Em 11 de janeiro de 2023, um dia antes da publicação da edição de janeiro dessa coluna, as Lojas Americanas anunciaram um “fato relevante”, no sentido de que foram detectadas inconsistências contábeis no seu balanço no valor de R$20bi. Essa revelação levou à renúncia do Presidente da Companhia, o Sr. Sérgio Rial, escolhido após um intenso processo seletivo, e do Diretor Financeiro da empresa, o Sr. André Covre1
O mercado amanhece dia 12 de janeiro de 2022 em polvorosa. Uma das maiores e mais tradicionais empresas do mercado brasileiro, concorrente da Amazon, no setor de e-commerce nacional, simplesmente noticia que, por um aparente descuido contábil, há um rombo de R$20bi, e está totalmente acéfala, ou seja, sem liderança, em razão da renúncia dos principais diretores.
A comunicação de fato relevante está previsto no artigo 157, da Lei das Sociedades Anônimas2 , cuja fiscalização compete à CVM – Comissão de Valores Mobiliários, disciplinada pela Resolução n. 44/2021. Assim sendo, segundo a CVM, o conceito de fato relevante é.
“Art. 2º Considera-se relevante, para os efeitos desta Resolução, qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos de administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável: I – na cotação dos valores mobiliários de emissão da companhia aberta ou a eles referenciados; II – na decisão dos investidores de comprar, vender ou manter aqueles valores mobiliários; ou III – na decisão dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles referenciados. [….]”
Basicamente, fatos relevantes são questões empresariais que possam influir na decisão dos acionistas e agentes da bolsa, acerca da compra e venda de papéis.
As Lojas Americanas rapidamente buscaram o amparo da Justiça, para se resguardar perante credores, conseguindo uma decisão em tutela antecipada, que suspendia toda e qualquer restrição patrimonial, pelo período de trinta dias. Foi uma espécie de cautelar antecedente, preparando o terreno para recuperação judicial.
Assim, se iniciou uma batalha legal entre o principal credor das Lojas Americanas, o Banco BTG Pactual, que tem um crédito estimado em R$1,2bi, perante a companhia. Acontece que, segundo consta, o contrato da BTG com as Lojas Americanas possuía um gatilho que permitia o bloqueio administrativo de valores, em caso de risco de inadimplemento.
O Banco, ciente dessa proibição da Justiça, rapidamente impugnou a medida liminar deferida. Despertou atenção a violência da redação da petição, que chamou o trio de maiores acionistas das Lojas Americanas de “semideuses do capitalismo do bem”, afirmando que o aconteceu na empresa foi uma fraude confessa3.
O embate legal continuou, até que o Superior Tribunal de Justiça, em decisão monocrática, determinou que fosse realizado o bloqueio dos valores devidos ao Banco BTG Pactual, mas que esses valores não fossem já disponibilizados, ou seja, o crédito foi trancado na ação4 .
Enquanto isso, as ações das Lojas Americanas foram derretendo na Bolsa de Valores de São Paulo. Nesse meio tempo, aconteceu a declaração de que, em razão das inconsistências contábeis, o rombo, na realidade, seria de R$40bi, e que a Americanas teria um caixa de apenas R$800mi, o suficiente para o custeio de alguns meses de operação5 .
Depois de quase dez dias de uma grande confusão financeira, no dia 19 de janeiro de 2023, as Lojas Americanas abriram um pedido de Recuperação Judicial, a fim de reorganizar a empresa, e tentar saldar todos os credores. Então, após uma sucessão de falhas, que mais parecem fraudes, os liberais capitalistas procuraram o guarda-chuva do Estado, para evitar as consequências de seus erros.
Por mais banal que a descrição desses fatos pareça, a situação de simples não tem nada. Para início de conversa, é importante observar o que significa R$40bi; esse valor se fosse dividido pelo salário mínimo atual, R$1.302,00, daria aproximadamente 30.721.966,21 salários mínimos, ou seja, poderia bancar o salário mínimo do mês, de quase 1/7 da população brasileira. Se fosse pensar em dias, um milhão de dias, equivale a 2.739,73 anos; enquanto um bilhão de dias equivale 2.739.726,0274.
