soluções de conflitos que em tese se mostram meios mais adequados para encerrar a lide. Um dos métodos mais comuns utilizados pelo Poder Judiciário e pelas Câmaras Privadas de Mediação e Arbitragem, é a Mediação e Conciliação, previstos expressamente no §3º, sendo os mediadores e conciliadores considerados pelo código como auxiliares da Justiça.
Nesta busca por meios alternativos de solução de conflitos, destaca-se o CPC/2015 que em seu artigo 3º §2º, estabelece, “o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”, seguindo do §3º do mesmo artigo que afirma que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.
Há neste sentido, uma abertura interpretativa de conceitos vagos, tanto ao Estado que passa a poder promover “sempre que possível” a solução consensual, como também pela definição e ausência de limitação de quais métodos poderão ser aplicados na prática judicial, uma vez que além da Conciliação e Mediação, “outros métodos” poderão ser utilizados, sem que haja um maior direcionamento sobre o assunto. “No entanto, se um texto não estiver claro, então há necessidade de determinar o seu significado, eliminando a dúvida” como afirma Marcelo Dascal.4
A partir de conceitos vagos previstos na norma fundamental do processo, objeto deste texto é analisar brevemente se haveria algum limite interpretativo para o princípio da autocomposição dentro do processo, momento em que se questiona até onde o juiz pode avançar em seu diálogo com as partes e seu incentivo a métodos autocompositivos.
Para Umberto Eco, “existem limites para limitar a interpretação”5 e apesar do artigo 3º do Código de Processo Civil incentivar e permitir que a autocomposição e trazer conceitos abertos para tanto, deve-se haver uma limitação da interpretação deste artigo, mesmo que não se chegue à interpretação da vontade exata do legislador no momento de criação desta norma jurídica processual.
O que se busca com tal limitação interpretativa não é excepcionar a utilização dos métodos autocompositivos, mas sim utilizá-los de maneira adequada e compatível com as demais garantias processuais, evitando eventuais atrocidades como recorrentemente se discute com a utilização das Constelações Familiares em âmbito judicial no Brasil.6 Tais debates e incompatibilidades abrem margem para discussão dos limites da utilização de novos meios consensuais no processo.
Unindo a vagueza com o poder decisório dos magistrados, a utilização de técnicas como a Constelação Familiar – ou semelhantes – pode se mostrar uma verdadeira forma arbitrária de decisão por parte de quem toma a decisão, por acreditar ter encontrado a verdade real do problema, por vezes, sem aprofundar a análise através de outras provas. Tudo em busca de uma ressignificação do real sentido da decisão judicial, buscando-se muitas vezes o “problema real” do conflito, tentando encontrá-lo além dos fatos reduzidos a texto nas petições iniciais que chegam ao Poder Judiciário.
Neste sentido haveria uma superinterpretação do princípio da autocomposição dentro do Poder Judiciário? Tendo como foco a utilização do Direito Sistêmico pelos magistrados , principal instrumento discutido atualmente além da Mediação e Conciliação, percebe-se que o movimento de renovação do Judiciário por parte de magistrados que buscam utilizar “sempre que possível” a autocomposição acaba por dar margem à subjetividade a escolha da melhor solução para os conflitos, retirando na verdade a possibilidade de participação das partes em decidir qual é o método mais adequado e qual o melhor momento para se tentar utilizá-lo.
Essa margem interpretativa quase que ilimitada apresentada pelo artigo 3º do CPC/2015, torna-se perigosa, uma vez que permite entender que qualquer método dito autocompositivo pode surgir e ser utilizado em âmbito processual para que se chegue a uma solução mais rápida, eficaz e completa do litígio.
Deste modo, é perceptível que a autocomposição material pode ser alcançada através de métodos como a Mediação ou Conciliação que utilizam de ferramentas de comunicação para tentar restabelecer o diálogo entre as partes e possibilitar uma decisão autocompositiva.
Umberto Eco defende que há dois tipos de interpretação, a sã e a paranóica, “Mas a diferença entre a interpretação sã e a interpretação paranóica está em reconhecer que esta relação é mínima e não, ao contrário, deduzir dessa relação mínima o máximo possível”7 para Eco, o paranóico é o indivíduo que começa a se perguntar quais os motivos misteriosos que me levaram a reunir estas duas palavras em particular^,[8] sendo necessário questionar o que leva a Constelação a ser utilizada pelo Poder Judiciário e quais são seus limites.
