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Função social da jornada de trabalho

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Os debates em torno das regras da jornada de trabalho, mesmo variando em intensidade, sempre estão na pauta. Inclusive, no último mês, o TST reviu a OJ 394, da SBDI-1, e as verbas de horas-extras habituais, passam a refletir no descanso semanal remunerado, de 20 de março de 2023, em diante1, o que aumentará a remuneração dos empregados e onerará as folhas de pagamento das empresas.

Essa pauta é tão intensa, porque há uma grande divergência se horas trabalhadas, de fato, representam uma maior produtividade. Por muito tempo se teve a cultura de impor ao empregado o limite constitucional de horas de trabalho, mas essa posição começa a ser revista.

Esse debate pode transparecer não ter muito relevância às práticas de ESG, contudo, isso é uma compreensão equivocada. O eixo ‘S’, social, possui uma preocupação com a saúde e bem-estar dos empregados, para além de um ambiente de trabalho saudável. Logo, é imprescindível que as empresas se foquem em assegurar a saúde mental e física de seus colaboradores, e a questão em torno da jornada de trabalho está no centro dessas práticas.

Embora já consolidada, a jornada de trabalho de 08 horas não é tão antiga quanto parece. O Brasil “abandonou” a escravidão (entre muitas aspas, diante de notícias recentes), em 1889. Enquanto outros países do mundo já discutiam o fim do trabalho infantil, jornadas de trabalho inferiores a 10-12h, o país ainda patinava na história, insistindo no trabalho escravo.

Entre as revoluções da República Velha, e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, a configuração das lutas de classes do Brasil tomaram uma nova forma. O Brasil passou por um processo de remodelação social e econômica. De 1880 até 1930, aconteceu um imediato crescimento geral da população, combinado com uma política agressiva de incentivo à imigração estrangeira, para repor a mão-de-obra escrava2.

Nos centros urbanos, a Primeira República foi marcada pelo avanço da industrialização da economia brasileira, que saltou de 150 (cento e cinquenta) fábricas abertas entre 1880 e 1884, para 3.410 (três mil e quatrocentos e dez) em 1906 e 13.336 (treze mil e trezentos e trinta e seis) em 19293.  De acordo com o censo de 1920, de 9,1 milhões de pessoas que viviam no Brasil, 6,3 milhões eram trabalhadores rurais e 2,7 milhões de pessoas, trabalhavam em centros urbanos, entre indústrias e serviços4.

Vargas, por volta dos anos 30, organizou as relações de trabalho, criando a primeira carteira de trabalho, regularizou o emprego urbano, criou um sistema de aposentadoria e pensões, os sindicatos foram alçados a uma importante instituição do Governo Provisório. Ou seja, trouxe o proletariado para dentro de seu governo, mesmo que tenha excluído os trabalhadores rurais5.

Existe um mito, no sentido de que as leis trabalhistas produzidas por Getúlio Vargas seriam uma concessão de um benfeitor. Contudo, não foi bem assim: essas vitórias trabalhistas foram frutos de uma grande tensão popular, situada numa época de intensa reconfiguração social do Brasil. Não bastava apenas reorganizar o trabalho, era necessário compreender a nova sociedade brasileira6.

Então, em 1943, foi publicado do Decreto-Lei n. 5.452, a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho7. Já chama a atenção o nome dado à legislação: “consolidação”; o que remete à ideia de que houve uma reunião de regras e Leis esparsas que foram “consolidadas” em um único instrumento, reforçando a ideia de organização das relações de trabalho.

A CLT ganhou um capítulo exclusivo para tratar da jornada de trabalho. Entre muitos episódios da história Brasileira, que ocorreram entre os anos 40 até 1988, os trabalhadores sempre estiveram na dianteira do protagonismo político. É impossível imaginar a abertura democrática, sem observar as condutas do Sindicato dos Metalúrgicos e do Sindicato dos Bancários.

Não é por outra razão, que a Constituição da República de 1988, dedicou um artigo específico para os direitos sociais, ou seja, o artigo 7º, em que foram constitucionalizadas, bem como, tratadas como cláusulas pétreas, várias regras vinculadas à relação do trabalho, dentre elas, a duração da jornada de trabalho, e os direitos aos descansos (intrajornada, entre-jornadas, descanso semanal remunerado e férias).

Atualmente, a regra geral da jornada de trabalho é o máximo de 08horas diárias, ao limite de 44horas semanais. Ao regime de jornada de trabalho de 08horas é assegurado ao empregado o intervalo de, no mínimo, 1h e, no máximo, 2h, o que pode ser reduzido por acordo ou convenção coletiva (se inexistente o acerto direto com o Sindicato da categoria, o intervalo não pode ser suprimido).

Outro regime existente é o de 6horas diárias, praticamente ininterruptas, assegurando-se um intervalo de, apenas, 15min. Regime tradicionalmente adotado por bancos, tendo em vista a cultura de horário de expediente das 10h-15h. No chamado trabalho de meio-período, de apenas 04h, ou seja, um turno, não é assegurado nenhum tipo de intervalo.

