O Presidente dos Estados Unidos da América anda protagonizando muitas polêmicas recentes, que afetam a geopolítica mundial. Pautas como imigrações, a situação Israel x Palestina, inclusive, uma surpreendente pseudoaliança com a Rússia, no tocante à Guerra da Ucrânia, gerando certa confusão diplomática entre Estados Unidos, União Europeia, OTAN e Rússia, estão dominando os noticiários internacionais, gerando um tumulto entre as posições de alguns analistas políticos. Francamente, é impossível de ser feita uma leitura exata da posição estadunidense frente a esses assuntos globais.
Donald Trump começa seu governo com uma postura bem antagônica, para um país de índole totalmente liberal no quesito economia. É importante mencionar que nos Estados Unidos não há uma divisão clara entre esquerda e direita, até porque o socialismo/comunismo (nessas breves linhas tratados como conceitos idênticos, embora, fique claro, não sejam tanto assim) não floresceu como aconteceu na América Latina.
Na maior potência militar do mundo, a divisão é entre Republicanos e Democratas, os primeiros se destacam por um grande conservadorismo em pautas sociais (proibição de aborto; contra ideologias de gênero; preferências as pautas religiosas; enfim), e um liberalismo “forte” na economia, ou seja, uma ideologia de total livre mercado em prejuízo de eventuais práticas de afirmação de justiça social, como ajudas humanitárias, um sistema de saúde público e gratuito, educação sem custos, etc. Na outra ponta, estão os democratas, menos conservadores, a favor da legalização do aborto, da liberdade sexual, reduzida influência de questões religiosas, bem como pró-estruturas de um Estado mais social, com saúde e educação de qualidade e de acesso universal; na economia, percebe-se um liberalismo “menor”, ou seja, os democratas ainda defendem que o mercado deve ser livre, porém deve ser possível conciliar pautas sociais com práticas de livre mercado.
Assim, nessa síntese muito breve, é possível perceber que existe uma linha comum entre os dois partidos, que é a prática de livre mercado, com maior ou menor grau de intervenção do Estado na economia.
Porém, Trump assumiu uma postura um tanto errática no início de seu governo. Uma das primeiras e mais polêmicas medidas que adotou, foi a imposição de tarifas para a importação de produtos aos EUA, em defesa da economia nacional.1 Trata-se de uma prática afeta ao protecionismo de mercado, marca de economias nacionalistas de forte intervenção do Estado.
Na realidade, o Presidente está tentando mexer na guerra comercial que o mundo trava desde o princípio do processo de globalização. A redução das distâncias, causada pelo avanço tecnológico de transportes e comunicação, fragilizaram as fronteiras e aqueceram o comércio mundial. Assim sendo, a economia mundial se reconfigurou, multinacionais de grandes potências, como as norte-americanas, passaram a produzir bens em países subdesenvolvidos, com uma força de trabalho mais barata e uma regulamentação legal mais frouxa, para vender nos Estados Unidos e outras grandes potências europeias, por meio de exportações/importações.
Trump deve ter feito a leitura de que, na condição de maior economia do mundo, os Estados Unidos seriam capazes de reverter o processo globalizante em seu favor. Ainda, a imposição de tarifas sobre importações alcançou gêneros alimentícios, tanto que Donald Trump anunciou: “Para os grandes fazendeiros dos Estados Unidos: Preparem-se para começar a produzir muitos produtos agrícolas para serem vendidos DENTRO dos Estados Unidos. As tarifas serão aplicadas sobre produtos externos no dia 2 de abril. Divirtam-se!”, em sua rede social, Truth Social.2 Claramente uma medida para agradar sua base eleitoral, fazendeiros ricos e de classe média, do centro dos Estados Unidos.
Porém, dentro da arena geopolítica, os Estados Unidos sempre se portaram como uma espécie de polícia do mundo, seja protagonizando guerras, alimentando conflitos, ou regulando o comércio mundial. Dentro dessa postura, encontrava-se o FCPA – Foreign Corruption Practice Act, que é a chamada Legislação Antisuborno dos Estados Unidos da América.
Criada em 1977, como uma resposta ao escândalo Watergate, o FCPA é uma legislação que busca combater a corrupção, sendo o seu maior destaque o alcance extraterritorial, pois possibilita punir empresas com sede, filiais, ações na Bolsa, enfim, com qualquer relação (comercial ou não) com os EUA, por práticas de atos de corrupção fora do país.