Sabe-se que a analogia entre os princípios das constelações e a solução dos problemas da parte é equivocada e sem base científica. Para definir um critério de superinterpretação, deve-se “a definir uma má interpretação, é preciso ter critérios para definir uma boa interpretação”.9
A boa interpretação que se defende aqui do art. 3 §§ 1º e 2º é justamente aquela que atende dentro do contexto do ordenamento jurídico uma boa funcionalidade, um afastamento do juiz no processo de autocomposição, deixando para auxiliares da justiça devidamente treinados. O código foi expresso diversas vezes ao mencionar e regular os métodos a serem aplicados: Mediação e Conciliação, utilizadas por um terceiro imparcial. Métodos que são construídos com fundamentos com base nas ciências para reconstruir os vínculos de comunicação, buscando a retomada do diálogo entre as partes e não para descobrir uma verdade oculta a partir de movimentações com base em energia quântica.
Apesar de haver divergências quanto a sua utilização, um “entendimento jamais ter sido alcançado sugere que fatores contextuais como as posições ideológicas e políticas dos contendores influenciam a interpretação tanto quanto os fatores puramente textuais e podem impedir um resultado ‘objetivo’ do processo de interpretação”,10 o que percebe-se atualmente no Poder Judiciário é a necessidade de uma renovação de sua legitimidade e do poder de tomar decisões mais eficientes para as partes, tais decisões precisam ir além do que foi colocado nos autos para assim transformar a vida das partes, o que de fato é uma interpretação equivocada da própria função do Poder Judiciário, qual seja, julgar de acordo com a lei, os conflitos que surgem no Poder Judiciário.11
Porém, a aplicação aberta para a utilização de qualquer meio consensuais como as Constelações Familiares em âmbito jurídico, se mostra uma superinterpretação do princípio da autocomposição, uma vez que decorre de uma interpretação generalizada da possibilidade de se buscar outros métodos para auxiliar o jurisdicionado na tomada de decisão.
Como afirma Cappelletti e Garth “é necessário enfatizar que, embora realizações notáveis já tenham sido alcançadas, ainda estamos apenas no começo” ou seja, o Poder Judiciário está em constante aperfeiçoamento e evolução,12 principalmente no que diz respeito ao incentivo ao diálogo. Então é necessário se ter cuidado ao interpretar tais conceitos para não ultrapassar o sentido posto pelo legislador, buscando assim, evitar a superinterpretação do princípio que estimula a autocomposição evitando uma tragédia generalizada de motivações judiciais que envolvam práticas ditas como autocompositivas, mas que não possuem comprovação científica.
Destaca-se aqui que a superinterpretação deve ser evitada em âmbito jurídico, uma vez que por se tratar de uma área dotada de poder coercitivo através das decisões de magistrados/as, todos os métodos aplicados ao longo do processo judicial pelo Poder Judiciário devem possuir uma base racional de aplicação para que seja possível preservar a legitimidade e a formalidade deste poder. As decisões judiciais devem ser tomadas a partir dos elementos que são apresentados ao magistrado, devendo este decidir racionalmente com que as partes lhe apresentam, sem a necessidade de se buscar além do que foi levado à apreciação.
Referências
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1. JÚNIOR DIDIER, Freddie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento, 20ª ed. Salvador: Editora JusPodvim, 2018. p.85.
2. BRASIL. Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5869.htm.
3. BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.
4. DASCAL, Marcelo. Interpretação e compreensão. Editora Unisinos. Rio Grande do Sul, 2006, p. 344.
5. ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. Tradução ME, revisão da tradução e texto final Monica Stahel. -2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 46.
6. SCHUQUEL, Thayná. Após denúncias, CNJ analisa uso de constelações familiares na justiça. Metrópoles,Disponívelem:https://www.metropoles.com/brasil/justica/apos-denuncias-cnj-analisa-uso-de-constelacoes-familiares-na-justica. Acesso em 05 de ago. 2023.
7. ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. Tradução ME, revisão da tradução e texto final Monica Stahel. -2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 57.
8. ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. Tradução ME, revisão da tradução e texto final Monica Stahel. -2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 57.
9. ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. Tradução ME, revisão da tradução e texto final Monica Stahel. -2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 61.
10. DASCAL, Marcelo. Interpretação e compreensão. Editora Unisinos. Rio Grande do Sul, 2006, p. 347.
11. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Cartilha do Poder Judiciário. Disponível: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaGlossarioMirim/anexo/CartilhaPoderjudiciario_24092018.pdf, p. 3.
12. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1998, p.161.