Assim, R$40bi não é uma mera “inconsistência contábil”, mas, das duas umas: um tipo de fraude deliberada; uma negligência inaceitável da administração. A questão é apenas o dolo, pois a gravidade é inerente.
As Lojas Americanas foram fundadas em 1929, por três norte-americanos, cuja proposta era vender produtos por menos de dois mil réis, inspirando-se nas lojas estadunidense, em que eram vendidos produtos por menos de dez cents. A primeira sede foi em Niterói, no Rio de Janeiro.
Com o tempo, a empresa cresceu muito, e conseguiu uma boa posição no comércio varejista on line, concorrendo com gigantes do mercado, como a Amazon. Além disso, se transformou num grupo, controlando outras marcas famosas, como as Lojas Submarino e a fintech Ame Digital6 .
Com esse crescimento, as Lojas Americanas se transformaram num poderoso Grupo Econômico, de capital aberto, com ações da Bolsa de Valores, pertencendo ao padrão de governança Bovespa Novo Mercado7 (o mais alto), ostentando Índice de Sustentabilidade B3. A empresa estava sob constante auditoria e verificações, além de possuir vários acionistas, entre eles, o Grupo 3G Capital, composto pelos homens mais ricos do Brasil. Sua grandiosidade aspirava muita confiança.
Segundo consta em relatos, as inconsistências contábeis seriam as operações de risco sacado, que são uma espécie de triangulação entre empresa, fornecedores e alguma instituição financeira. Em suma, a empresa faz uma aquisição junto a um fornecedor, cujo débito é quitado diretamente pela instituição financeira, ficando a empresa responsável por quitar a dívida junto ao banco, que se traveste de uma espécie de empréstimo. É uma forma que o mercado encontrou para que os bancos assumissem os riscos das operações com fornecedores, a fim de manter a cadeia de mercado confiável.
Acontece que, houve algum erro no lançamento dessas dívidas, em que elas simplesmente deixaram de aparecer nos balanços dos últimos anos, pois eram lançadas as quitações, mas não constavam as dívidas com os bancos, até que veio à tona recentemente esse rombo. A inconsistência contábil aparenta ser mais uma grande omissão de lançamento, protagonizada, ou ordenada, por alguém de alto escalão.
Uma empresa do estilo das Lojas Americanas, via de regra, trabalham no limite de viabilidade, pois sua principal finalidade e dar lucratividade aos acionistas. Assim, existem critérios de mercado, que determinam a distribuição de valores no balanço para assegurar proteger os acionistas. São medidas que garantem que todas as sobras não sejam distribuídas, mas que parte do excedente seja reservada para garantir a sustentabilidade da empresa. Diante disso, existem critérios para a definição de uma reserva mínima para cobrir caixa, pagar fornecedores, de patrimônio líquido, e assim sucessivamente.
Quem faz esse controle, geralmente, é a contabilidade interna e a auditoria externa, composta, no caso, por duas Big Four: PwC e KPMG; ou seja, é feito uma dupla revisão em todos os lançamentos, além de outras estruturas de controle, que a companhia pode ter.
Os próprios bancos fomentadores, que hoje são credores em frágil posição, fazem revisões nos lançamentos das empresas, para análise de crédito. Além do BTG Pactual, o Banco Safra, Banco Itaú e Banco Bradesco, entraram na mesma enrascada8 .
A situação das Lojas Americanas coloca em xeque a competência da CVM em regular o mercado nacional, bem como, se as auditorias realmente representam uma segurança ao acionista. Aqui, cabe rememorar, que a atividade da auditoria é consultiva, e a empresa auditada não é obrigada, necessariamente, a atender as observações da auditoria externa.