O FCPA é um marco da regulamentação anticorrupção, inicialmente, porque é uma das primeiras legislações do tipo a surgirem no cenário internacional (o Brasil, por exemplo, somente promulgou uma Lei similar em 2013; o UK Bribery Act, que é a legislação análoga britânica, é de 2011); além disso, é uma regulamentação que foi intensamente utilizada para punir empresas que praticaram atos de corrupção em outros países, mas possuem negócios no EUA. Empresas brasileiras já foram punidas pelos EUA, através do FCPA, como a Odebrecht e a Petrobrás, dentro do âmbito da “Operação Lava Jato”.3
Acontece que, no dia 10 de fevereiro de 2025, o Presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva suspendendo o FCPA,4 até posterior revisão da legislação. Então, para início de conversa, o FCPA não acabou, mas será submetido a uma “adequação” à realidade atual, conforme entende o atual Presidente Norte Americano, que assim disse: “As empresas americanas são prejudicadas pela aplicação excessiva do FCPA porque são proibidas de se envolver em práticas comuns entre concorrentes internacionais, criando um campo de jogo desigual”. Já em 2012, antes de mesmo de seu primeiro mandato, Donald Trump chamou a legislação de ridícula e horrível, e que prejudicava as empresas dos EUA.5
Portanto, durante os 180 dias de suspensão, a procuradoria geral dos EUA:6
“– Não poderá iniciar novas investigações ou ajuizar ações de aplicação do FCPA, salvo se necessária a tomada de ação excepcional por parte da Procuradoria3;
– Deverá revisar detalhadamente todas as investigações e ações realizadas com base no FCPA, priorizando os interesses e a competitividade econômica dos EUA;
– Emitirá diretrizes e políticas atualizadas com vistas a promover a autoridade do presidente dos EUA em matéria de relações exteriores e priorizar interesses norte-americanos e a competitividade das empresas no mercado internacional.”7 (tradução extraída do Portal Migalhas de Notícias).
Dessa forma, o FCPA está em reforma. É difícil de especular os reais motivos pelos quais Donald Trump tomou essa decisão. O FCPA é uma legislação consolidada, que serviu de modelo mundial de combate à corrupção. Através dessa Lei, as empresas ficam inibidas de fazer negócios ilícitos e pagar propinas a autoridades de países com Estados mais frágeis, criando um ambiente de negócios mais saudável e competitivo.
A legislação funcionava porque nenhuma empresa gigante pode se dar ao luxo de ficar fora do mercado americano. Como a legislação pune qualquer empresa que tenha negócios nos EUA, que pratique suborno em outros países, inúmeros atos corruptivos foram punidos pelos Estados Unidos, mesmo fora do país. Porém, há suspeitas de aplicações seletivas, bem como que a legislação seria utilizada para dificultar investimentos em certos países, causando o enfraquecimento de economias locais, mas nada nunca oficialmente confirmado.
Difícil dizer se haverão avanços ou retrocessos depois dessa medida. Todavia, a situação realmente preocupa, porque a tendência é que haja um afrouxamento do combate à corrupção a nível mundial. Assim, confia-se que o amadurecimento institucional de outros países seja suficiente para conter a sanha corruptiva de empresas privadas.8
Ainda, fica a curiosidade de quais são os interesses obscuros do atual governo americano, ao relativizar a força de sua própria legislação anticorrupção. Isso porque, a corrupção pode ser considerada uma forma de controle de mercado, ou seja, quem pagar as maiores propinas leva. Dessa forma, através de pagamentos de suborno, empresas podem conseguir monopólios de exploração de recursos naturais, sobre serviços públicos de alto valor, gerando um ambiente de negócios mais hostil e desigual, em benefício de um determinado grupo.
Por fim, ficam alguns alertas. Primeiro, o FCPA foi apenas suspenso, não deixou ainda de existir; segundo, depois de suspenso, a Lei pode até retroagir a esse período de suspensão, visto que está sob uma base legal diferente do Brasil; terceiro, não é porque os Estados Unidos afrouxaram o combate à corrupção, que o mundo todo irá ceder, China, União Europeia, Brasil, já assumiram um papel geopolítico mais elevado, com certeza não tão relevante como os EUA, mas já conseguem se impor em termos de práticas de mercado.
A coluna desse mês vai permanecer inconclusiva, visto que é preciso aguardar os próximos passos do Presidente Trump, para se definir quais os reais impactos da suspensão do FCPA no mercado e nas medidas de enforcement anticorrupção.
Referências
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5. As empresas americanas são prejudicadas pela aplicação excessiva do FCPA porque são proibidas de se envolver em práticas comuns entre concorrentes internacionais, criando um campo de jogo desigual