O Governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, em entrevista ao podcast Inteligência Limitada, foi questionado acerca do veto ao PLC 07/2024, que previa a exclusão da prova oral do concurso PC SP, com exceção do delegado. Em sua resposta abordou três fundamentos para o veto ao Projeto de Lei Complementar.
O primeiro motivo apresentado por Tarcísio seria que “o parlamento não era competente para propor esse projeto. Eu entendo que quando você tem uma questão de competência, não se transige. A gente não pode deixar que o parlamento defina questões que são que dizem respeito sobre a organização do Estado”.1 O argumento é equivocado, já que o projeto de lei trata da matéria de etapa de concurso, e não forma de provimento de concurso, o que é pacífico na jurisprudência.2
O segundo motivo abordado corresponderia ao fato de que “a prova oral hoje presta um serviço relevante no concurso, a prova oral tem servido hoje para para aquelas pessoas que são treinadas e aplicam a prova eliminarem pessoas que tem vinculação com o crime, e querem ingressar na polícia. Isso é uma coisa importante”.3
Ao afirmar que a prova oral objetiva a eliminação de candidatos com vinculação ao crime o governador revela uma finalidade ilegal da prova oral da PC-SP. Há desvio de finalidade, em considerando que a prova oral conforme edital teria por finalidade avaliar o o domínio do conhecimento, adequação da linguagem, articulação do raciocínio, capacidade de argumentação e uso correto do vernáculo pelos candidatos.4
Em linhas gerais, desvio de Poder ou Desvio de finalidade corresponde a pratica de ato com finalidade diversa que a lei descreveu para aquele ato. O desvio de finalidade se decompõe em duas hipóteses: a) ato praticado para alcançar outro fim, diverso do interesse público; b) ato praticado com fim diverso do fim descrito pela lei. O desvio de finalidade atenta contra os requisitos de validade do ato administrativo, notadamente a finalidade, e por violar tal requisito está-se diante de um vício insanável, de forma que não tem como corrigir ato que busca finalidade contrária a lei.
Assim, no caso em tela, diante do patente desvio de finalidade, dar-se-á margem para impetração de futuros Mandados de Segurança contra o referido abuso de poder, com fundamento no art. 5º, LXIX, CF, bem como ações ordinárias com fito de invalidar o ato administrativo praticado com desvio de poder. Sendo a última, a via mais adequada em se considerando que o mandado de segurança não comporta discussão acerca da distribuição do ônus da prova, já que possui natureza mandamental e demanda prova pré-constituída, portanto pela via ordinária pode valer-se da inversão do ônus da prova (art. 373, §3º, II, CPC), incumbindo ao Poder Público a prova de que a eliminação não decorreu do entendimento de que o candidato teria vinculação com o crime, o que se torna difícil face a forma de aplicação da prova oral que aplica questões distintas aos candidatos.
Revela-se então o problema imediato no que tange a prova oral, a subjetividade, para além da eliminação de candidatos por possível associação ao mundo do crime, dá vazão a reprodução do racismo estrutural, ou seja, “uma organização de uma sociedade que privilegia um grupo de certa etnia ou cor em detrimento de outro, percebido como subalterno”.5
Seria até mesmo discutível a constitucionalidade da Lei Complementar nº 1.151 que autoriza a prova oral, ao menos no que tange as possíveis formas de interpretação, poder-se-ia dar uma interpretação Conforme a Constituição, ou seja, a utilização de “uma técnica interpretativa de fiscalização da constitucionalidade em que os tribunais julgam não inconstitucional um dado preceito normativo, conquanto o mesmo seja interpretado com o sentido fixado pelo mesmo tribunal”,6 interpretação essa que deveria ser no sentido de coibir a subjetividade, compelindo ao Poder Público a aplicação de uma prova oral que aplique os mesmos questionamentos indistintamente aos candidatos.
Quanto a esse tópico, cabe ressaltar ainda, que há a etapa de investigação social no concurso, etapa adequada para eliminação de candidatos que possam ter alguma vinculação com o crime, em que há a oportunização do candidato exercer o contraditório e a ampla defesa, diferentemente do caso em que a eliminação ocorre de forma velada na prova oral.