Contudo, é fácil afirmar que o compliance das Lojas Americanas falhou, bem como, que os eixos do social e de governança, do ESG, foram totalmente desprezados. Do ponto de vista da governança, todas as estruturas para assegurar a integridade financeira da companhia falharam, tanto que surgiu o rombo de R$40bi. Aqui não está se afirmando que houve uma fraude dolosa, essa seria uma acusação grave, vinda desprovida de provas, mas há fortes indícios que algo muito errado aconteceu nas Lojas Americanas.
Mas, o eixo social é o mais afetado, com certeza. Inicialmente, tem a situação dos empregados do grupo, que sequer sabiam dessas decisões referentes ao balanço, porém vão acabar diretamente afetados por essa sucessão de erros. Inclusive, o Juízo da Recuperação Judicial, já iniciou um processo de cooperação com a Justiça do Trabalho, para assegurar que o processo de reestruturação do grupo, não prejudique os milhares de trabalhadores afetados9 .
Ainda no ponto da responsabilidade social, as Lojas Americanas, embora tentem utilizar sua história n o Brasil como argumento em proveito próprio, na verdade ignorou sua importância, para o mercado nacional. Um dos maiores grupos varejistas do país, que serve de hospedagem para várias lojas, com uma grande cadeia de produção, que envolve indústria, logística e comércio, os proprietários dos imóveis que suas lojas físicas ocupam, além de shopping centers que tem uma Americanas como âncora, ou semi-âncora, tudo isso foi desprezado pela empresa.
Outros afetados são acionistas de menor escalão e investidores amadores, que aplicaram suas economias em fundos de investimento que trabalham com as Lojas Americanas. Esse é o caso da carteira “Nu Bank Reserva Imediata”, que era vendido como um investimento sem risco, que renderia mais que a poupança, entretanto registrou rentabilidade negativa, visto que 1% do fundo estava investido em debêntures das Lojas Americanas, que perdeu valor de mercado, em razão desses fatos10 .
O social, do ESG, é caracterizado pela empresa reconhecer seu papel no meio social em que está inserido. Por alguma razão, descuido, negligência ou pura ganância, as Lojas Americanas esqueceram dessa função.
Agora, o processo de recuperação da companhia será extremamente traumático, principalmente, para os que dependem da empresa, tais como empregados e fornecedores de menor expressão, que virão seus créditos serem inseridos no plano de Recuperação Judicial, sem saber quando serão pagos. Essa é uma marca das grandes crises do capital contemporâneo, dificilmente são os detentores dos meios de produção, que sofrem com as consequências de seus atos.
Existem dúvidas, inclusive, se o processo de Recuperação Judicial se prestaria a esse tipo de situação, visto que não se trata de uma empresa que, por circunstâncias alheias à sua vontade, entrou em crise, mas de uma falha grotesca de gestão, ou uma fraude dolosa, que causou um rombo financeiro que pode levar o grupo à falência. Essa novela ainda terá muitos episódios, mas deve ser o ponto de partida para que a CVM repense como exerce seu papel de guardiã do mercado nacional, e como fazer para que políticas de ESG e compliance saiam do campo das ideias, e sejam efetivamente aplicadas.
Referências
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1. Disponível em: http://glo.bo/3jvtOYk
2. Disponível em: https://bit.ly/3EalGUf
3. Disponível em: https://bit.ly/40zqsEd
4. Disponível em: https://bit.ly/3lik57U
5. Disponível em: https://bit.ly/40DuMlK
6. Disponível em: https://bit.ly/3I3hnvZ
7. Para saber mais sobre os padrões de governança da CVM, o leitor pode acessar o artigo da coluna do mês passado: https://magis.agej.com.br/governanca-onde-o-esg-e-o-compliance-se-encontram/
8. Disponível em: https://bit.ly/3Y9fuU9
9. Disponível em: https://bit.ly/3lcucLE
10. Disponível em: http://glo.bo/3Yyh8ib