Porém, a legislação vai mais fundo, ainda é assegurado a todo o empregado o mínimo de 11h de intervalo entre um dia e outro de trabalho, e é obrigatório que, pelo menos, uma vez por semana, o empregado goze de pelo menos 24h ininterruptas de período de descanso, preferencialmente aos domingos – esse é o descanso semanal remunerado.

As horas extras serão ao limite de duas diárias (qualquer excedente a esse número é ilegal, salvo algumas hipóteses muito específicas, decorrentes de “imperiosa necessidade” ou “força maior”, que são conceitos extremamente abertos e perigosos), e deverão ser remuneradas ao acréscimo de 50% da hora normal.

Ainda, a legislação garante o pagamento de adicional noturno, para quem trabalha durante o período das 22h às 5h, e a redução da hora de trabalho de 1h, para 52min30s, ou seja, as 08h noturnas são “menores” que a hora normal, e se houver o alongamento para 1 hora relógio, os 7min30s serão tratados como horas-extras.

Um segundo item, que impõe bastante dificuldades aos empregadores, é o controle de jornada, que nem é tão complicado assim, mas demanda investimento e organização do departamento de recursos humanos. Inicialmente, deve se ter bem claro que o único documento idôneo para o registro de jornada de trabalho é o cartão-ponto, seja manual, seja eletrônico. A Lei obriga que empresas com mais de vinte empregados, mantenham registro ponto – com menos de vinte empregados, a obrigação é dispensada, mas ainda muito recomendada.

Vários criticam algumas posições da Justiça do Trabalho, sobre ser muito protetiva aos direitos do empegado. Porém, nesse quesito do registro ponto, o judiciário laboral passa muita segurança jurídica, sobre a prevalência do que for registrado no cartão-ponto, salvo prova em contrário, cujo ônus pertence ao trabalhador:

SÚMULA 338, DO TST: JORNADA DE TRABALHO. REGISTRO. ÔNUS DA PROVA.

I – É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) [vinte, conforme reforma trabalhista] empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário. (ex-Súmula nº 338 – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003)

 II – A presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário. (ex-OJ nº 234 da SBDI-1 – inserida em 20.06.2001).

III – Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir. (ex-OJ nº 306 da SBDI-1- DJ 11.08.2003)

Assim, a jurisprudência do TST é muito clara que, para desconstituir o que consta no registro ponto, é necessário que o empregado prove a causa de nulidade dos cartões-ponto. Atualmente, existem vários sistemas de registro pontos eletrônicos homologados, inclusive, até por aplicativos compatíveis com smartphone e tablets. Logo, não há justificativa para que a empresa negligencie os registros de horário trabalho.

Existe uma forma de ser dispensado o controle da jornada de trabalho, que são as hipóteses previstas no artigo 62, da CLT. Embora seja uma prática, tecnicamente, legal, a ausência de registro de jornada é de constitucionalidade duvidosa e muito utilizada para fraudes, sendo por essa razão que a jurisprudência dos Tribunais Regionais do Trabalho é muito dura em relação a esse regime.

A primeira hipótese de dispensa de registro de jornada é a mais polêmica, que é quando a atividade do empregado é incompatível com o controle de horas trabalhadas. A jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, por exemplo, tem requisitos bem claros para afastar a legalidade desse regime:

HORAS EXTRAS. ATIVIDADE EXTERNA. ART. 62, I, DA CLT. O controle da jornada por parte do empregador, ainda que efetuado de forma indireta, exclui a incidência da norma contida no inciso I do art. 62 da CLT, o qual pressupõe a impossibilidade de controle da jornada laborada. (TRT da 4ª Região, 6ª Turma, 0020400-28.2018.5.04.0241 ROT, em 09/06/2022, Desembargadora Beatriz Renck).

O controle indireto da jornada de trabalho deve ser lido como qualquer outra forma que não seja batendo o ponto na sede da empresa. Assim, é possível que haja o controle indireto da jornada de trabalho: se o empregado porta o telefone da empresa; se o patrão sabe a rota de trabalho do empregado; se o veículo da empresa possui alguma forma de monitoramento remoto, como geolocalização via satélite; se o empregado possui uma agenda, produzida pelo empregador, em que o patrão sabe onde e, em que horário, o empregado está; entre outras formas.

A outra palavra chave, da jurisprudência acima citada, é “impossibilidade”. Nesse quesito, os tribunais trabalhistas reinterpretaram a palavra incompatível, que pode ser lida como algo que não se é capaz conciliar a um tempo. Acontece que, o conceito de “impossibilidade” é mais fundo, pois o impossível é algo que não tem como ser feito, não há forma crível ou real de ser executada.

