Dia desses acatei a recomendação de uma amiga e assisti ao filme “7 Prisioneiros”1 . Estava em busca de um filme brasileiro interessante para discutir aspectos problemáticos do liberalismo, com minhas turmas de Direitos Humanos e também de Direito Civil. O filme me impactou bastante, pois traz para perto de nós uma realidade que por vezes imaginamos estar superada: a das relações de escravidão no Brasil.
No filme, um grupo de trabalhadores é levado para São Paulo em busca de colocações no mercado laboral, buscando mudar a vida de suas famílias. O desejo que move os jovens é a isca que os atrai para uma armadilha trágica que resulta no encarceramento e na escravidão por dívidas. Ao longo da trama, acompanhamos a subjetividade e os sentimentos dos trabalhadores escravizados: a empolgação com a nova vida que é roubada com a chegada na cidade, a luta e o sonho de liberdade, a vontade de proteger os familiares amados, o indelével senso de dignidade inerente a cada um de nós, a ambição de alcançar uma condição minimamente mais digna de vida e a dificuldade de equilibrar todos esses sentimentos no contexto extremo de escravidão.
O roteiro inteligente e frio nos leva ao subsolo abominável do tráfico de pessoas que também é pilar da escravidão na contemporaneidade. Mulheres e homens não só de regiões do Brasil, mas também de países asiáticos e da América Latina são objetificados nesse contexto e acorrentados aos galpões fétidos do trabalho forçado, e em meio a todo esse caos vemos a subjetividade de um dos jovens prisioneiros, a quem é oferecido o caminho para o agenciamento de todo esse show de horrores. O caminho para se tornar um “capitão do mato” dos dias atuais.
Apesar de ficcional, o filme nos convoca a refletir sobre a inegável existência de relações análogas à escravidão nos dias atuais. E no Brasil essa é uma realidade não só pressuposta, mas também reconhecida, haja vista as condenações relacionadas à frouxidão no combate ao trabalho escravo que já nos foram impostas na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Peguemos o Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde. O caso não se explica com um único ato, pois tem relação com um contexto permanente de escravidão no campo: desde os anos 1980 há relatos e denúncias de escravidão na Fazenda Brasil Verde, no município de Sapucaia, no Pará. Em 1998 a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) denunciam o Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e em 2000 houve o resgate de 82 trabalhadores escravizados na Fazenda2. Houve submissão do caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos e em 2016 o Estado brasileiro foi condenado 3 por não ter empreendido medidas efetivas para impedir a escravidão dos trabalhadores no caso.
Os 82 trabalhadores libertados puderam retomar o rumo de suas vidas, mas o medo das ameaças e da perseguição dos algozes os acompanha até os dias de hoje 4 . O trauma da escravidão deixa cicatrizes impassíveis de serem apagadas na memória de quem é submetido a essa situação degradante.
Retomando o filme, penso nos muito mais que sete prisioneiros que devem estar enclausurados no momento em que escrevo. Oitenta e duas vidas foram recuperadas no caso Fazenda Brasil, mas há um sem número de outras vidas aprisionadas Brasil afora. Na cidade e no campo, seja sob o pretexto de ter de pagar com trabalho supostas dívidas, ou em virtude do tráfico internacional de pessoas, há uma série de trabalhadores escravizados, pessoas humanas reduzidas a situação de objeto, ao arrepio de tudo aquilo que lemos sobre dignidade, direitos sociais, direitos fundamentais, direitos da personalidade.
Essas categorias, sabemos, são de extrema importância no Estado Democrático de Direito, mas há que se trabalhar para que não sejam categorias esvaziadas. Há que se lutar para que sejam efetivadas a todas e todos. O Estado não pode se omitir nesse combate, não pode haver uma fraca fiscalização, as medidas hão de ser enérgicas como já estabeleceu a CIDH. Mas também as relações privadas precisam se influenciar por essa lógica – é preciso se firmar uma cultura de valorização do trabalho e da dignidade do trabalhador. Infelizmente, caminhamos não só para a perpetuação do passado, mas assistimos à invenção de novas formas de escravidão e desvalorização do trabalho nessa nova etapa do liberalismo.
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Hermano Victor Faustino Câmara
Referências
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1. 2021, Netflix, direção e roteiro de Alexandre Moratto
2. Confira o resumo do caso em: https://bit.ly/3KgpweS
3. Veja a sentença em: https://bit.ly/3vQSOg2
4. Repórter Brasil. Trabalho Escravo na fazenda Brasil Verde: o trauma. Youtube. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3hKuO6k. Acesso em 05 mar. 2022. – Nessa curta matéria do Repórter Brasil vemos os relatos dos resgatados