Complementarmente, “se a inteligência da polícia consegue chegar ao ponto de identificar membros de uma organização criminosa em uma prova oral, porque não prendeu, investigou, por que não instaurou inquérito? Se você tem elementos que indique o vínculo com uma organização criminosa, a gente sabe que para responder pelo crime de organização criminosa não precisa da prática do crime, basta ser membro. Por que não investigou para mandar para o Ministério Público?”8
Em terceiro lugar, o Governador alega que:
o que que o pessoal queria que o sancionasse o projeto com um concurso da polícia civil em andamento para eliminar depois a prova oral neste concurso em andamento, mas eu não posso mudar um edital com o concurso andando, porque no final eu teria anulação do concurso que imagina o cara que é eventualmente está brigando para se classificar entre as vagas. E partindo do pressuposto que a gente não vai chamar todo mundo dessa vez, né? A gente não vai preencher. E é a gente não vai chamar excedentes, a gente vai se limitar as vagas nas 3500 vagas. Aí, o cara, tem mais uma etapa de concurso que ele pode galgar postos, melhorar a classificação, e de repente eu elimino essa etapa com um concurso em andamento, isso causaria anulação do concurso, e aí a gente voltaria a estaca zero. Eu perderia tempo. Então, aquilo que seria em tese, para acelerar a incorporação de 3500 novos policiais civis e acabar. Atrasando a convocação desses policiais civis. Então, no final, seria ruim para o estado? Então, por uma série de razões, e foi a recomendação da própria Secretaria de segurança pública, a gente fez o veto.9
Acerca dessa colocação é inverídico que se sancionasse o projeto com o concurso em andamento ensejaria a anulação o concurso, havendo precedentes no STF nesse sentido. E em relação ao fato de que a Administração Pública não iria chamar excedentes, se não o fizer, o Governador estará descumprindo sua promessa de até o fim do ano, 30% do efetivo será recomposto.10 Ainda essa postura contrapõe a necessidade urgente de pessoal revelada pela SIPESP (Sindicato dos Investigadores de Polícia do Estado de São Paulo) que denunciou o caos administrativo que vivem as delegacias do Estado de São Paulo, em razão da falta de material, e especialmente pela falta de recursos humanos.11
Uma solução para mitigar os efeitos nocivos da prova oral e do desvio de finalidade com que tem sido utilizada seria a propositura de um projeto de lei de autoria do governador, que altere o artigo 5º da Lei Complementar nº 1.151, de 25 de outubro de 2011, para tornar a prova oral classificatória e a consequente alteração no edital do concurso de 2023.Ou mesmo uma interpretação Conforme a Constituição no sentido que não seria possível uma prova oral eliminatória face a utilização de forma indevida da mesma. A prova oral como etapa meramente classificatória é prática recorrente, como por exemplo no concurso para o cargo de Delegado da PC-RS.12
Por fim, a realização de prova oral para os cargos de escrivão e investigador é prescindível, não encontra paralelo em outras polícias estaduais nem na Polícia Federal. E a etapa não é hábil a garantir o mais alto grau de seleção dos candidatos por ser subjetiva.
Referências
____________________
1. INTELIGÊNCIA LIMITADA. TARCÍSIO DE FREITAS (GOVERNADOR DE SÃO PAULO) – Inteligência Ltda. Podcast #1319. Youtube. 2024. Disponível em: link. Acesso em: 24 set. 2024.
2. EMENTA Agravo regimental no agravo de instrumento. Lei nº 3.777/04 do Município do Rio de Janeiro. Inconstitucionalidade formal. Não ocorrência. Precedentes. 1. Não há inconstitucionalidade formal por vício de iniciativa em lei oriunda do Poder Legislativo que disponha sobre aspectos de concursos públicos sem interferir, diretamente, nos critérios objetivos para admissão e provimento de cargos públicos. 2. Agravo regimental não provido.
AI 682317 AgR / RJ – RIO DE JANEIRO. AG.REG. NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI. Julgamento: 14/02/2012 Órgão Julgador: Primeira Turma
3. INTELIGÊNCIA LIMITADA. TARCÍSIO DE FREITAS (GOVERNADOR DE SÃO PAULO) – Inteligência Ltda. Podcast #1319. Youtube. 2024. Disponível em: link. Acesso em: 24 set. 2024.
4. Volts – Concursos Públicos. PCSP: Governador revela finalidade ilegal da prova oral. Youtube. 2024. Disponível em: link. Acesso em: 24 set. 2024.
5. Jota. Racismo no Brasil: o que é o racismo estrutural, injúria racial e democracia racial. Jota. 2022. Disponível em: site. Acesso em: 03 jul. 2024.
7. Diário da República. Interpretação conforme à Constituição. Diário da República. 2024. Disponível em: link. Acesso em: 24 set. 2024.
8. Prof. Diego Pureza. PCSP: ABSURDO! Governador confessa FARSA que é a PROVA ORAL!. Youtube. 2024. Disponível em: link. Acesso em: 24 set. 2024.
9. INTELIGÊNCIA LIMITADA. TARCÍSIO DE FREITAS (GOVERNADOR DE SÃO PAULO) – Inteligência Ltda. Podcast #1319. Youtube. 2024. Disponível em: link. Acesso em: 24 set. 2024.
10. BORGES, Stella. Tarcísio dá posse a 4.000 policiais civis após crise que envolveu a PM. UOU. 2024. Disponível em: site. Acesso em: 28 jun. 2024.
11. SIPESP. Caos administrativo e negligência: Delegacias do Demacro enfrentam falta de papel e viaturas precárias. SIPESP. 2024. Disponível em: site. Acesso em: 06 jul. 2024.
12. Edital concurso Delegado PC-RS. Disponível em: site. Acesso em: 18 jul. 2024.