Só que, provar que algo é “impossível” é quase um dilema filosófico, visto que, de certa forma, tudo é possível, contanto que o ser humano se esforce para solucionar a questão. Soma-se essa interpretação, a proteção social do trabalhador, à sua saúde mental e física, o regime de ausência de controle de jornada de trabalho, do artigo 62, I, da CLT, é absolutamente ilegal, e praticamente impossível de ser provada sua compatibilidade com a função do empregado.

As outras duas hipóteses de ausência de controle jornada já são mais palpáveis. O artigo 62, II, da CLT, autoriza que ocupantes de cargos de gerência não tenham controle de jornada; entretanto, não é apenas um nome, ou um cargo de liderança, que permite que o colaborador seja dispensado do controle de jornada. Para a sistemática funcionar, é necessário que o empregado ganhe mais que seus subordinados e, efetivamente, tenha responsabilidades maiores, e assim ocupar um cargo de gestão. Não basta assinalar cargo de gerência na Carteira de Trabalho, e pensar que o empregado pode se enquadrar nessa hipótese.

A última possibilidade de dispensa de controle de jornada é a recente inovação trazida pela pandemia, que é a situação de teletrabalho, para profissionais que trabalham por produção ou tarefa. Como a alteração é muito recente – maior parte de 2022 – a jurisprudência ainda não amadureceu sobre o tópico, porém as observações dos outros dois regimes se aplicam aqui também, ou seja, a hipótese deve corresponder à realidade, sob pena de ser constatada fraude ao contrato de trabalho, pois não pode ser confundida com a hipótese de trabalho externo.

Por fim, pode ser destacada, ainda, a jornada de trabalho 12x36h, em que o empregado trabalha 12h contínuas, e descansa por 36h. Por mais desumano que seja trabalhar 12h contínuas, o setor da saúde está alicerçado nesse regime. Como o período é superior a 06h, tem um período de descanso de 1h, como qualquer outra modalidade. Além disso, deve se ficar muito atento à intervenção sindical nessas hipóteses, visto que a validade do regime está condicionada a acordo individual, coletivo ou convenção sindical.

Então, esse é um breve resumo sobre possíveis modalidades de jornada de trabalho. Ainda existem as horas em sobreaviso e plantões, bem como, regimes de jornada muito específicos, como para motoristas. Mas esse é o apanhado geral.

Em contrapartida ao regime de trabalho de 08h diárias x 44h semanais, que utiliza o máximo de horas legalmente autorizado, muitas empresas já começam a testar a semana de trabalho de quatro dias, sem redução da remuneração. Esse fenômeno passa pela reinterpretação da efetiva relação entre produtividade x horas de trabalho, ou seja, trabalhar mais tempo não significa, necessariamente, produzir mais.

Com os avanços da tecnologia e automação, a intervenção humana em muitos ofícios será reduzida. A semana de quatro dias é uma tendência até para manter o número de empregos remunerados. Em economias baseadas no consumo, isso é uma medida necessária para manutenção macroeconômica, pois sem consumo o Brasil não se sustenta.

Portugal, Estados Unidos e Brasil, já vêm testando essa ideia, e obtendo resultados satisfatórios em termos de produtividade8. Contudo, essa prática está sendo adotado para cargos de maior qualificação técnica e remuneração, e ainda não chegou ao operário de “chão de fábrica”, visto que a produtividade desse é medida, sobretudo, por sua capacidade de gerar o bem ou serviço vendido pela companhia.

Mas o importante é observar essa tendência pelo ESG, em especial, o eixo social. Isso porque, com o avanço de doenças mentais decorrentes do trabalho, o que agora é inegável, visto que o burnout é reconhecido como uma doença ocupacional9, as empresa precisam se preocupar com a integridade psicológica de seus trabalhadores.

Trabalhar até a exaustão, em nome de uma produtividade vazia, é uma prática quase criminosa de muitas empresas. O trabalho reflete na capacidade da pessoa gerar valor à comunidade, agregar à sociedade produzindo algo que possa ser valioso aos olhos de todos. Isso é impossível em jornadas estafantes em ambientes corporativos tóxicos e altamente competitivos.

Enfim, a jornada de trabalho reduzida e bem remunerada, pode ser um caminho para aumentar a produtividade das empresas, sem sacrificar seus empregados, é altamente recomendável dentro das práticas de ESG.

 

Referências

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1. https://www.tst.jus.br/-/pleno-do-tst-altera-oj-394-em-julgamento-de-recurso-repetitivo

2. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Brasil: uma biografia. Lilia Motriz Schwartz e Heloísa Murgel Starling. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. P. 325.

3. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Brasil: uma biografia. Lilia Motriz Schwartz e Heloísa Murgel Starling. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. P. 335.

4. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Brasil: uma biografia. Lilia Motriz Schwartz e Heloísa Murgel Starling. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. P. 326.

5. FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. P. 53.

6. FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: o poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. P. 53-54.

7. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm

8. https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgz4ny3k9xo

9. https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2022/01/11/sindrome-de-burnout-e-reconhecida-como-doenca-ocupacional-veja-o-que-muda-para-o-trabalhador.ghtml.

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